A infância é um lugar tão perto
[A propósito do lançamento do meu livro Guarda-me contigo entre as papoilas]
Cortes, em 17 de Maio de 2014

Uma palavra prévia para dizer que o texto que vou agora ler não é escrito de acordo com o acordo ortográfico.
Em primeiro lugar gostaria de pedir desculpa a todas as entidades oficiais, e a possíveis pessoas importantes por não terem sido convidadas a estar presentes.
Gostaria de fazer alguns agradecimentos. Desde logo, e indistintamente, a todas as pessoas presentes que se deram ao trabalho de vir até aqui para não me deixarem só. Agradecimentos especiais ao Carlos Fernandes, enquanto editor e enquanto amigo, ele que tem sido uma pessoa essencial para a vida cultural de Leiria e arredores. Um agradecimento grande ao Fulvio (um rapaz cheio de talento que é namorado da minha filha mais nova), que fez os desenhos do livro, incluindo o da capa e contracapa. Um agradecimento à Maria que preparou um PP alusivo ao livro, que foi muito trabalhoso.

Guarda-me contigo entre as papoilas começou a ser escrito em 2001, ainda o meu pai era vivo e é todo ele alusivo às “coisas da vida”, que é a vida de todos nós: a família, os pais, os tios, as perdas, a infância e as brincadeiras, o amor e a amizade, os amigos, as coisas importantes. É, talvez, sobre o início e o final das coisas que nunca acabam. Para mim, é um livro de carinho. Permitam que vos conte uma história.

Tive uma infância de liberdade. De correrias pelos campos, de esconderijos nos arbustos ou de finais de tarde junto à noite. Trepei às árvores mais altas pelo menos tantas vezes quantas as que caí de muros e paredes desproporcionais para o meu tamanho. Persegui sardaniscas e pássaros mais ou menos incautos. Também fui perseguido em quintas e outras propriedades por me apropriar de frutos de árvores num tempo em que para mim o mundo era um sítio sem muros ou fronteiras. Para grande preocupação da minha mãe, aprendi a não ter na chuva um obstáculo às longas permanências fora de casa. Tempo e distância fundiam-se em algo difuso e mágico. Por isso, existir era algo simples e permanente, em que a imaginação e a realidade eram indistintas. Em lugares secretos fui um pistoleiro corajoso e destro no manejo do colt. Um tronco de uma árvore tombada era o meu cavalo e os índios temiam a minha fama. Também aprendi a fazer os movimentos de mãos de Mandrake, que nunca resultaram, para minha perplexidade e apesar da insistência.
Tive uma infância de liberdade quase selvagem. Aprendi a beber água dos pequenos charcos sem agitar o seu fundo e talvez por isso e mais algumas tive as doenças todas que era para ter e depois já pude beber água de todos os charcos do mundo, poços e até água choca. Ainda hoje por todo o meu corpo trago as cicatrizes de feridas que nunca me pareceram mais importantes do que as diversões e aventuras que a elas me conduziram. Foi também nesse tempo que ganhei outras cicatrizes enquanto olhava as estrelas na perseguição de grilos. E uma cicatriz conduziu-me a outra cicatriz que eram feridas também. Uma das primeiras feridas terá sido a primeira morte da minha vida, que foi a do meu avô materno. Era ele que me levava da aldeia até ao rio em cima da mula, colhendo as amoras da minha vida.
Esta infância de imaginação quase sem limites devo à minha família, e quando digo família refiro-me aos meus pais, tios e avós. A minha família é oriunda de uma aldeia muito para o interior deste país e, nunca mais aí tendo regressado, nunca deixou de lá estar. Não sei se eles deram por isso, mas com eles aprendi que tudo o que é importante é o que trazemos no coração e que somos estrangeiros de tudo o resto.
Como vocês, também tive pais. O meu pai jamais aceitou ter saído da sua aldeia e por isso, depois de reformado, era aí que gostava de passar o seu tempo. Eu gostava de passear com ele à noite, na nossa pátria, nesses dias quentes de verão. A minha mãe, durante muitos anos, todas as noites sonhou que estava na sua aldeia (que era a mesma do meu pai e dos meus tios). Creio que apenas deixou de ter esses sonhos já na casa dos cinquenta anos. A minha mãe acreditava no Deus da Igreja católica, nos seus padres e santos. O meu pai tinha dúvidas e só quando estava atrapalhado tendia a chamar por Ele. Detestava padres. Seja como for, e pelo sim, pelo não, era eu muito criança quando a minha mãe trouxe um Cristo pregado numa cruz, que disse ser Deus, a morar no quarto onde eu e o meu irmão dormíamos. Explicou que os homens eram muito maus e o tinham crucificado e que ainda que ele fosse todo-poderoso, pois era Deus, o tinha permitido para redimir os homens de todos os seus pecados. O seu amor não era possível de ser expresso em palavras. E ali ficou, assim pendurado, e morava no meu quarto.

Sei que nestas alturas o autor do livro é o centro da atenção. Mas este é um livro de poesia e a poesia é uma coisa especial que quando acontece na vida de alguém a marca profundamente e para sempre. Não sabendo o que é a poesia, devo acrescentar a esta confissão, de ignorância, uma outra: também não sei o que é vida. Apesar disso, desde há anos que me vejo dentro dela. Foram várias as vezes que tentei compreendê-la, mas de todas elas resultou mais ignorância. Creio que esta ignorância é geral a tudo o que é maior que eu. Para quem tenha um contacto real com a poesia, compreenderá que eu diga que esta é algo de tão pessoal e íntimo que partilhá-la só pode ser maior que o mundo. E as coisas que são maiores do que o mundo partilham-se com quem se gosta: os amigos. Deixem-me ser peremptório: vocês são o motivo por que eu estou aqui.
Para quem não saiba ou se lembre, recordo que desde 2008 que não apresento livros em Leiria (o último foi apresentado no ano de 2011, na Sociedade da Língua Portuguesa, em Lisboa), e mesmo o de 2008 foi apresentado em circunstâncias muito especiais na igreja de São Francisco. Creio que o último livro a ser apresentado, em circunstância semelhantes às de hoje, terá sido um livro, de poesia, chamado O sinal de Jonas (1999), apresentado igualmente nas Cortes, no restaurante MOINHO DO ROUCO. De facto, entre 1995 e 1999, o que corresponde a 7 ou 8 livros, o programa foi sempre constituído por duas partes: a apresentação do livro, propriamente dita, e depois um jantar de convívio onde se passavam a mais variadas coisas. É o que hoje tentaremos fazer. Na verdade, o que mudou para voltar a um figurino passado? Sobre um dos motivos prefiro falar logo, no jantar. Motivo igualmente importante é o que respeita à natureza do livro, mas não só. Depois de tantos livros publicados, cheguei a acreditar que toda a poesia é oração e que assim sendo dispensaria o lado público. Mas hoje estou aqui para expressar-vos a minha gratidão. Que não tenham dúvidas: é para mim um privilégio poder fazer parte das vossas vidas.
Espero que não me considerem piegas. Mas é que realmente creio que os amigos constituem o que de mais essencial podemos ter na vida. Um filósofo chamado Lévinas escreveu que nos Outros se revela a presença de Deus. Eu, que nada sei sobre Deus, sei que o meu sentimento por vós transcende o que vejo ou ouço. Nesse caso, e caso Deus exista, então Ele está entre nós, no meio de nós. Em cada um de nós. Caso não exista, existimos nós, agora e aqui, e isso deve tornar a nossa vida com sentido.
Os amigos acompanham-nos durante a vida e também nos últimos momentos desta. Durante a criação deste livro, para além dos meus pais e tios, dois amigos muito queridos faleceram: o António Bernardo, em 2005, e o José Pestana Cruz em finais de 2013. Jamais os esquecerei. O Zé Cruz poucos dos presentes, para além da Maria e do Paulo José Costa, o conheceram pois vivia em Faro e era das lides profissionais. Foi uma das melhores pessoas que conheci. O Bernardo era conhecido de muitos dos presentes e era, de resto, uma presença regular nos Serões Literários das Cortes. Por mais tempo que passe, serei sempre seu amigo. Acreditem que não há dia em que não pense nele. São pessoas que me farão sempre falta e que também estão presentes neste livro. Não estou certo sobre se em vida lhes terei expressado o quanto gostava deles e respeitava. Demasiadas vezes, talvez, tenho deixado por dizer aos meus amigos, esses amigos, o quanto lhes quero e devo. E não desejo que continue a ser tarde demais.

Muitos de vós têm constituído exemplos com que tenho tentado aprender a existir o mais dignamente possível. Alguns de vós conheço há tanto tempo que a minha vida se confunde com a vossa. Em relação a alguns tenho dívidas que jamais poderei pagar. E quero ainda mencionar os meus amigos dos Serões Literários das Cortes com os quais me encontro há cerca de 15 anos uma vez por mês. Temos uma aventura que nos liga no coração. Sei que por vezes sou insuportável com as minhas piadas ou até estranhas irreverências, e eles suportam-me com carinho e condescendência. Já nos conhecemos muito bem, creio. Também quero dizer que há aqui amigos de consultas. Pessoas que são muito especiais para mim. Há também aquelas pessoas que talvez eu não conheça. Sou-lhes muito reconhecido.
Permitam-me, finalmente, destacar alguns amigos mais recentes, que são os meus queridos amigos do taekwondo, que conheço há cerca de dois anos. Nem sei bem como explicar-vos o respeito e carinho profundos que tenho por estas pessoas com que estou quatro vezes por semana, durante cerca de duas horas por dia. Há algo especial que nos une quando nos esforçamos muito tanto física como mentalmente. De especial, também, quando o respeito, a humildade e a amizade estão presentes em todos os momentos e estes são exemplos que vêm de cima, dos mais graduados, a começar no mestre, que considero uma pessoa fora do comum.
Quando estamos com os amigos, talvez já tenham dado conta, regressamos à infância, à meninice ou à puberdade. Divertimo-nos e comungamos da vida. É o que nos une e nos torna melhores. Quando os amigos se divertem, é como se fossem crianças ou adolescentes. Brincam e dizem disparates. Fazem tropelias, pregam partidas.
Afinal, talvez estejamos aqui por culpa de todos e de cada um. Múltiplos caminhos e muitas portas nos conduziram aqui, a este momento único, em que não há coincidências nem acasos. Por muito que um dia tenhamos estado longe uns dos outros, ignorando até de cada um a sua existência, hoje estamos aqui e estamos juntos. Pensem bem: nenhum obstáculo foi capaz de impedir-nos de estarmos aqui. E este encontro não começou hoje ou ontem, mas num tempo que não sabemos nomear.
Por isso, termino deixando-vos uma pergunta: Já pensaram na sorte que temos de estarmos juntos aqui, numa mesma vida, num mesmo tempo e lugar?
Obrigado.

Carlos Lopes Pires