Leiria e Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira

Este é um livro que faz o leitor embrenhar-se em vários mistérios. Alguns prosaicos, outros muito profundos e, outros ainda, até pícaros. Pícaros e grainhas! Um dos primeiros é aquele de se terem começado a ver crescer pela Livração, nas imediações ou ao longo da linha do Douro, atrás das árvores – se não sabem onde é a parte de trás das árvores, fica aqui outro mistério –, umas figueiras especiais, típicas do Algarve. Assim, dum ano para o outro! Como se tivessem andado a sacudir sementes atrás das árvores. Mas este mistério o Autor explica-o logo, que não é esse o escopo do seu romance. O que aconteceu foi que um vagão carregado de mercadoria «desprendeu-se perto de Vila Meã, desceu até à estação da Livração, subiu até à ponte do Tâmega, voltou a descer e subiu até Recezinho, desceu de novo e subiu até Ramil, outra vez desceu e subiu até à Póvoa. Desceu pela última vez, descarrilou e virou a carga na estação da Livração.» Que circo o deste vagão desgovernado – parecia andar no poço da morte. Quando os populares chegaram ao local, ainda mal nascia o Sol, deram-se com o aparato: «Figos [algarvios] em ceiras de junco por todo o lado. As que rebentaram e espalharam o conteúdo deliciaram os madrugadores a caminho das lavouras. E os operários que passavam, manhã cedo», para as suas fábricas ou oficinas, «encheram os bolsos». Mais tarde, e volvida a digestão – e eis a resolução deste mistério escatológico – sentiram o aperto na tripa e logo arriaram a calça pelos recatados refúgios dos valados, que nos seus locais de trabalho os sanitários ainda não faziam parte dos cómodos. Foi por aí, junto das árvores mais recônditas, que as grainhas ficaram e as figueiras algarvias apareceram! Bem, condescendamos: é onde as pessoas costumam ir que é a parte de trás das árvo

Luís Vieira da Mota, a quem a Sociedade da Língua Portuguesa dedicou a 18 de Fevereiro último um jantar em Lisboa, é um ficcionista maduro já consagrado com o Prémio Literário Vasco Branco, da Câmara Municipal de Aveiro, atribuído ao seu romance “Renascer em Córdova» (Ed. Notícias, Lisboa, 2005). Mas outros títulos importantes, para além da poesia, brilham no seu currículo: “Boa viagem e até amanhã...”, contos (1998), “O Odres”, contos (2000), e “O alto espaldar da cadeira de verga”, romance (2001). Em 2008 viera à luz “Rómulo, nome de código”, um romance que tem a guerra colonial como pano de fundo.

“O último silvo do vapor” constitui uma incursão deliberada às suas origens geográficas e sentimentais – Toutosa, Livração, Marco de Canaveses, Porto –, um pouco na senda de “Boa viagem” e de “O Odres”, mas de uma forma mais desenvolta ou até mesmo ousada. Luís Vieira da Mota exprime neste livro não só toda a sua capacidade ficcionista, mas também o seu estofo cultural e literário, o seu conhecimento dos tempos e das coisas, e ainda uma fina perspicácia que lhe permite pôr em confronto tipos e carácteres diferentes, por vezes opostos ou antagónicos.

Esta história tem, como já percebemos, a linha do Douro e os seus comboios como cenário. E não temos dúvidas que, para além da trama, o autor quis com a sua prosa prestar uma homenagem àquela linha, hoje tão desprezada em troços significativos, e às pessoas que tinham nela o único meio de transporte para sobreviver.

Uma delas é o Jaime, de quem se conta o seu baptismo de comboio e a sua admiração por tudo o que girava à volta dele e da linha. «A vida ficou-lhe intrinsecamente amalgamada ao caminho-de-ferro». Aliás, um traçado difícil e perigoso, sobretudo se tivermos em consideração os recursos escassos no tempo em que foi construída. Uma linha a serpentear escarpas desde o alto Douro até ao Porto, essa cidade que o autor diz «implantada quase na Foz do Douro». «Quase, porque o Douro não desagua no mar em chegando ou passando o Porto. Desagua, isso sim, em São João da Foz. Que nem Eça de Queirós alcunhou a mãe de Amélia [a amante do Padre Amaro] de portuense ou tripeira, mas sim de São Joaneira, por ser natural de São João da Foz.»

Luís Vieira da Mota pinta o enredo com pinceladas de história e conta-nos como evoluíram as composições, das carruagens verdes prussianas Goerlitz às Linke-Hofmann, e depois as Budd e as Sorefame. Ou as locomotivas, desde as pequenas Beyer Peacock às poderosas e enormes 700 articuladas com tender ou as velozes 0181 e quejandas, de vapor mais que sobreaquecido. E depois as máquinas a diesel e as eléctricas, de quilovática potência, já tão modernas que nem o povo as reconhecia. «– Quilowatts, uma merda que nem fumo deixa na paisagem, cartão de visita e ex-libris de uma composição ferroviária que se preze» – diziam os nostálgicos. Tudo o que não cheirasse a “trofa-a-fafe, trofa-a-fafe» não era comboio!

Mas evoca também a via fluvial como alternativa. A importância indubitável do rio Douro e dos outros rios seus afluentes – o Tâmega, o Paiva – justamente os nomes que as linhas tomam quando passam sobre eles ou os acompanham pelas suas margens.

Para o seu Jaime, “o decano dos costumeiros da linha do Douro”, «o mais belo panorama dependia apenas do lado para onde acordasse em cada dia». E era-lhe muito difícil decidir «se mais belo de barco rabelo competir com o comboio, se na linha, sob o rolo de fumo e da nostalgia do silvo, acenar adeuses às velas quadradas da frota fluvial duriense».

Por isso, diz Vieira da Mota, «ainda bem que nasceu e se radicou no Douro, cuja linha foi a última a dispensar as locomotivas a vapor, em termos de via larga». «A sua família (a do Jaime) era os ferroviários e os passageiros quotidianos, para cima e para baixo, os recoveiros, os estudantes travessos ou ingénuos. Uma família imensa, substituta da que nunca teve ou que há muito perdera. Família de que fora o patriarca escutado e respeitado. Bem... respeitado nem sempre.»

Uns tempos mais tarde, lá pelos idos de 88, o Quim maquinista perguntou-lhe: «– Ó Jaime, lembras-te do 25 de Março de 1977?» E o filme recuou, célere: «– Ora vai à fava, Quim! Claro e infelizmente que me lembro: foi o último dia de comboios dignos desse nome na nossa linha do Douro e no país, o dia em que nos levaram a última máquina a vapor, a impetuosa Henschel & Sohn 0187 de boa memória [carago].» Havia, pois, mais de uma década «que a mágoa se apoderara do seu coração».

Que este romance sirva, entre outros escopos, para sensibilizar os poderes e as instituições no sentido de não deixarem morrer um símbolo do Douro, a par de outros como o seu rio e as suas vinhas!

 

Quanto ao romance, ele compões-se realmente de uma viagem, cheia de viagens, onde se revêem e reconstituem «os dramas, as cenas jocosas, as disputas, as invejas e ciúmes, os enredos de muitas histórias e, principalmente, os tremendos estragos que em todos eles provocou a aparição daquela morena quando embarcava no comboio da manhã e saía à noite na estação do Juncal, todas as quintas-feiras».

Em 1988, a Companhia promoveu uma viagem especial. O Quim maquinista explicou ao Jaime que ia «correr uma vez e muito especialmente, um comboio com máquina a vapor na linha do Douro» e que ele tinha sido convidado «para pilotar a locomotiva, a pequena, elegante e muito velhinha Beyer Peacock 014».

Ficou ansioso. Mas não ficou menos o Ferraz, o antigo revisor. Há uns trinta e tal anos, tinha acabado de ser promovido, «todas as quintas-feiras ansiava por chegar ao Juncal, onde, uma vez por semana, entrava de manhã e saía à tarde uma morena de olhos verdes, cabelo doirado e ar de sul-americana desempoeirada e moderna, liberta de tabus e preconceitos», por quem se apaixonara logo que a vira, ainda era então guarda-freios. Tremia só de a ver. E não se percebe como é que, ao pedir «– O seu bilhete, menina, por favor», não aproveitava «a oportunidade para lhe deixar qualquer tipo de mensagem, escrita ou tacteada, no movimento de mãos que esse gesto requeria».

Mas era o Jaime que, mentalmente, compunha «o ambiente que pretendia para a carruagem especial, pesquisando as recordações que memorizava, umas gratas, outras menos felizes». E veja-se o desfile que Vieira da Mota coloca na selecção do Jaime: «Com certeza dispensavam o revisor, se de passeio por convite [e de borla] se tratava. Por outro lado, era uma personagem imprescindível à reconstituição fidedigna do cenário. Nunca se vira comboio sem ele. Era necessário, nem que fosse apenas como figura de estilo. Portanto, ficaria bem o Ferraz, ainda a sonhar com a morena do Juncal, pesem as décadas decorridas desde a primeira vez que a vira. E um recoveiro. Pelo menos um recoveiro havia de embarcar também no comboio. E o da Régua, com aquele ar de cigano e esboços de semelhança com o galã nacional da época, o grande actor e cantor Alberto Ribeiro, seria, quem sabe, agora encanecido, um digníssimo representante da classe. Portanto, também um recoveiro. E um estudante ingénuo. E outro vivaço, daqueles a quem mijaram nos olhos em pequenino, até ficarem “reguilas”. Para ingénuo, podia ser o loirinho, o dos amores-perfeitos. Trazia-os sempre para oferecer à morena do Juncal, que lhos agradecia sorrindo, enquanto espalhava os olhos em redor, atenta aos olhares gulosos do vivaço, permanentemente colados às pernas dela, sempre a deixar cair coisas entre os bancos, na mira das suas coxas. Coxas que ela, atrevida, não desdenhava expor, tal era a qualidade que sabia possuir.» «E também o misterioso senhor [mais um mistério!], quase encapuzado, incerto, ora prisioneiro, ora viajante a explicar, se explicação havia, as suas periódicas ausências.» Era regularmente acossado pela polícia, «ele, um puro e eterno reviralhista, desde bastante novo avesso a chefes e organizações, fosse qual fosse a situação». E o «seu grande contendor, outro visionário, embora de cariz doutrinário oposto, sacerdote católico, fundador e fomentador de um movimento social de solidariedade jovem», a “Via Única – Um só sentido”, por oposição à Mocidade Portuguesa.

E o comboio partiu: a máquina num sentido e a memória noutro. Uma viagem, cheia de viagens. Sobretudo aquela em que se deu a tragédia. «Segundo a percepção do velho viajante, sustentada apenas na sua intuição extra-sensorial, tudo não passara de um infeliz e trágico incidente terminado num lamentável acidente, ainda que muito cruel.»

O certo é que a morena do Juncal morreu. No Tribunal alguém ainda ensaiou um cenário: «Portanto, chegou à janela, acenou-lhe enquanto deitava a prisca fora, convidou-a para a sua companhia, cerrou ilegalmente a porta do compartimento, a donzela curvou-se para abrir a janela (...), possivelmente incomodada com o calor e sufocada num ambiente poluído com o fumo do seu cigarro, e o senhor, único culpado do mal-estar da pobre menina, tomado do mais reles instinto e de lascivo desejo, cingiu-a pelas ancas, desceu-lhe as calcinhas....» Chamou-se a atenção para um pormenor: as calcinhas da vítima não foram encontradas descidas no seu corpo, mas correctamente despidas e cuidadosamente pousadas no banco da carruagem! – Outro mistério!

Quem a terá matado, então? Ou foi ela que se matou? Terá sido apenas um acidente? O cego cantava na rua:

«Triste sina, triste sina/ A desta morena menina/ Parida quase sem pai/ De viúva sem esposo (...)./ «Manda a decência que cale,/ Diz a verdade que fale;/ Que tudo seja contado/ Tal e qual aconteceu/ Naquele dia em que o Céu/ Ganha um anjo e a terra um fado.» Prrrrriu prrrriiiiuuu! Prrrrriu prrrriiiiuuu!

 

Carlos Fernandes

Leiria, 14 de Maio de 2011