Casa-Museu João Soares, Cortes (Leiria), 1 de Abril de 2017

1. Intervenção de Luís Vieira da Mota

 

Senhor, eu não sou digno

É o título que dei à minha parte na apresentação, partilhada com Pedro Jordão, deste livro do poeta Carlos Lopes Pires. E por me considerar inadequado a esta tarefa é que confesso, parodiando o centurião do Evangelho: “mestre, eu não sou digno de entrar nesta vossa ignorância”. Todavia, apesar desta confissão leal de incapacidade, o poeta Carlos Lopes Pires insistiu. Imaginei, escreveu ele, a apresentação deste livro a dois: o Pedro Jordão e você. Mais grave ainda: exigiu, com um irrevogável “tem de ser você a apresentar este meu livro”. Um convite destes, convenhamos, é o reconhecimento de qualquer coisa, como por exemplo: para falar de uma qualquer ignorância nada melhor do que contratar um grandessíssimo ignorante, ou então a amizade a ver méritos que mais ninguém vê, que a amizade tem destas coisas, e acredita. Esperemos que a fé de Carlos Pires não resulte em desilusão. Nestas ocasiões é costume, e muito conveniente, o apresentador aludir a textos dos grandes filósofos que se tenham debruçado, analisado e escalpelizado poemas, poetas e poesia, e Carlos Lopes Pires sabia, e sabe, que eu não o vou fazer, porque ele sabe que eu não sei nada disso. Daí a possível desilusão. Mas ele também sabe o que eu sei, que para apresentar este livro não é preciso, de todo, ser filósofo ou saber de filosofia. O livro nem sequer trata do saber, ou de ciência; trata, fundamentalmente, do que resta após nos despojarmos dos lixos que pretensos saberes ou pretensas ciências depositam na nossa mente. (E cito, da pág. 142)

há dias disseram-me

que não há nada de útil

na minha poesia

 

e eu concordei

 

todos os dias

a limpo de utilidades

e outras coisas

 

demais.

Continuo, portanto, sem enxergar a razão de tão exigente convite para apresentar este livro. Também não usei o dicionário para o ler. Ao invés de certos autores, que parecem escrever com o dicionário de sinónimos ao lado, produzindo poesia quadrada a régua e esquadro, a escrita deste poeta utiliza palavras de todos os dias. Embora fale muito de deus, o autor dispensou as palavras de domingo, porque o deus de que fala e com que fala não exige, nem quer rituais. O livro em si, como se pode ver, é um belo objecto. A qualidade da encadernação, da impressão e da composição, e a riqueza singela das capas e das ilustrações fazem deste livro um objecto de arte. Mas isto não faz com que cada poema nele contido seja um objecto de arte. Arte sim, mas não objecto. A poesia não precisa de corpo, basta-lhe a alma. Ou o espírito, para os agnósticos.

Já lá vão uns minutos de palavreado e ainda não demonstrei, e continuo sem saber por que razão Carlos Pires me exigiu este esforço. A não ser que ele pense que sabe que eu sei que não precisarei de outro dicionário para ler o que não está escrito. Pode estar enganado. Contudo é verdade: para o ler basta uma hora: à terceira vez já se consegue ler numa viagem de Alfa entre Pombal e Porto. A quarta vez já será necessário ir no Inter Cidades. Para a quinta vez é melhor embarcar num Inter-Regional. A leitura será mais rápida se o leitor dispuser do tal outro dicionário para as linhas em branco, que é assim como se conseguisse andar por entre os pingos da chuva. (pág. 141)

os meus poemas

não tratam de coisas importantes

 

apenas falam de chuva,

não sobre a sua natureza

 

ou por que chove

 

mas porque chuva

é o que vem nos meus poemas

Mas esse outro é um dicionário impossível nas livrarias e na Internet.

Contudo nem é a apresentação do livro que me sufoca, apresentá-lo é fácil, basta dizer, livro aqui estão os teus leitores, leitores aqui está o livro “a minha, dele, poesia é uma ignorância”. O que me tolhe o raciocínio é não encontrar razão que justifique a escolha calamitosa do Carlos Pires. É que nunca, jamais, em tempo algum, me passou pelo bestunto que algum dia me acontecesse esta desgraceira de apresentar um livro dele, em especial este, que para ele, eu sei, é muito especial. E ainda, para agravo do meu aperto, ele dizer que é por isso mesmo.

Então a obsessão, o bloqueio, a vontade irresistível de desistir, de enviar um e-mail ao poeta, não para lhe confessar a incapacidade, o que seria uma vergonha, mas para lhe extorquir a confissão do porquê de me sujeitar a este sofrimento. Dei então comigo a olhar para trás, a fazer replay do percurso comum que haja feito com este poeta. Um livro dele, e outro meu, apresentados na mesma sessão; o serão poético partilhado na igreja de S. Francisco, subjugado ao tema Poemas de Silêncio e Deus…

Agora, já tranquilizado e liberto dessa malfadada obsessão, passo, finalmente, a poder tratar da apresentação da obra em causa e que dá pelo título “a minha poesia é uma ignorância

Pode dizer-se que o livro, embora o índice apenas refira cinco, tem seis partes.

A parte zero, a tal que não é referida no índice, é a belíssima e muito sentida dedicatória em homenagem a um querido amigo, companheiro de muitos dos nossos serões literários, o Dr. António Rego.

A primeira parte foi designada “ainda seja tempo”, da qual vou ler o que me parece um dos poemas mais significativos, (pág. 17)

que venha ao meu coração

a alegria das tuas coisas

 

e ainda seja tempo

 

porque às vezes sou cego

e as minhas mãos  não sabem

descer nas rosas

uma coisa que trago comigo

 

e ainda seja tempo

 

para que tudo seja

a força convergente da luz

 

e água com água

tudo seja ainda tempo

Que seja ainda tempo de despojar, de abraçar os seres, as coisas, (pág. 30)

senhor

não queiras saber

de onde por onde andamos

 

deixa que descubramos

em tudo azul

 

na chuva e no medo

e também na sombra de passarmos

entre as coisas e as casas

 

e aceitemos a morte

como o fim de tudo

 

o que foi inútil

Há nesta prece do poeta a esperança (ou a certeza?) de que a morte não será o fim de tudo, apenas o fim do que foi inútil.

Só mais uma citação dos poemas desta primeira parte do livro, o da página 33, do qual saliento

e ensina-nos o dom

das coisas que não se alcançam

 

a medida certa no coração

a leveza dos dias em que tudo pesa

e nos torna insectos

 

ensina-nos a claridade

Ainda seja tempo de escutar a voz do poeta quando termina esta parte do livro, oferecendo,

vê se entendes

 

vim a este mundo

para estar contigo

Percorre-se esta primeira parte sentindo-se a necessidade de purificação, e o poeta sugere, oferece, diz que há a possibilidade do esquecimento perdoado por tudo o que se fez e não se fez bem feito, daí o convite ao abraço, a oferta do coração… ainda seja tempo.

E agora a segunda parte “azul e coisas do chão

Antes de começar a dissertar sobre a segunda parte deste livro, é minha obrigação confessar que a sua leitura já não se faz em menos tempo do que o tempo que demora, de comboio, a viagem entre Lisboa e Porto. E a razão encontra-se na pág. 66

hoje comecei o dia

por doer-me num poema

não sei em que parte da vida

ou das árvores

me doía

nem se era uma flor

um insecto

ou um outro animal qualquer

era talvez o mundo

a doer no meu quintal

É que quando se chega a uma estação qualquer com uma dor assim, suspende-se a viagem para dar tempo às lágrimas. Pelo menos até que o azul, (pág. 52)

creio nos animais e seus insectos

creio nos dias muito frios

do silêncio e ruas desertas

já se disse que são dos pássaros

pois eu creio nos gestos dos pássaros

em toda a sua infinitude

e também creio nos amigos

e suas casas de areia e noite

creio em tudo o que é

azul

E é por isso que o tempo necessário para entender, ou tentar entender este livro, aumenta a cada estação. É preciso regressar um pouco atrás, para relembrar (fragmentos do poema da pág. 45)

no princípio era o azul

depois é que veio o insecto

quando os homens vieram

as suas mãos feridas

nasceram uma tabuada para a dor

vê como seria fácil sentares-te comigo

no lado de dentro que te escreve

e eu dizer-te alguma coisa feliz

mas é que hoje o mundo

está muito fora

do azul

É nesta parte do livro que as formigas abundam nos poemas de Carlos Lopes Pires, que confessa (pág. 70)

vivo num pequeno quintal

entre sementes e formigas

nos dias de chuva

sento-me a ver como o chão

é tão profundamente azul

mas nem mesmo

os muros em redor me cercam:

é para cima que olho

eu e as estrelas

Permito-me, aqui, um comentário muito prosaico, todo terra-a-terra. A metáfora corresponde à verdade. Quem souber o que eu sei, compreenderá. Há, até, um hábil pormenor curiosíssimo neste poema. O poeta utilizou pontuação, colocou dois pontos no final do verso “os muros em redor me cercam”, e assim salienta a única direcção possível do seu olhar em solidão. E liberta-se. Não hão-de ser aqueles, ou outros muros, que o cercam…

Pode então o poeta permitir-se um pouco de repouso e confessar (pág. 59)

construí

a minha ignorância

entre poemas e formigas

E construiu a tal ignorância enquanto, (pág. 71)

os melros devagar cantavam

nem formigas nem chuva

as laranjas tinham dentro

azul e azeitonas

o silêncio movia-se

com as sombras

Deus cuidava do meu quintal.

Há uma interrogação pertinente. Pode colocar-se agora. Todo este livro está escrito com letra minúscula, significando, com certeza, que não há palavras, como não deve haver seres, mais importantes, ou mais dignas, do que outras. Apenas o nome Deus, e nem sempre, aparece escrito com maiúscula. Espero que não seja gralha tipográfica. E se for? Acaso ou mistério?

 Tranquilo com Deus a cuidar do seu quintal, o poeta segue em busca de “as crianças da chuva”

É a mais curta das cinco partes do livro. É também, porventura, a mais límpida. São fundamentalmente duas as imagens que transporta: crianças, (onde a inocência) e chuva, a água mais cristalina porque ainda não contaminada com a lama do chão.

Começa com um perfume de saudade (pág. 75)

éramos todos crianças

olhávamos a chuva

nas janelas

o sol inclinado

através das árvores

olhávamos tudo muito longe

e queríamos que um dia

tudo fosse dentro

fomos crianças

E depois uma sentida incompreensão por alguma tamanha injustiça (pág. 80)

quando o ergueram naquela cruz

entre alfazema menta hortelã

e uma ferida aberta no céu

ele não era um homem.

pai

porque lhe deste

tamanha responsabilidade e dor

se ele era apenas

uma criança da chuva?

São vários os poemas dedicados ao seu filho ao longo do livro. Mas é nesta parte, “as crianças da chuva,” que encontro os mais significativos. (pág. 82)

o meu menino de todas as coisas

que invisíveis nascem

das árvores e dos pássaros

das noites povoadas de passos

e laranjas doces

e que nas águas nunca

por outro lado os seus olhos leva

as suas mãos de terra e nunca

o meu menino

que dorme nas rosas

e que por onde vai

as rosas

E sempre nesta toada, página após página, para encerrar esta parte totalmente cristalina com esta delícia, (Pág. 90)

uma criança da chuva

veio junto de mim e disse

toma um segredo

e  então abriu numa mão

um redondo

muito azul

Deus vive no meu quintal

Vai ser para todos os leitores a parte mais incompreensível desta obra. Difícil para a maioria, imodesta para muitos, audaciosa para mais uns tantos e quase blasfema para os mais canónicos. Deus anda ali, tu lá tu cá com ele, confidencia-lhe desalentos, apresenta queixas dos homens, diz-se cansado de existir. Então (pág. 112)

o mesmo poeta

perguntou a Deus

agora

que não existes

como posso ainda

estar contigo?

E a resposta surge, ou vinda da voz de Deus ou da boca do poeta cheia de experiência após muitas conversas no seu quintal (pág. 113)

nunca procures Deus

é como procurares o lugar

do arco-íris

o que é importante

frutifica na ausência

importante

não é onde a luz começa

mas o que nela é

e não queiras respostas

contenta-te

com as perguntas

É-me impossível abandonar a dissertação sobre esta parte sem vos ler, não todo, mas algumas linhas do último poema. (pág.124)


            tu senhor

criaste as flores

e as abelhas

e deixaste

que usássemos a luz

e tudo o que era abundante

e um de nós

que eras talvez tu

elevámos em humilhação

e morte.

 “a minha poesia é uma ignorância,

escreve Carlos Lopes Pires a intitular a última parte e, envolvendo todas as outras partes do seu livro. E vamos saber porquê (pág. 127)

eis por que sou ignorante

não leio

nem colecciono factos

tudo o que faço

é guardar o que não tenho

agora tenho um quintal

de onde se vê o mundo

que é como

quem diz

a minha ignorância

Se acreditarmos na sua palavra, eu acredito, a tal auto intitulada ignorância vai aumentar, tanto quanto mais subir. E todos desejamos que suba bem alto (pág. 128)

ele subiu a uma árvore

para avistar o mundo

mas apenas constatou

que por onde quer que vá

ou suba

a sua ignorância estará sempre

muito para além

do horizonte

Quanto a citações do livro, findo aqui. Não esqueçam: à centésima vez é necessária uma viagem de Valença a Faro para se ler o livro. Olhem para a cara do doutor. Completamente desiludido, a pensar, mas sem coragem de o dizer:

Mas por que carga de água, para não dizer outra coisa, isso é já a seguir, andei a teimar com este estafermo para apresentador do meu livro! Afinal o Pedro Jordão já havia dito tudo!

É verdade. Eu enganei o poeta Carlos Lopes Pires. Eu sei que ele sabe que eu sabia que ele queria, e bastava, ter dito simplesmente… Mas vou dizer agora, com alma e coração:

Muito boa tarde minhas senhoras e meus senhores,

Este livro é…

Olhem, não sei o que é,

Mas leiam-no e amem-no assim ou mais do que eu o amei.

Luís Vieira da Mota

Cortes, 1 de Abril de 2017

 

2. Intervenção de Carlos Lopes Pires (autor)

A impossível explicação dos amigos

Gostaria de fazer alguns agradecimentos, começando pela vossa presença, sem a qual esta apresentação não valeria a pena. Depois agradecer à Casa-Museu João Soares na pessoa da Dra Rita Justino, igualmente companheira dos Serões Literários das Cortes, a cedência generosa desta sala. Ao meu amigo e editor Carlos Fernandes que faz o favor de me fazer muitos favores, entre os quais ser paciente. Ao Pedro Jordão (o músico que caiu na minha poesia como se fosse um milagre) e ao Luís da Mota (o escritor que tem um quintal do tamanho do mundo) e que aceitaram a missão, talvez laboriosa, de falar sobre a Obra e o livro de alguém que nem sempre foi para os amigos aquilo que eles têm sido para ele, e que disso não pede desculpa, mas unicamente redenção. Agradecer à Maria a compreensão por me encontrar frequentemente fora deste mundo discursivo. A outros, que não nomeio, agradeço também outras coisas que eles sabem bem.

Quero igualmente fazer um agradecimento muito especial a alguém que está demasiado longe para poder estar aqui hoje. Refiro-me a Fulvio Capurso (marido da minha filha mais nova), o meu artista preferido, cujo talento e sensibilidade vieram dar à minha poesia uma companhia visual muito especial e que sempre me comove. Hoje não quero deixar de vos mostrar algo mais sobre Fulvio e pedi ajuda à minha filha Ana, tão distante no Uruguai, que me arranjasse algumas fotos. Eis o que preparei, começando com uma pequena apresentação que pedi ao próprio Fulvio que fizesse de si.

            * * *

Quero, pois, hoje falar-vos da importância das coisas que costumamos dizer que são do coração. E a que podemos dar vários nomes: carinho, amor, amizade, fraternidade. E gostaria de começar por falar-vos uns segundos de Pablo, o meu menino de todas as coisas. Aquele que está sempre comigo. O meu filho pequenino e tão querido, que aparece em diversos poemas deste livro. O meu menino da sábia inocência, e que tantas vezes me perco a olhar. O meu tão amado menino com quem voltei a aprender novos nomes para sentimentos antigos. A nunca ter demasiados pássaros numa só árvore. E que por onde quer que vá levo comigo, carrego no meu coração.

Este livro é dedicado a um amigo que faleceu recentemente. Um amigo bastante mais velho que eu, que foi meu aluno quando eu andava nos trinta e poucos anos e ele nos cinquenta e tal. Eu que nada sei sobre os mistérios da morte, digo-vos que um amigo me faz sempre falta. É essa falta que me entristece. Durante muitos anos fui conversando e convivendo com o António e isso, compreendam, mudou com a sua morte. E quando pronuncio o seu nome não é em vão que o faço, e encho-me silêncio.

Em Julho de 2016 a minha mulher e eu fomos visitá-lo e à sua Deolinda a Tomar, onde estavam a residir. Passeámos naquele pequeno bosque junto ao rio Nabão. Foi um dia de muito calor e muitos peixes. Havias peixes por todo o lado. As folhas das árvores tinham peixes. As palavras tinham peixes. Havia peixes no abraço com que nos despedimos “até breve”. Mas faleceu antes disso, em finais de Novembro, a caminho de tomar café com um amigo. Tombou a escassos metros desse café. Era um dia frio e havia demasiados pássaros para uma só árvore.

O António Rêgo gostava muito de conversar. Gostava muito do convívio. Ele sabia que há no convívio com amigos algo que se acrescenta sempre. Que se ganha. Algo que fica. O convívio com um amigo é uma espécie de conta de multiplicar. E que tem António Rêgo e as coisas do coração a ver com poesia, e este livro?

Sei que há gente que julga que a poesia tem que ver com coisas “importantes”, coisas de pôr em bicos de pés, prestígio, uso de palavras rebuscadas e discursos afins. Permitam que vos fale sobre aquilo com que acredito que a poesia tem que ver.

Creio que existe em cada um de nós uma zona, um espaço, uma coisa que jamais conseguimos tocar. Algo que não conseguimos expressar. Uma espécie de segredo. Algo que adivinhamos, pressentimos, mas que não sabemos. A isto chamo o ponto cego da existência. É este ponto cego da existência que dá às coisas um mais-que as próprias coisas. Porque eu sei que lá está, sinto a sua presença, dirijo-me a ela, e no entanto não faço a mínima ideia do que é ou de como é. Quero dar-lhe um nome, mas não consigo, pois todos os nomes escasseiam. O ponto cego da existência é o que é, desde sempre e sem que o saibamos ou conheçamos. A poesia, digo-o já e sem rodeios, é do domínio do-que-não-há. O ponto cego da existência é, permitam-me o exagero, profundamente inalcançável. Aqueles que se atrevem a olhá-lo fazem-no por breves momentos. E é talvez por isso que, de alguma maneira, o poeta é um estrangeiro. Por onde quer que vá, e enquanto tal, o poeta é sempre um estrangeiro, pois a poesia não é apenas do domínio do que do-que-não-há, como é igualmente do domínio do-que-não-se-tem.

Sendo agnóstico, quando me dirijo a Deus abro uma janela onde mão alguma alcança a noite. Respiro e o que respiro é uma distância que há em mim e que jamais toco. A poesia que me importa abre para fora dos nomes. Há quem diga que nomeia o indizível. Pois bem, este será um mistério da poesia: dizer o que não pode ser dito. O Homem usa a linguagem escrita e falada, todavia estas mais não são que revelação do inalcançável. Revelação do que não cabe. A existência de cada um de nós é uma coisa incabida.

Já o disse atrás: o poeta é um estrangeiro. E nesta demanda de um-sem-lugar encontra o amor. Porque também o amor descabe e é um sem-lugar. O amor faz crescer as árvores. Digo isto porque pretendo que fique claro que creio na poesia como abertura para o Outro, pois é nele que se revela, igualmente, esse inalcançável ponto cego da existência. Creio numa poesia de generosidade, gratidão, dádiva, compaixão, perdão. Creio na poesia como o abraço entre dois amigos. Por isso, reafirmo: os amigos fazem crescer as árvores.

Mas o que é um amigo? O que é essa coisa chamada amizade? Que espécie de sentimento é este, que nos faz crer tanto nos amigos, confiar neles como se donos fossem de poderes especiais? Partilhar com eles alegrias, dores, ou sofrimento? Que magia há nos amigos, pergunto-vos, que nos faz crer que tudo neles é transparente e luminoso?

Ao longo da minha vida tenho assistido a alguns factos muito misteriosos. Um amigo tem poderes curativos sobre nós, prolonga-nos a vida, protege-nos da chuva quando nos dá a mão ou toca um ombro. Se estamos tristes ele chega e com uma palavra impronunciável cura-nos da tristeza. Inexplicavelmente, os amigos têm o poder de saciar-nos da fome ou da sede. Quando estamos exaustos, tão cansados, vêm junto de nós e sorriem, e então vamos por onde vamos. Os amigos fazem-nos crer em coisas que só existem para eles e partilham-nas, repartem-nas com as mãos, e tornam-se nossas também.

Os amigos não precisam de cartas de recomendação, de juramentos ou palavras de honra. O que dizem serve uma vez e para sempre. Aos amigos perdoamos o que não se perdoa a ninguém, pois aos amigos outorgamos a bondade dos defeitos, o direito à imperfeição.

Os amigos não mentem: contam-nos versões da verdade. Aquilo que nos outros é mentira, nos amigos é força da imaginação. É que aos amigos liga-nos algo que não nos liga a ninguém: o segredo da amizade. Porque a amizade é uma coisa de magia, que purifica, compreende, transforma. A amizade cura.

Um amigo jamais esquece outro. Poderão passar anos, mas nem a morte pode separar-nos de um amigo, pois ele ficou connosco desde o primeiro abraço, desde a primeira vez que tocámos o ombro um do outro. Quando nos disse a palavra autêntica.

Anda por aí tanta gente a impingir Deus aos outros. Por que não tentam, apenas, ser amigos? Existe algo de santidade no abraço entre amigos. Amigo é aquele que espera de mim humanidade e comigo partilha a sua. Não espero de um amigo que seja santo ou flutue acima dos telhados da cidade. De um amigo espero apenas a bondade do seu pedaço de humanidade; o perdão, a compreensão pelo meu pedaço de humanidade. Que seja para mim uma metade e eu a outra que sou para ele. E que seja de todos o mais próximo de mim. Que aceite os meus erros e fraquezas e me retribua com o seu abraço de imensa grandeza. E por isso digo que a amizade é uma coisa abençoada. Não é algo que se compre, se troque, se venda ou peça emprestada. A amizade é uma dádiva, e não tem peso ou medida. A amizade não é calculista. Não depende disto ou daquilo. Ela é simplesmente o que é, pois a amizade é inocente, e só o que é inocente perdura.

A amizade não se mede por palavras. Existem amizades silenciosas, recatadas, amigos que nos tocam de longe ou com simples gestos verdadeiros. A amizade não precisa de explicações. Ninguém sabe de onde vem, de que matéria é feita, mas todos sabem reconhecê-la quando chega. Não precisa de adjectivos, nem de justificações, e por vezes cai dentro de nós como um sentimento que nos torna muito maiores que a nossa própria vida. Se não temos amigos vivemos e morremos sozinhos.

E no dia da nossa morte, amigo seja aquele que pronuncia o nosso nome no silêncio do seu coração, e o diz como se perdesse uma coisa de valor incalculável.

Os amigos fazem crescer as árvores.

Carlos Lopes Pires

Cortes, 1 de Abril de 2017

                          

3. Intervenção de Pedro Jordão

CLP – um poeta abridor de janelas

Nota introdutória

Tive oportunidade de ler quase todos os livros até hoje publicados pelo CLP. Como amigo, ofereceu-me todos os que não se achavam esgotados. Li e reli a maioria dos poemas. Fui até um pouco mais longe porque musiquei muitos deles: até hoje cerca de 60, 24 dos quais já editados no duplo CD intitulado ERA TÃO AZUL.

Mas surpreendeu-me a escolha do Carlos: “serias tu de parceria com o Luís da Mota.”

Naturalmente senti-me lisonjeado: eu, um zé-ninguém da literatura... Ainda tentei esquivar-me, mas a insistência do Carlos trocou-me as voltas, argumentando com o facto de ter musicado umas dezenas de poemas dele. Por isso aqui estou, lisonjeado mas feliz pela vossa companhia.

Tive desde logo a tentação de intitular este meu comentário: CLP, o poeta das formigas – tantos são os poemas em que as formigas, mas também as aves, assumem protagonismo, acenando das janelas que o poeta vai abrindo.

Finalmente quero esclarecer que este meu comentário se refere exclusivamente à obra poética de CLP.

A escrita poética

A poesia do Carlos não é espectacular. Não ofusca, não faz impressão aos olhos de tão brilhante, não é bombástica, não nos abana os tímpanos como trombeta de anunciar façanha épica. Não sobressalta, não embasbaca, não assombra, não usa sapato de salto alto para parecer maior do que é. Não precisa de pintar o cabelo para disfarçar a idade porque não tem idade, não precisa de dicionário para se compreender porque se compreende normalmente sem dicionário. Reconheço que num caso ou noutro nem o dicionário nos ajudaria a compreender exactamente a vivência do poeta, sobretudo quando ele abre uma janela interior e pretende comunicar uma experiência que escapa à vulgaridade. Mas já sabemos que há sempre um desfasamento inevitável entre o sentido que o escritor atribui às suas palavras e o sentido percebido pelo leitor. É da natureza da comunicação verbal.

A poesia do CLP é omissa naqueles artifícios que ajudam a fazer passar uma imagem de sucesso rápido, imediato, espampanante. Ele limita-se a deixar fluir a sua poesia com a naturalidade serena de uma fonte de água límpida.

Os seus versos não têm uma métrica certinha obediente aos padrões estabelecidos? Não, não têm – que pena! –, com excepção de alguns poucos sonetos. Os versos dele não rimam? Pois não, não rimam, a não ser ocasionalmente. É certo que a rima por vezes ajuda a mensagem a entrar pelo ouvido... quando não tem o efeito oposto. E por vezes deparamos com certos poemas que nos parecem inconclusos – que pena! –, poemas que não terminam com o ponto final ou equivalente, como mandam as regras, uma espécie de versos sem fronteiras, que aparentemente não começam nem terminam logicamente... E tais poemas deixam-nos como que em suspenso? Pois é verdade que sim. Mas felizmente que sim! A poesia de CLP é uma poesia de liberdade, em que as referências aos níveis mais profundos da vida humana ocorrem com toda a naturalidade e não surpreendem, fluindo como a tal água que brota da fonte límpida sem precisar de canalização. A propósito de canalização, diria que a poesia dele não é planeada, não encaixa numa formatação prévia nem posterior, nem tão-pouco segue os trâmites de produção alheia: tem de facto a marca inconfundível da personalidade do autor. Isto, para quem o conhece, é óbvio.

[ver contra-capa da “IGNORÂNCIA” (o 1º poema que eu musiquei...)]

Misticismo – janela para o alto

E aproveitemos para apontar desde já uma das traves mestras da poesia do CLP: há um sopro de misticismo que paira sobre a maior parte da sua obra, uma dimensão espiritual que às palavras se acrescenta e está para lá do seu sentido comum.  Infelizmente, tal dimensão parece ausente, nunca tanto como hoje, em todos os sectores da cultura, em todos os campos em que se desenrola a vida dos cidadãos.

Notemos pois: se as palavras do poeta aparentemente dizem uma coisa, numa segunda leitura virá à tona um patamar de significação mais elevado, um outro nível de sentido que transcende o imediato, um nível mais etéreo que porventura nos aproxima da visão original do autor. Digamos que a visão mística se insinua nos interstícios das palavras. Na verdade, o impulso poético projecta nas palavras impressões fugazes que provêm não raro da própria alma, ou mente profunda (para usarmos a terminologia dos sábios místicos budistas). E é justamente a alma ou mente profunda a parte do homem menos explorada e menos conhecida do próprio homem. Ignorando a sua verdadeira dimensão espiritual, o homem volta para a materialidade os seus esforços para encontrar aquilo a que chama, de um modo obsessivo e patético, a felicidade. Erro trágico! Quando se referiu metaforicamente à porta estreita, o que o Mestre Jesus terá querido dizer é que o reino de Deus – a felicidade perfeita, aquela que não se extinguirá jamais – só é acessível ao homem através da própria alma, e não pelo acumular sôfrego das gratificações do corpo e da mente.

Se os santos e mestres espirituais são abridores de portas, aproveitemos a metáfora para chamar a certos poetas abridores de janelas. Não hesitamos em incluir CLP nessa categoria. Diremos então que a poesia dele abre frequentemente uma janela para o alto quando nos relata experiências vividas interiormente. Não existindo uma linguagem específica para esse tipo de vivências, o poeta tem de recorrer à linguagem comum do dia-a-dia. É o que sucede na maior parte da sua obra. De resto, em AS ESTAÇÕES DE DEUS (2002), o próprio poeta declara abertamente, referindo-se a Deus: “Todos os meus poemas falam de ti”

Misticismo – a natureza como janela

É neste sentido, mas não só, que devemos encarar a referência frequente do poeta à natureza. A contemplação da natureza e das coisas simples da natureza vai-lhe servindo para tentar desvendar a janela da vivência mística, isto é, para tentar descrever o indescritível. É certo que a palavra, pela via da metáfora, pode sugerir ou canalizar impressões, mais ou menos vagas e imateriais, ainda que a totalidade da experiência, o seu significado último, esse, geralmente nem ao próprio poeta seja normalmente acessível. Por isso podemos dizer que a poesia do CLP, mesmo quando nos fala das coisas mais triviais, de simples objectos ou seres de porte minúsculo, aponta sobretudo para um plano da realidade – um plano do Ser - que a razão não alcança. E aqui me parece surpreender um dos aspectos mais interessantes e significativos da poesia do CLP: a coexistência dos diversos planos do Ser num espaço semântico comum. Exemplifico: formiga é uma palavra, ou seja uma representação mental que designa o bicho “formiga”; é, concretamente, o bicho da classe dos insectos; e é, na poesia do CLP, uma janela aberta, embora minúscula, para... a contemplação de Deus. Não se trata aqui daquele deus que o homem inventou, velhote de barba até aos pés, sentado no seu trono celestial a governar o universo e o homem; trata-se, sim, da substância divina do próprio Ser, aquilo que é comum à espécie humana e a tudo o que compõe a chamada criação. Quando, pois, a poesia do CLP se demora longamente na contemplação da natureza, geralmente está a oferecer ao leitor uma janela, ou pelo menos uma clarabóia que pelo filtro da natureza tem vista para o céu. O mesmo é dizer que, para o poeta, a natureza tem um substrato espiritual.

[ver ONDE (2001), pg. 21 e O LIVRO DAS PEQUENAS ORAÇÕES (2008), pg. 20]

A natureza por si mesma

Mas é frequente, também, o poeta deixar-se flutuar numa contemplação embevecida, quase diria apaixonada, das coisas simples da natureza. A natureza valendo por si mesma e não só por aquilo que representa num plano mais subtil da realidade: as plantas – as árvores, as maçãs, as rosas, as papoilas, as ervinhas que cobrem a terra -, a água (porque é o alimento e é transparente, deixa ver através), os bichos pequeninos e humildes, principalmente as formigas, os pássaros – seres vivos como nós, que assumem a sua estatura de quase nada, que aceitam exemplarmente a sua ínfima condição num universo tão imenso – e que nada reclamam nem cobiçam daquilo que os transcende; e também as casas, que passam porque vão ruindo, e os barcos, porque transitam...

E o poeta sabe que à sua sábia ignorância (sua deles bichinhos) corresponde uma sabedoria mais profunda: a compreensão mais perfeita da sua condição - e daí a humildade que não precisam de cultivar porque lhes é congénita. E neles se demora longamente a sua atenção carinhosa, a sua comovente ternura.

[ver A POEIRA DOS DIAS (1996), pg.48]

Solidariedade humana

A atenção e o carinho do poeta pelas coisas da natureza não podia deixar de contemplar os seres humanos em si mesmos, com todas as suas conhecidas fragilidades e imperfeições, e também com todas as suas lamentavelmente ignoradas aptidões.

Podemos dizer que toda a cogitação, toda a reflexão a que o homem se tem entregado desde que veio ao mundo resulta da sua inépcia para se enquadrar intuitiva e espontaneamente na realidade que é o mundo e a vida. Usando cada vez mais a razão como instrumento de excelência para chegar ao conhecimento, reflectindo e argumentando sobre si mesmo e sobre o mundo, buscando racionalmente, tecnologicamente, desenfreadamente, estabilizar a existência e alcançar esse estado a que chama felicidade – o homem afasta-se mais e mais do objectivo perseguido desde sempre: acabar com o sofrimento e eliminar esse fantasma da extinção que lhe assombra toda a existência. Paradoxalmente, contudo, é nessa mesma incapacidade do homem que assenta o grande motor que tem estimulado e impulsionado toda a evolução da espécie, tanto na origem das suas conquistas como na origem dos seus fracassos. Se as conquistas nunca são totais, completas, definitivas, os fracassos, esses, tantas e tantas vezes, são demolidores... Falamos do carácter trágico da existência humana, em que a poesia do CLP mergulha raízes igualmente profundas. Ele mesmo o declara em

FALAR ÀS AVES (1993):

“eu poeta me declaro amante do mundo

das coisas feitas e transitórias

solidária voz da dor que nos acompanha”

Toda a obra de CLP é percorrida por um sentimento de solidariedade perante a condição de incerteza e transitoriedade que caracteriza tudo quanto vive. Assim, também em O LIVRO DE PÓ:

“Se os meus poemas pudessem tudo abarcar

eles seriam um só e único abraço

rodeando todo o planeta”

A saudade

Cabe aqui referir o sentimento de tristeza pela perda irreparável dos familiares e amigos queridos. É um sentimento assumido como saudade, uma saudade que percorre intensamente alguns livros e se estende logo aos tempos de uma meninice feliz e descuidada. Mas é uma saudade que o poeta sente agravada pela dor de envelhecer conservando a memória de um passado que não se repete. Lemos em GUARDA-ME CONTIGO... (2014):

“é tão estranho envelhecer com as papoilas ao lado do coração”

E na pg. 76 o apelo dramático lançado à memória da mãe e que dá o título ao livro: “oh, guarda-me contigo entre as papoilas”.

Solidão: o homem é o seu próprio caminho

mas deus é o termo de todos os caminhos

Decantadas as ilusões e os sonhos loucos da juventude, em que tudo parece oferecer-se ao alcance do olhar, bem cedo o homem comum se apercebe das contingências do mundo e da vida. “Num mundo feito de coisas aparentemente importantes, de lutas e conflitos pela posse de coisas feitas de pó”, a vida começa a doer, e por vezes dói bastante. Onde as incertezas fazem a regra e não se descortina excepção, nada existe que ofereça garantia de permanência; a vida humana não segue um percurso rectilíneo facilmente previsível; antes constitui um fluxo de incertezas constante, com a agravante de não se repetir de indivíduo para indivíduo,

“como se fosse um grande rio onde tudo se apaga e nada permanece”.

É talvez em O SINAL DE JONAS (1999) que se acentua este lado sombrio da existência, já anteriormente abordado, aliás, em A ÚLTIMA CEIA (1996), A FUGA DAS CIDADES (1997) e ALGUÉM QUE TU CONHECES (1998).

[ver A FUGA DAS CIDADES, pgs. 22, 23, 32, 49]

ALGUÉM QUE TU CONHECES é um livro muito curioso em que a poesia acontece em forma alegórica, diluída e destilada sob a forma de prosa, em que a figura do Mestre Jesus, inspiradora de um sem número de poemas, se cruza e completa com a figura de outro grande luminar espiritual da humanidade: o Buda Shakyamuni. Sobressai aqui a grande constatação: não existe um caminho único, solidário, comum a todos os homens; cada ser humano tem um destino próprio e um caminho individual a percorrer, um caminho fatalmente solitário que não pode partilhar com o seu semelhante. Como diz o poeta em A ÚLTIMA CEIA, “o homem é o seu próprio caminho”.

Contudo, no termo desse longo e tortuoso caminho, nada menos que a consciência da nossa verdadeira natureza: somos Deus, somos universo, somos infinito. Ouçamos o próprio poeta:

[ver O PERFUME DA FLOR (1996), pg. 50]

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E o percurso poético de CLP prossegue com a publicação de A MINHA POESIA É UMA IGNORÂNCIA, que hoje nos trouxe aqui. É claro que já o li. É um livrinho, se atendermos ao formato impresso. Mas um livrinho com uma edição de um bom gosto que merece uma menção especial. O meu aplauso a quem concebeu e realizou a edição.

Obrigado pela vossa atenção e o vosso silêncio.

Pedro Jordão

Cortes, 1 de Abril de 2017