15 de Junho de 2013, Leiria (Fundação Caixa Agrícola)

 

(…)

Nesse tempo

Estendia-me na terra

Para olhar as estrelas

E não pensava

Que esses corpos de fogo

Pudessem ser perigosos

Nesse tempo

Marcava a latitude das estrelas

Ordenando berlindes

Sobre a erva

Não sabia que todo o poema

É um tumulto

Que pode abalar

A ordem do universo

(…)

 

Este é um excerto de um poema de José Tolentino Mendonça intitulado A infância de Herberto Helder em que o autor faz uma incursão pelos tempos da infância referindo o que nela recorda: algumas são atitudes idílicas (estendia-se na terra para olhar as estrelas), outras são lúdicas (brincava com berlindes) outras reveladoras de um estádio de inocência própria da idade (não pensava, não sabia). Esta criança, contudo, possui uma característica bem marcante - sabe olhar e questionar. Disso revelador é o facto de marcar a latitude das estrelas com os berlindes com que brincava. A distância temporal a que o autor se situa da infância dá-lhe a possibilidade de a revisitar e reconhecer que este foi um processo de crescimento marcado por uma atitude de abertura ao desconhecido, que o impulsionava à DESCOBERTA. De não menos importância é ainda a referência ao imenso poder da palavra (todo o poema/ é um tumulto/ que pode abalar/ a ordem do universo), realidade imperceptível, mas de importância capital e, consequentemente, matéria relevante de aprendizagem.

A esta hora estão a pensar: “Aquela enganou-se! Ela vem falar do livro escrito pelo Paulo Costa e não de um poema do José Tolentino Mendonça!”

Na realidade, não é bem assim. Foi um movimento espontâneo de análise comparativa que me levou a reconhecer algo em comum entre eles. Vejamos. Começando pelo título do livro que tenho em mãos – “O menino que acordava as estrelas” – também aqui temos um menino, e também temos estrelas. Embora ténue, já aqui se encontra uma semelhança com o poema atrás mencionado. Mas antes disso, importa referir como surgiu o livro, e isso é-nos revelado na primeira página, onde se lê a seguinte dedicatória: “Para o meu filho Afonso que queria uma história ao ouvido sobre o mistério das estrelas…” Ficamos pois a saber que este livro se deve a um momento de intimidade e ternura em que o pai acedeu à solicitação do filho quando este pedia o aconchego de uma “história ao ouvido” antes de adormecer. E foi assim que aos nossos ouvidos chega como toada: Era uma vez… um menino aventureiro que vivia no coração da terra da alegria e que se chamava Tristão.

Tristão era uma criança especial, ávida de saber, que se deixava fascinar pelo que os seus olhos viam. E é numa atitude de abertura ao novo e desconhecido – aqui é patente a semelhança com o poema de Tolentino Mendonça – que o faz partir à DESCOBERTA. É natural que as primeiras coisas que chamam a atenção de uma criança façam parte da realidade que lhe está mais próxima. Foi o que aconteceu com Tristão. O velho plátano junto de sua casa, “árvore envelhecida pelo fôlego vagaroso do tempo” era muito alto, tinha ramos e folhas que exalavam cheiro, e um enorme e áspero tronco, por onde era bom trepar, não sem muitas vezes, se estatelar no chão! Foram estas as primeiras escapadelas que Tristão fazia para fora de casa, impulsionado pelo seu espírito curioso e aventureiro. Lá de cima, o mundo era diferente. As folhas cá em baixo, aquelas que pareciam mãos que o protegiam quando caía, pareciam muito pequeninas, mas o céu, onde ele começou a “compreender as aves” era enorme e os horizontes que dali abrangia eram muito largos. Era assim que ia amadurecendo.

Não haverá aqui uma semelhança com a criança a que se refere Tolentino Mendonça que não se detinha e indagava o mistério das estrelas?

Na realidade, Tristão seguiu um trajecto semelhante, mas, neste caso, posicionando-se no seu lugar favorito – o braço mais comprido e mais alto da árvore –, deslumbrou-se ao avistar as estrelas. Certamente esta nova experiência alterou o seu âmbito de visão, alargando, significativamente, a sua noção de espaço.

E foi dali, desse privilegiado ponto de vigia, que descobriu uma pequena estrela, que chamou a sua atenção. Muito brilhante, e incrustada num imenso céu escuro era diferente de todas as outras. Essa atração resultou de uma particularidade – estava só e chorava. O sofrimento, a ternura, o sentido dos outros, são conceitos que também necessitam de ser apreendidos. Talvez por isso, nasceu em Tristão uma inquieta tensão que se tornou mais intensa quando sentiu as lágrimas da estrela que na sua pele procuravam conforto. E a partir de então, o uso das antíteses como alegria e sofrimento, aliados a luz e sombra, sonho e realidade, prisão e liberdade, vão tornar-se uma constante – aqui bem explícitos, talvez porque também realidade constante da vida. Sublinho LIBERDADE. A aprendizagem deste conceito requer um esforço maior, um voo ainda mais alto do que o exigido para a compreensão das aves ou a do sonho das lágrimas das estrelas. E é assim que, de entre as folhas do plátano apareceu um balão, Balão-liberdade para onde prontamente saltou e lhe permitiu partir para nova descoberta.

Assim, embarcou numa viagem fantástica movido agora pela ESPERANÇA, novo conceito nascido do desejo grande de sarar a tristeza da estrela, e que o impeliu a não parar. E, na verdade, não parou. Aprendeu então o que eram as estrelas, constelações, e todas as maravilhas do universo.

E, por motivos que não devo revelar, porque revelava a estória, nada mais digo. Apenas que a noite escura, os receios, a inquietação de Tristão acabaram por se transformar em explosão de alegria. E a palavra coração, ao ganhar evidência, põe-nos perante o reino da ternura, da harmonia, da união. E talvez seja então que Tristão fez a maior aprendizagem, a que ele próprio chegou, e que foi fruto de uma experiencia vivida e sentida: “Partir não é deixar. Partir é não regressar ao coração de quem nos vê diluir-se no horizonte”.

Na última página do livro, a par de uma explicação sumária do que é o balonismo, constelações, e estrelas, existe um apontamento acerca do nome de Tristão. Para além de lendariamente ter sido um cavaleiro da Távola Redonda, músico e caçador, penso poder referir outros atributos, não menos importantes, e que poderão ser atribuídos ao herói da nossa história: esses cavaleiros esforçavam-se por ser justos e valentes; por ser doces e piedosos com os fracos e doentes; promoviam o respeito pelo semelhante e a rectidão nas acções, e sobretudo espalhavam amor e buscavam a perfeição humana. Tudo atributos também do nosso pequeno Tristão. Por isso, meu caro Paulo, na minha opinião, não poderia ter escolhido melhor nome para o nosso herói.

Depois desta sumária análise, penso poder afirmar que esta é uma obra de forte pendor didáctico. No que se refere às crianças, é muitas vezes na efabulação da vida que julgamos existir nos outros, que tocamos a verdade da nossa vida. E na estória do Tristão há uma tónica acentuada na importância da atenção, atitude que nos coloca numa posição de abertura, de rejeição de ideias estagnadas, muitas vezes falsas. Estou convicta de que a insipidez e frustração de muitas vidas estão radicadas no facto de não termos aprendido a abrir o coração à alegria do saber.

Mas penso também que este carácter didático se pode estender aos adultos. Para eles, o livro é uma chamada de atenção para a importância dos alicerces silenciosos, os que ficarão para sempre a servir de sustentáculo ao que nós somos. O prof. e psicanalista João dos Santos dizia que o grande segredo do homem é a sua infância.   Na verdade, é aí que são tomadas as decisões que determinam o futuro. Que bom seria se todo o homem sentisse que o mundo pode ser um lugar encantatório e conservasse em si a capacidade de espanto a vida inteira!

Falámos numa procura do sentido da vida; falámos na importância da atenção a dar ao mundo; falámos dos aspectos submersos de luz e sombra e da forma como as coisas se nos apresentam. Falta referir o imenso poder da palavra, sem a qual este livro não existiria e que faz com que ele seja um poema.

Não são apenas as palavras iniciais de Tolentino Mendonça que o afirmam e que repito: Esse tumulto/Que pode abalar/ A ordem do universo é todo o poema.

Mas, e muito especialmente num outro trecho o poeta-padre define assim poesia:

 

A poesia é uma forma de procurar o sentido da vida.

A poesia é uma forma de atenção

De dar atenção ao mundo

E àqueles seus aspetos submersos,

Como a luz,

A forma como as coisas se dispõem

Ou aquilo que ouvimos.

 

Podemos pois, sem hesitação afirmar que este livro, onde numa clara intertextualidade, pairam ecos do Principezinho, é também um livro de Poesia.

Parabéns Paulo! E parabéns à Nídia Nair, ilustradora que tão bem soube captar o espírito do livro. As imagens que ilustram o texto, habilmente escolhidas à medida que a história avança, são muito apelativas e suscitam a criatividade de cada um. Chamo a especial atenção para a capa, que patenteia tons escuros, talvez para realçar a claridade e o brilho interior que se encontra nas estrelas e percorre todo o livro e, por extensão, se deve encontrar em cada um de nós.

Maria Celeste Sousa Alves