Leiria, 12-12-2009

A poesia é um assunto difícil. Difícil saber o que é, do que é que se está a falar, difícil de saber que ideia se tem para fazer corresponder à palavra. É uma arte? Uma forma de escrita, entre outras? Um talento? Uma vocação? Um género? Um jogo? Um dom? Uma mania? Um anacronismo? Uma preguiça? Uma fuga? Um mistério? Um ornamento (da alma ou do currículo)? Ou pode ser qualquer coisa destas e é consoante?
Mas mesmo que se escolha uma ideia destas, uma qualquer desta lista, é preciso que a ideia depois se adapte a quem escreve poesia. Quer dizer, mesmo que entrássemos em acordo quanto à ideia que deveríamos fazer corresponder à palavra “poesia”, teríamos de imaginar, para afastar de vez a dificuldade de que estou a falar, que se perguntássemos a alguém “o que é que fazes?” e essa pessoa (por exemplo, o DB) respondesse “sou poeta”, a resposta não nos soaria estranha, que nos soaria como uma resposta normal e aceitável. Ora, a impressão que dá é que uma peça de diálogo deste género seria mais ou menos equivalente a fazermos a uma mulher a mesma pergunta (“o que é que fazes?”) e ela responder-nos: “bem, sou jovem, bela, atraente e muito interessante”. Mesmo que fosse verdade, iríamos sempre notar um certo desfasamento entre a pergunta e a resposta, como se a moça não tivesse entendido que os atributos que enumerou nada tinham a ver com o objecto do nosso interesse, que eram as suas actividades. E podemos imaginá-la, num segundo momento, até a admitir o equívoco, mas desvalorizando-o, por exemplo dizendo: “ah sim, também tenho um emprego, mas que interesse é que isso tem?” Responder “sou poeta” é um pouco a mesma coisa: soa-nos a responder com atributos, qualidades pessoais (eventualmente excepcionais), virtudes ou, então, bizarrias, excentricidades, a uma simples pergunta sobre o modo como a pessoa interrogada ganha a vida ou ocupa, utilmente, o seu tempo.
Penso que é já, aliás, que é cada vez mais por causa disto que os livros de poesia trazem agora o que dantes não traziam: uma pequenina (às vezes não tão pequenina) informação acerca do currículo, da vida profissional, enfim, da vida comum do poeta, capaz de sossegar imediatamente o leitor que se assuste com a mera hipótese de um escritor de poemas ser apenas “poeta”. Ora, isto é sinal daquela dificuldade de que eu estava a falar, assim como se houvesse um certo engulho com a palavra “poesia” e com a figura, cada vez mais incerta, mais esfumada, do que possa ser um “poeta”. Isto também é uma maneira de dizer que já passou o tempo em que dizíamos, como um lugar-comum, uma banalidade, que este “é um país de poetas” e que portanto não espanta que nos surja mais um quando há mais um a surgir. Isto deixou de ser verdade e se não me engano isto até está a começar a deixar de se ouvir: já nos faz, por exemplo, muito mais sentido dizer ou ouvir dizer “este é um país de jornalistas que escrevem romances” (quando fizerem a estatística desta espécie, deve dar no mínimo um por semana) do que o velhinho e desactualizado “este é um país de poetas”. Portanto, alguém aparecer a público com um livro de poemas, um primeiro livro de poemas, como faz agora DB, não é propriamente qualquer coisa que não se note e que não comporte, ao ser de algum modo notória, os seus riscos.
“São douradas as cordas”, o livro de DB, é um livro arriscado. Mas é também um livro cujos poemas sabem que correm riscos, e que falam dos riscos que correm, que os põem à vista, de mais do que uma maneira. Alguns são riscos já conhecidos, preocupação comum a outros poemas e a outros poetas, o que não significa que haja aqui mera repetição ou insistência no já sabido. É mais o contrário, até: é mais uma insistência no não sabido, no que continua a não se saber. Por exemplo na preocupação com o interlocutor, com a eventualidade de não haver interlocutor, que surge explicitamente dita num dos poemas finais do livro desta forma toda interrogativa: “A quem falar? A quem dizer tudo o que me não digo? / E a quem perguntar isto?”
Em geral, os riscos de que fala a poesia de DB são riscos relacionados com a fala, com a comunicação, com a escrita, com as palavras. Não se trata portanto de mais um destes poetas para quem a poesia é só uma outra maneira de dizer coisas que se entendem perfeitamente sem poesia, que se podem relatar numa página de diário ou até num artigo de jornal um pouco mais literário que o costume (sim, porque essa também é uma espécie cujos exemplares andam por aí em fase de proliferação, a espécie dos “jornalistas que escrevem livros de poesia” acerca dos quais, depois, outros jornalistas se pronunciam, num círculo com um arzinho às vezes um pouco vicioso...). Mas também não se trata aqui de um poeta que responde com banalidades académicas às banalidades jornalísticas. A poesia de DB é o género (eu diria, como uma forma de elogio: o género um pouco inactual) de poesia para a qual é importante responder ou voltar a responder à pergunta “o que é a poesia?” ou “o que são estas palavras a que chamamos poesia?”
A poesia, “as palavras que se seguem”, diz DB logo no primeiro poema, “não é um texto”: “cada uma das suas palavras/ (…) / é como uma gota / de água / caindo na água / na sua água”. Parece uma imagem e, na verdade, é, mas uma imagem muito menos tranquila e sossegada do que poderíamos pensar à primeira leitura destas linhas. Porque logo de seguida, na última linha do poema, está escrito: “e este poema é uma inundação”. É como se o poeta ou o poema se tivesse apercebido dos riscos que aquela imagem corria e imediatamente ou quase nos pusesse à vista como a queda das palavras gota a gota é na verdade, no lado menos evidente talvez, mais escondido da verdade, uma forma de precipitação – capaz de bem depressa se converter em “inundação”.
Neste livro há água fresca, como nem sempre há em todos os primeiros livros, mas também há esta água de inundação que é sempre uma água impura, misturada, não totalmente transparente nem cristalina nem, sobretudo, fácil de conter.
Gota e inundação falam-nos disso: do risco de uma palavra não contida, de uma experiência das palavras que continuamente, gota a gota, transbordam dos limites, extravasam, não se sabe bem que extensão ou alcance têm. Isso é importante num livro que se apresenta como livro, com uma certa ordem, uma certa ordenação, uma certa organização, como parece que toda a ideia de livro implica sempre. Uma série de vinte poemas numerados enquadrados ou marginados por mais dez poemas em itálico, que funcionam à maneira de uma epígrafe ou de uma síntese antecipada dos conjuntos de poemas que vêm a seguir a cada um desses itálicos. Esta é uma poesia escrita e é de certo modo uma poesia preocupada com a tensão entre o poema (coisa sempre singular, delimitada mesmo quando ou sobretudo quando mal delimitada, fragilmente delimitada e delimitável) e o livro que junta os poemas, os reúne, quer dizer, lhes confere uma unidade que eles, cada um na sua dispersão, não têm de ter.
Uma das expressões que DB emprega e onde se vê essa consciência apurada do que é o poema nos seus mais altos riscos de linguagem sem interlocutor, de linguagem atirada ao mundo sem destino (ao contrário do livro, que sempre prevê o leitor que o perceba enquanto livro, isto é, que o entenda enquanto comunicação de um sentido único, total) é esta: “um verbo fechado”. Concretamente, o poema pergunta: “O que se poderá escrever / já dentro de um verbo fechado (…)?”

Gustavo Rubim