Por Carolina Morouço Gaspar

Leiria, 14 de Outubro de 2017

Quando eu nasci, Abril já era sinónimo de liberdade. Cada 24 de abril que vivi, já o vivi sabendo que no dia seguinte iria celebrar a liberdade. E, liberdade, é exatamente esta palavra que hoje aqui nos traz e que move o meu discurso. Há uns dias, estava eu a subir a Almirante Reis, em Lisboa, quando o Amílcar me telefonou a dizer que gostaria que eu dispensasse umas palavras para o dia de hoje e para este presente assente em abril que estas 205 páginas testemunham. “O 25 de abril foi o dia da liberdade, tens toda a liberdade para dizeres o que entenderes”, disse-me ele. Sorri para mim, e olhei à volta. Subia uma rua livre, cheia de gente livre, num país livre.  Mas, para mim, todas as ruas sempre deram ao lugar desejado, toda a gente sempre pôde seguir o caminho que quis e o país sempre foi livre.

No entanto, todos os anos há o mês de abril, e todos os meses de abril há um dia em que o meu pensamento são cravos e capitães e promessas de nunca mais e de para sempre. Lembro-me de ver desde sempre esse dia a vermelho e verde, com banda sonora de Zeca Afonso, de invocar gaivotas e papoilas e de sentir o meu peito inchado de orgulho por ser filha de uma nação que viu nascer homens que souberam arranjar armas para a defender, mas homens que das armas fizeram nascer flores e nascer com as flores uma nova nação.

Um desses homens foi o Amílcar Coelho, que foi quem fez nascer este livro de que hoje aqui falamos: “O 25 de abril, acontecimento, identidade, memória”. A ele agradeço o convite e o desafio que me lançou, foi muitíssimo gratificante. Felicito também todos os outros autores e todos os aqui presentes. 

Neste livro, há uma imagem que surge em primeiro plano, uma imagem que são quatro rostos e dez milhões surgindo em fundo. Nessa imagem está um soldado, o soldado Amílcar Coelho, aqui presente, que dividido entre a coragem e o medo escolheu a coragem, que entrega a sua vida a uma causa que entende como maior, e três crianças que assistem à História a ser feita, para quem as fronteiras da liberdade não eram claras ainda, assim como passava adiante a noção de que era a sua identidade, a memória que iriam construir futuramente, que estavam em jogo por meio daquele acontecimento. Acontecimento, identidade, memória. E estas três palavras acompanham-nos em cada página, assim como nos acompanham também o soldado e as crianças. Rostos de abril, mundos diferentes, sentimentos distintos no momento da Revolução, mas cujos destinos convergiam ali, naquele instante. E é disso que este livro trata. O 25 de abril toca-nos a todos, queiramos ou não, tenhamos ou não consciência disso. E com estes textos, brilhantemente divididos em quatro secções, o 25 de abril divide-se em passado, presente e futuro. Temos a possibilidade de desvendar os antecedentes da Revolução, de captar a escuridão de um povo cuja canção era reprimida, o antes do 25 de abril, e de ver a noite fazer-se dia, ver Portugal iluminar-se aos nossos olhos, com o acontecimento do 25 de abril, assim como surge também a questão do que é necessário fazer e como fazer para que essa luz nunca se apague, através dos temas e problemas do 25 de abril, bem como da memória viva da Revolução. São assim textos diferentes que se juntam, como nos devemos juntar todos nós. Cada um com a sua liberdade, até porque a liberdade é podermos ser diferentes. Cada um de modo diferente, como para o soldado e aquelas crianças foi a Revolução, mas fazendo de abril um dia de todos, um dia em que a liberdade venceu, a diferença uniu. São textos que nos permitem entender Abril, procurar Abril e, com tal, construir o nosso próprio 25 de abril.

E são doze 25 de abris que tenho em mãos, uns vividos e sentidos, uns de perto, outros à distância, uns aqui, outros do outro lado do mar, outros apenas imaginados. Passo agora a uma breve alusão a cada um deles.

Carlos Silva escreve o prefácio do livro, colocando-nos as questões que envolvem este grande acontecimento que, no texto seguinte, o Amílcar considera como “um acontecimento refrescante e entusiasmante que dá que pensar”. “Os sonhos iniciados nessa madrugada de abril de há quarenta e três anos estarão condenados ao sucesso ou ao fracasso? Estaremos nós, os portugueses, vitoriosos de tudo quanto se esperou sobre as portas que abril desejou abrir? Ou há ainda portas fechadas?”. São estas algumas das questões que, logo no ponto de partida, projetam o leitor para um espaço de reflexão e encontro com a realidade de abril. “E até que ponto esta realidade de abril pode conviver lado a lado com a atualidade e de que modo cada aniversário da Revolução deve ainda inscrever-se nas nossas vidas?”. Estas são também interrogações pelas quais este livro dá o seu nome, como nos explica Amílcar Coelho.

A estas questões, juntam-se algumas certezas vindas de um dos maiores pensadores da contemporaneidade relativamente à formação e aos manípulos da identidade. No seu texto, que constitui a transcrição de um discurso a que tive o privilégio de assistir, José Gil mostra-nos, como ele próprio diz, “o que representa para nós, hoje, mesmo com todas as dificuldades da nossa existência quotidiana, viver em liberdade”. E tenho de confessar que, após ter assistido ao discurso ao vivo, ter ouvido a sua gravação e ainda ter escrito sobre ele, ao vê-lo aqui, materializado no papel, claro e firme, pareceu-me ainda mais fantástico.

Chegamos, assim, à primeira secção do livro: antes do 25 de abril.

Pela mão de Isilda Silva e de Amílcar Coelho, a ideologia do Estado Novo é desconstruída e traduzida, sobretudo no que respeita à educação e à cruel analfabetização. Se queremos colocar-nos contra um regime autoritário, para percebermos onde erra e porque razão está errado, é fundamental entender as linhas por que se cose. E neste texto passa-se exatamente isso. São identificadas as estratégias discursivas e políticas de um governo déspota, para o qual as ferramentas da educação: a leitura, a escrita, entre outros, bem como a própria educação em si não eram instrumentos que existissem para originar pensamentos e pensadores livres, mas sim um meio de impor as ideologias opressoras do regime.

Completando este raciocínio, e trazendo-nos também para uma perspetiva mais autobiográfica, surge, de seguida, o texto de José Manuel Pereira da Silva. Podemos acompanhar a história de 36 meninos do 2º ano, como dizemos agora, à época 2º classe, do Professor Moreira, espelho de um povo, a infância do autor em Bissau e uma análise com evidente valor histórico aos anos pré-25 de abril em Portugal. Com agradáveis avanços e recuos temporais, revelações de futuro e resgates de passado, Pereira da Silva mostra-nos o que “andámos para aqui chegar”, uns descalços, outros com botas desajustadas como as do menino da ponta direita da fotografia da 2ª classe do Professor Moreira, caminhando numa realidade difícil e que o tempo não apagará. Como Pereira da Silva nos diz: “Sim, andámos muito para aqui chegarmos. Mas andámos…e chegámos sem que nada esteja completamente assegurado, e com muitos princípios por garantir ou cumprir”.

Por último na secção antes de Abril, Amílcar fala-nos dos mecanismos do Estado Novo e da História. História essa que, como nos explica, foi maleabilizada e explorada e adulterada a favor dos interesses do regime. Durante décadas, mentes brilhantes e cada português sofreram com formatações ideológicas e nacionalistas em prol de uma nação de poucos poderosos. Eu, pessoalmente, à medida que lia este texto, fui tomando conhecimento com uma realidade atroz que me incredulizou e que ainda foi capaz de me causar surpresa, pela negativa, e revolta. Quanto mais lia, mais compreendia a beleza e a brisa renovadora do 25 de abril. Como apela Amílcar, que “sobreviva serenamente o desafio irreverente do pensar polémico”.

Na segunda secção: o acontecimento do 25 de abril, somos confrontados com diversas perspetivas da Revolução. Umas de fazedores de História e outras de irmãos além-mar.

Gabriel Grabowski e Rodrigo Perla Martins juntam-se para elaborar um texto que nos fala, acima de tudo, de fraternidades lusófonas que a Revolução abriu e de ligações que se quebraram e uniram em nome dos interesses económicos e políticos, mas também em nome da independência das gentes e das nações que gritavam e se afirmavam. O 25 de abril não foi só Lisboa e Portugal. O 25 de Abril, como percebemos, atravessou o mar, atravessou continentes e com eles abriu portas que não mais se fecharam.

Amílcar Coelho, por outro lado, mostra-nos a Revolução dos Cravos ao vivo e a cores. Quando fala desse dia, Amílcar é-o naquele dia, naquele instante, naquela fotografia que o papel guarda. Só aí, abril existe para sempre. Independentemente dos caminhos que abril abriu, das vidas que depois de abril se fizeram, os Companheiros de Amílcar e Salgueiro Maia serão para sempre meninos-homens heróis. Se abril não foi abril em toda a sua plenitude, se a promessa e a utopia estão lá, ao longe, que os monumentos e as memórias existam para sempre e que a promessa espreite sempre para os meninos de antes, agora e depois.

Em terceiro lugar, surge a secção 25 de abril, temas e problemas. Olga Morouço e António Maduro, que certamente irão descrever a problemática atual da abordagem do tema 25 de abril na escola mais claramente do que eu, escrevem os textos “A escola e a memória do 25 de abril “ e “Ensinar e aprender Abril: uma tarefa de professores?”, respetivamente. Nesta parte ainda, temos o “Triálogo para uma espiritualidade política democrática e libertadora”, de Rui Grácio das Neves, que constitui um texto ficcional, que demonstra três personagens ficcionais que representam” posições históricas e epistemológicas próprias de três correntes importantes dentro da esquerda histórica: a social-democrata, o comunismo e o anarquismo.” Deixa, assim, o desafio aos leitores de reconhecer as figuras históricas concretas que as três personagens representam.

Por fim, a secção IV, A memória viva do 25 de abril.

O primeiro texto, que escrevi, permite-nos recordar futuramente, o acontecimento de um dia em que jovens puderam escutar Abril por meio de quem o fez, de quem o viveu, de quem o relatou e registou, imortalizando-o, e de quem ainda hoje luta por Abril e para que todos os abris, os de agora e os que aí vêm, existam sempre existindo liberdade.  Falo da sessão organizada pela delegação da UGT de Leiria, pelo Centro de Formação Leirimar e pela Câmara Municipal da Marinha Grande intitulada “Que sentido tem hoje a Revolução dos Cravos?”. Histórias cruzaram-se naquele dia. Histórias de há quarenta anos e vidas que nem metade somam ainda. Também Sequeira Mendes nos fala desta sessão, prosseguindo com uma alusão ao trabalho e atividade da UGT e do contexto sindical. Intimamente ligada ao 25 de abril e nele buscando forças, a UGT procurou e continua a procurar fazer viver abril, fazer abril ser vivido pelos mais jovens.

E falando da UGT e de jovens, pode falar-se de Carlos Moreira. Presidente da Comissão de Juventude da UGT, foi ele quem concluiu esta colectânea. Com um discurso de desafios e a esperança própria da sua juventude, Carlos Moreira apresenta-nos um abril de todos, os que o valorizam e os que não lhe garantem um lugar no presente. Afinal de contas, Abril é de direitos e de deveres, sonhos e vozes que lutaram. Abril deu-nos Liberdade.

Para concluir, para mim, falar de abril é falar de uma realidade que não vivi, mas da qual encontro ressonâncias em certas esquinas e vozes e lugares. Quarenta e três anos se passaram. Tão perto, tão longe, tão pouco, tanto. O que sei é que de lá até aqui, a vida foi correndo, e com ela as gentes, os governos. E a liberdade nunca nos foi garantida em lado algum. Sentimo-la umas vezes, outras parece querer fugir, mas poucas coisas são hoje um dado adquirido. Num presente em que vivemos, de extremos e impulsos, a cada momento é preciso agarrar a liberdade e lutar por ela a cada dia.

É importante recordar o 25 de abril, para que ele dure para sempre. É importante compreendê-lo, pois só com o antes podemos sentir a conquista da liberdade. E este livro ajuda-nos a consegui-lo. Muito obrigada a todos pela vossa atenção.

Carolina Morouço Gaspar

 




Casa-Museu João Soares, Cortes (Leiria), 1 de Abril de 2017

1. Intervenção de Luís Vieira da Mota

 

Senhor, eu não sou digno

É o título que dei à minha parte na apresentação, partilhada com Pedro Jordão, deste livro do poeta Carlos Lopes Pires. E por me considerar inadequado a esta tarefa é que confesso, parodiando o centurião do Evangelho: “mestre, eu não sou digno de entrar nesta vossa ignorância”. Todavia, apesar desta confissão leal de incapacidade, o poeta Carlos Lopes Pires insistiu. Imaginei, escreveu ele, a apresentação deste livro a dois: o Pedro Jordão e você. Mais grave ainda: exigiu, com um irrevogável “tem de ser você a apresentar este meu livro”. Um convite destes, convenhamos, é o reconhecimento de qualquer coisa, como por exemplo: para falar de uma qualquer ignorância nada melhor do que contratar um grandessíssimo ignorante, ou então a amizade a ver méritos que mais ninguém vê, que a amizade tem destas coisas, e acredita. Esperemos que a fé de Carlos Pires não resulte em desilusão. Nestas ocasiões é costume, e muito conveniente, o apresentador aludir a textos dos grandes filósofos que se tenham debruçado, analisado e escalpelizado poemas, poetas e poesia, e Carlos Lopes Pires sabia, e sabe, que eu não o vou fazer, porque ele sabe que eu não sei nada disso. Daí a possível desilusão. Mas ele também sabe o que eu sei, que para apresentar este livro não é preciso, de todo, ser filósofo ou saber de filosofia. O livro nem sequer trata do saber, ou de ciência; trata, fundamentalmente, do que resta após nos despojarmos dos lixos que pretensos saberes ou pretensas ciências depositam na nossa mente. (E cito, da pág. 142)

há dias disseram-me

que não há nada de útil

na minha poesia

 

e eu concordei

 

todos os dias

a limpo de utilidades

e outras coisas

 

demais.

Continuo, portanto, sem enxergar a razão de tão exigente convite para apresentar este livro. Também não usei o dicionário para o ler. Ao invés de certos autores, que parecem escrever com o dicionário de sinónimos ao lado, produzindo poesia quadrada a régua e esquadro, a escrita deste poeta utiliza palavras de todos os dias. Embora fale muito de deus, o autor dispensou as palavras de domingo, porque o deus de que fala e com que fala não exige, nem quer rituais. O livro em si, como se pode ver, é um belo objecto. A qualidade da encadernação, da impressão e da composição, e a riqueza singela das capas e das ilustrações fazem deste livro um objecto de arte. Mas isto não faz com que cada poema nele contido seja um objecto de arte. Arte sim, mas não objecto. A poesia não precisa de corpo, basta-lhe a alma. Ou o espírito, para os agnósticos.

Já lá vão uns minutos de palavreado e ainda não demonstrei, e continuo sem saber por que razão Carlos Pires me exigiu este esforço. A não ser que ele pense que sabe que eu sei que não precisarei de outro dicionário para ler o que não está escrito. Pode estar enganado. Contudo é verdade: para o ler basta uma hora: à terceira vez já se consegue ler numa viagem de Alfa entre Pombal e Porto. A quarta vez já será necessário ir no Inter Cidades. Para a quinta vez é melhor embarcar num Inter-Regional. A leitura será mais rápida se o leitor dispuser do tal outro dicionário para as linhas em branco, que é assim como se conseguisse andar por entre os pingos da chuva. (pág. 141)

os meus poemas

não tratam de coisas importantes

 

apenas falam de chuva,

não sobre a sua natureza

 

ou por que chove

 

mas porque chuva

é o que vem nos meus poemas

Mas esse outro é um dicionário impossível nas livrarias e na Internet.

Contudo nem é a apresentação do livro que me sufoca, apresentá-lo é fácil, basta dizer, livro aqui estão os teus leitores, leitores aqui está o livro “a minha, dele, poesia é uma ignorância”. O que me tolhe o raciocínio é não encontrar razão que justifique a escolha calamitosa do Carlos Pires. É que nunca, jamais, em tempo algum, me passou pelo bestunto que algum dia me acontecesse esta desgraceira de apresentar um livro dele, em especial este, que para ele, eu sei, é muito especial. E ainda, para agravo do meu aperto, ele dizer que é por isso mesmo.

Então a obsessão, o bloqueio, a vontade irresistível de desistir, de enviar um e-mail ao poeta, não para lhe confessar a incapacidade, o que seria uma vergonha, mas para lhe extorquir a confissão do porquê de me sujeitar a este sofrimento. Dei então comigo a olhar para trás, a fazer replay do percurso comum que haja feito com este poeta. Um livro dele, e outro meu, apresentados na mesma sessão; o serão poético partilhado na igreja de S. Francisco, subjugado ao tema Poemas de Silêncio e Deus…

Agora, já tranquilizado e liberto dessa malfadada obsessão, passo, finalmente, a poder tratar da apresentação da obra em causa e que dá pelo título “a minha poesia é uma ignorância

Pode dizer-se que o livro, embora o índice apenas refira cinco, tem seis partes.

A parte zero, a tal que não é referida no índice, é a belíssima e muito sentida dedicatória em homenagem a um querido amigo, companheiro de muitos dos nossos serões literários, o Dr. António Rego.

A primeira parte foi designada “ainda seja tempo”, da qual vou ler o que me parece um dos poemas mais significativos, (pág. 17)

que venha ao meu coração

a alegria das tuas coisas

 

e ainda seja tempo

 

porque às vezes sou cego

e as minhas mãos  não sabem

descer nas rosas

uma coisa que trago comigo

 

e ainda seja tempo

 

para que tudo seja

a força convergente da luz

 

e água com água

tudo seja ainda tempo

Que seja ainda tempo de despojar, de abraçar os seres, as coisas, (pág. 30)

senhor

não queiras saber

de onde por onde andamos

 

deixa que descubramos

em tudo azul

 

na chuva e no medo

e também na sombra de passarmos

entre as coisas e as casas

 

e aceitemos a morte

como o fim de tudo

 

o que foi inútil

Há nesta prece do poeta a esperança (ou a certeza?) de que a morte não será o fim de tudo, apenas o fim do que foi inútil.

Só mais uma citação dos poemas desta primeira parte do livro, o da página 33, do qual saliento

e ensina-nos o dom

das coisas que não se alcançam

 

a medida certa no coração

a leveza dos dias em que tudo pesa

e nos torna insectos

 

ensina-nos a claridade

Ainda seja tempo de escutar a voz do poeta quando termina esta parte do livro, oferecendo,

vê se entendes

 

vim a este mundo

para estar contigo

Percorre-se esta primeira parte sentindo-se a necessidade de purificação, e o poeta sugere, oferece, diz que há a possibilidade do esquecimento perdoado por tudo o que se fez e não se fez bem feito, daí o convite ao abraço, a oferta do coração… ainda seja tempo.

E agora a segunda parte “azul e coisas do chão

Antes de começar a dissertar sobre a segunda parte deste livro, é minha obrigação confessar que a sua leitura já não se faz em menos tempo do que o tempo que demora, de comboio, a viagem entre Lisboa e Porto. E a razão encontra-se na pág. 66

hoje comecei o dia

por doer-me num poema

não sei em que parte da vida

ou das árvores

me doía

nem se era uma flor

um insecto

ou um outro animal qualquer

era talvez o mundo

a doer no meu quintal

É que quando se chega a uma estação qualquer com uma dor assim, suspende-se a viagem para dar tempo às lágrimas. Pelo menos até que o azul, (pág. 52)

creio nos animais e seus insectos

creio nos dias muito frios

do silêncio e ruas desertas

já se disse que são dos pássaros

pois eu creio nos gestos dos pássaros

em toda a sua infinitude

e também creio nos amigos

e suas casas de areia e noite

creio em tudo o que é

azul

E é por isso que o tempo necessário para entender, ou tentar entender este livro, aumenta a cada estação. É preciso regressar um pouco atrás, para relembrar (fragmentos do poema da pág. 45)

no princípio era o azul

depois é que veio o insecto

quando os homens vieram

as suas mãos feridas

nasceram uma tabuada para a dor

vê como seria fácil sentares-te comigo

no lado de dentro que te escreve

e eu dizer-te alguma coisa feliz

mas é que hoje o mundo

está muito fora

do azul

É nesta parte do livro que as formigas abundam nos poemas de Carlos Lopes Pires, que confessa (pág. 70)

vivo num pequeno quintal

entre sementes e formigas

nos dias de chuva

sento-me a ver como o chão

é tão profundamente azul

mas nem mesmo

os muros em redor me cercam:

é para cima que olho

eu e as estrelas

Permito-me, aqui, um comentário muito prosaico, todo terra-a-terra. A metáfora corresponde à verdade. Quem souber o que eu sei, compreenderá. Há, até, um hábil pormenor curiosíssimo neste poema. O poeta utilizou pontuação, colocou dois pontos no final do verso “os muros em redor me cercam”, e assim salienta a única direcção possível do seu olhar em solidão. E liberta-se. Não hão-de ser aqueles, ou outros muros, que o cercam…

Pode então o poeta permitir-se um pouco de repouso e confessar (pág. 59)

construí

a minha ignorância

entre poemas e formigas

E construiu a tal ignorância enquanto, (pág. 71)

os melros devagar cantavam

nem formigas nem chuva

as laranjas tinham dentro

azul e azeitonas

o silêncio movia-se

com as sombras

Deus cuidava do meu quintal.

Há uma interrogação pertinente. Pode colocar-se agora. Todo este livro está escrito com letra minúscula, significando, com certeza, que não há palavras, como não deve haver seres, mais importantes, ou mais dignas, do que outras. Apenas o nome Deus, e nem sempre, aparece escrito com maiúscula. Espero que não seja gralha tipográfica. E se for? Acaso ou mistério?

 Tranquilo com Deus a cuidar do seu quintal, o poeta segue em busca de “as crianças da chuva”

É a mais curta das cinco partes do livro. É também, porventura, a mais límpida. São fundamentalmente duas as imagens que transporta: crianças, (onde a inocência) e chuva, a água mais cristalina porque ainda não contaminada com a lama do chão.

Começa com um perfume de saudade (pág. 75)

éramos todos crianças

olhávamos a chuva

nas janelas

o sol inclinado

através das árvores

olhávamos tudo muito longe

e queríamos que um dia

tudo fosse dentro

fomos crianças

E depois uma sentida incompreensão por alguma tamanha injustiça (pág. 80)

quando o ergueram naquela cruz

entre alfazema menta hortelã

e uma ferida aberta no céu

ele não era um homem.

pai

porque lhe deste

tamanha responsabilidade e dor

se ele era apenas

uma criança da chuva?

São vários os poemas dedicados ao seu filho ao longo do livro. Mas é nesta parte, “as crianças da chuva,” que encontro os mais significativos. (pág. 82)

o meu menino de todas as coisas

que invisíveis nascem

das árvores e dos pássaros

das noites povoadas de passos

e laranjas doces

e que nas águas nunca

por outro lado os seus olhos leva

as suas mãos de terra e nunca

o meu menino

que dorme nas rosas

e que por onde vai

as rosas

E sempre nesta toada, página após página, para encerrar esta parte totalmente cristalina com esta delícia, (Pág. 90)

uma criança da chuva

veio junto de mim e disse

toma um segredo

e  então abriu numa mão

um redondo

muito azul

Deus vive no meu quintal

Vai ser para todos os leitores a parte mais incompreensível desta obra. Difícil para a maioria, imodesta para muitos, audaciosa para mais uns tantos e quase blasfema para os mais canónicos. Deus anda ali, tu lá tu cá com ele, confidencia-lhe desalentos, apresenta queixas dos homens, diz-se cansado de existir. Então (pág. 112)

o mesmo poeta

perguntou a Deus

agora

que não existes

como posso ainda

estar contigo?

E a resposta surge, ou vinda da voz de Deus ou da boca do poeta cheia de experiência após muitas conversas no seu quintal (pág. 113)

nunca procures Deus

é como procurares o lugar

do arco-íris

o que é importante

frutifica na ausência

importante

não é onde a luz começa

mas o que nela é

e não queiras respostas

contenta-te

com as perguntas

É-me impossível abandonar a dissertação sobre esta parte sem vos ler, não todo, mas algumas linhas do último poema. (pág.124)


            tu senhor

criaste as flores

e as abelhas

e deixaste

que usássemos a luz

e tudo o que era abundante

e um de nós

que eras talvez tu

elevámos em humilhação

e morte.

 “a minha poesia é uma ignorância,

escreve Carlos Lopes Pires a intitular a última parte e, envolvendo todas as outras partes do seu livro. E vamos saber porquê (pág. 127)

eis por que sou ignorante

não leio

nem colecciono factos

tudo o que faço

é guardar o que não tenho

agora tenho um quintal

de onde se vê o mundo

que é como

quem diz

a minha ignorância

Se acreditarmos na sua palavra, eu acredito, a tal auto intitulada ignorância vai aumentar, tanto quanto mais subir. E todos desejamos que suba bem alto (pág. 128)

ele subiu a uma árvore

para avistar o mundo

mas apenas constatou

que por onde quer que vá

ou suba

a sua ignorância estará sempre

muito para além

do horizonte

Quanto a citações do livro, findo aqui. Não esqueçam: à centésima vez é necessária uma viagem de Valença a Faro para se ler o livro. Olhem para a cara do doutor. Completamente desiludido, a pensar, mas sem coragem de o dizer:

Mas por que carga de água, para não dizer outra coisa, isso é já a seguir, andei a teimar com este estafermo para apresentador do meu livro! Afinal o Pedro Jordão já havia dito tudo!

É verdade. Eu enganei o poeta Carlos Lopes Pires. Eu sei que ele sabe que eu sabia que ele queria, e bastava, ter dito simplesmente… Mas vou dizer agora, com alma e coração:

Muito boa tarde minhas senhoras e meus senhores,

Este livro é…

Olhem, não sei o que é,

Mas leiam-no e amem-no assim ou mais do que eu o amei.

Luís Vieira da Mota

Cortes, 1 de Abril de 2017

 

2. Intervenção de Carlos Lopes Pires (autor)

A impossível explicação dos amigos

Gostaria de fazer alguns agradecimentos, começando pela vossa presença, sem a qual esta apresentação não valeria a pena. Depois agradecer à Casa-Museu João Soares na pessoa da Dra Rita Justino, igualmente companheira dos Serões Literários das Cortes, a cedência generosa desta sala. Ao meu amigo e editor Carlos Fernandes que faz o favor de me fazer muitos favores, entre os quais ser paciente. Ao Pedro Jordão (o músico que caiu na minha poesia como se fosse um milagre) e ao Luís da Mota (o escritor que tem um quintal do tamanho do mundo) e que aceitaram a missão, talvez laboriosa, de falar sobre a Obra e o livro de alguém que nem sempre foi para os amigos aquilo que eles têm sido para ele, e que disso não pede desculpa, mas unicamente redenção. Agradecer à Maria a compreensão por me encontrar frequentemente fora deste mundo discursivo. A outros, que não nomeio, agradeço também outras coisas que eles sabem bem.

Quero igualmente fazer um agradecimento muito especial a alguém que está demasiado longe para poder estar aqui hoje. Refiro-me a Fulvio Capurso (marido da minha filha mais nova), o meu artista preferido, cujo talento e sensibilidade vieram dar à minha poesia uma companhia visual muito especial e que sempre me comove. Hoje não quero deixar de vos mostrar algo mais sobre Fulvio e pedi ajuda à minha filha Ana, tão distante no Uruguai, que me arranjasse algumas fotos. Eis o que preparei, começando com uma pequena apresentação que pedi ao próprio Fulvio que fizesse de si.

            * * *

Quero, pois, hoje falar-vos da importância das coisas que costumamos dizer que são do coração. E a que podemos dar vários nomes: carinho, amor, amizade, fraternidade. E gostaria de começar por falar-vos uns segundos de Pablo, o meu menino de todas as coisas. Aquele que está sempre comigo. O meu filho pequenino e tão querido, que aparece em diversos poemas deste livro. O meu menino da sábia inocência, e que tantas vezes me perco a olhar. O meu tão amado menino com quem voltei a aprender novos nomes para sentimentos antigos. A nunca ter demasiados pássaros numa só árvore. E que por onde quer que vá levo comigo, carrego no meu coração.

Este livro é dedicado a um amigo que faleceu recentemente. Um amigo bastante mais velho que eu, que foi meu aluno quando eu andava nos trinta e poucos anos e ele nos cinquenta e tal. Eu que nada sei sobre os mistérios da morte, digo-vos que um amigo me faz sempre falta. É essa falta que me entristece. Durante muitos anos fui conversando e convivendo com o António e isso, compreendam, mudou com a sua morte. E quando pronuncio o seu nome não é em vão que o faço, e encho-me silêncio.

Em Julho de 2016 a minha mulher e eu fomos visitá-lo e à sua Deolinda a Tomar, onde estavam a residir. Passeámos naquele pequeno bosque junto ao rio Nabão. Foi um dia de muito calor e muitos peixes. Havias peixes por todo o lado. As folhas das árvores tinham peixes. As palavras tinham peixes. Havia peixes no abraço com que nos despedimos “até breve”. Mas faleceu antes disso, em finais de Novembro, a caminho de tomar café com um amigo. Tombou a escassos metros desse café. Era um dia frio e havia demasiados pássaros para uma só árvore.

O António Rêgo gostava muito de conversar. Gostava muito do convívio. Ele sabia que há no convívio com amigos algo que se acrescenta sempre. Que se ganha. Algo que fica. O convívio com um amigo é uma espécie de conta de multiplicar. E que tem António Rêgo e as coisas do coração a ver com poesia, e este livro?

Sei que há gente que julga que a poesia tem que ver com coisas “importantes”, coisas de pôr em bicos de pés, prestígio, uso de palavras rebuscadas e discursos afins. Permitam que vos fale sobre aquilo com que acredito que a poesia tem que ver.

Creio que existe em cada um de nós uma zona, um espaço, uma coisa que jamais conseguimos tocar. Algo que não conseguimos expressar. Uma espécie de segredo. Algo que adivinhamos, pressentimos, mas que não sabemos. A isto chamo o ponto cego da existência. É este ponto cego da existência que dá às coisas um mais-que as próprias coisas. Porque eu sei que lá está, sinto a sua presença, dirijo-me a ela, e no entanto não faço a mínima ideia do que é ou de como é. Quero dar-lhe um nome, mas não consigo, pois todos os nomes escasseiam. O ponto cego da existência é o que é, desde sempre e sem que o saibamos ou conheçamos. A poesia, digo-o já e sem rodeios, é do domínio do-que-não-há. O ponto cego da existência é, permitam-me o exagero, profundamente inalcançável. Aqueles que se atrevem a olhá-lo fazem-no por breves momentos. E é talvez por isso que, de alguma maneira, o poeta é um estrangeiro. Por onde quer que vá, e enquanto tal, o poeta é sempre um estrangeiro, pois a poesia não é apenas do domínio do que do-que-não-há, como é igualmente do domínio do-que-não-se-tem.

Sendo agnóstico, quando me dirijo a Deus abro uma janela onde mão alguma alcança a noite. Respiro e o que respiro é uma distância que há em mim e que jamais toco. A poesia que me importa abre para fora dos nomes. Há quem diga que nomeia o indizível. Pois bem, este será um mistério da poesia: dizer o que não pode ser dito. O Homem usa a linguagem escrita e falada, todavia estas mais não são que revelação do inalcançável. Revelação do que não cabe. A existência de cada um de nós é uma coisa incabida.

Já o disse atrás: o poeta é um estrangeiro. E nesta demanda de um-sem-lugar encontra o amor. Porque também o amor descabe e é um sem-lugar. O amor faz crescer as árvores. Digo isto porque pretendo que fique claro que creio na poesia como abertura para o Outro, pois é nele que se revela, igualmente, esse inalcançável ponto cego da existência. Creio numa poesia de generosidade, gratidão, dádiva, compaixão, perdão. Creio na poesia como o abraço entre dois amigos. Por isso, reafirmo: os amigos fazem crescer as árvores.

Mas o que é um amigo? O que é essa coisa chamada amizade? Que espécie de sentimento é este, que nos faz crer tanto nos amigos, confiar neles como se donos fossem de poderes especiais? Partilhar com eles alegrias, dores, ou sofrimento? Que magia há nos amigos, pergunto-vos, que nos faz crer que tudo neles é transparente e luminoso?

Ao longo da minha vida tenho assistido a alguns factos muito misteriosos. Um amigo tem poderes curativos sobre nós, prolonga-nos a vida, protege-nos da chuva quando nos dá a mão ou toca um ombro. Se estamos tristes ele chega e com uma palavra impronunciável cura-nos da tristeza. Inexplicavelmente, os amigos têm o poder de saciar-nos da fome ou da sede. Quando estamos exaustos, tão cansados, vêm junto de nós e sorriem, e então vamos por onde vamos. Os amigos fazem-nos crer em coisas que só existem para eles e partilham-nas, repartem-nas com as mãos, e tornam-se nossas também.

Os amigos não precisam de cartas de recomendação, de juramentos ou palavras de honra. O que dizem serve uma vez e para sempre. Aos amigos perdoamos o que não se perdoa a ninguém, pois aos amigos outorgamos a bondade dos defeitos, o direito à imperfeição.

Os amigos não mentem: contam-nos versões da verdade. Aquilo que nos outros é mentira, nos amigos é força da imaginação. É que aos amigos liga-nos algo que não nos liga a ninguém: o segredo da amizade. Porque a amizade é uma coisa de magia, que purifica, compreende, transforma. A amizade cura.

Um amigo jamais esquece outro. Poderão passar anos, mas nem a morte pode separar-nos de um amigo, pois ele ficou connosco desde o primeiro abraço, desde a primeira vez que tocámos o ombro um do outro. Quando nos disse a palavra autêntica.

Anda por aí tanta gente a impingir Deus aos outros. Por que não tentam, apenas, ser amigos? Existe algo de santidade no abraço entre amigos. Amigo é aquele que espera de mim humanidade e comigo partilha a sua. Não espero de um amigo que seja santo ou flutue acima dos telhados da cidade. De um amigo espero apenas a bondade do seu pedaço de humanidade; o perdão, a compreensão pelo meu pedaço de humanidade. Que seja para mim uma metade e eu a outra que sou para ele. E que seja de todos o mais próximo de mim. Que aceite os meus erros e fraquezas e me retribua com o seu abraço de imensa grandeza. E por isso digo que a amizade é uma coisa abençoada. Não é algo que se compre, se troque, se venda ou peça emprestada. A amizade é uma dádiva, e não tem peso ou medida. A amizade não é calculista. Não depende disto ou daquilo. Ela é simplesmente o que é, pois a amizade é inocente, e só o que é inocente perdura.

A amizade não se mede por palavras. Existem amizades silenciosas, recatadas, amigos que nos tocam de longe ou com simples gestos verdadeiros. A amizade não precisa de explicações. Ninguém sabe de onde vem, de que matéria é feita, mas todos sabem reconhecê-la quando chega. Não precisa de adjectivos, nem de justificações, e por vezes cai dentro de nós como um sentimento que nos torna muito maiores que a nossa própria vida. Se não temos amigos vivemos e morremos sozinhos.

E no dia da nossa morte, amigo seja aquele que pronuncia o nosso nome no silêncio do seu coração, e o diz como se perdesse uma coisa de valor incalculável.

Os amigos fazem crescer as árvores.

Carlos Lopes Pires

Cortes, 1 de Abril de 2017

                          

3. Intervenção de Pedro Jordão

CLP – um poeta abridor de janelas

Nota introdutória

Tive oportunidade de ler quase todos os livros até hoje publicados pelo CLP. Como amigo, ofereceu-me todos os que não se achavam esgotados. Li e reli a maioria dos poemas. Fui até um pouco mais longe porque musiquei muitos deles: até hoje cerca de 60, 24 dos quais já editados no duplo CD intitulado ERA TÃO AZUL.

Mas surpreendeu-me a escolha do Carlos: “serias tu de parceria com o Luís da Mota.”

Naturalmente senti-me lisonjeado: eu, um zé-ninguém da literatura... Ainda tentei esquivar-me, mas a insistência do Carlos trocou-me as voltas, argumentando com o facto de ter musicado umas dezenas de poemas dele. Por isso aqui estou, lisonjeado mas feliz pela vossa companhia.

Tive desde logo a tentação de intitular este meu comentário: CLP, o poeta das formigas – tantos são os poemas em que as formigas, mas também as aves, assumem protagonismo, acenando das janelas que o poeta vai abrindo.

Finalmente quero esclarecer que este meu comentário se refere exclusivamente à obra poética de CLP.

A escrita poética

A poesia do Carlos não é espectacular. Não ofusca, não faz impressão aos olhos de tão brilhante, não é bombástica, não nos abana os tímpanos como trombeta de anunciar façanha épica. Não sobressalta, não embasbaca, não assombra, não usa sapato de salto alto para parecer maior do que é. Não precisa de pintar o cabelo para disfarçar a idade porque não tem idade, não precisa de dicionário para se compreender porque se compreende normalmente sem dicionário. Reconheço que num caso ou noutro nem o dicionário nos ajudaria a compreender exactamente a vivência do poeta, sobretudo quando ele abre uma janela interior e pretende comunicar uma experiência que escapa à vulgaridade. Mas já sabemos que há sempre um desfasamento inevitável entre o sentido que o escritor atribui às suas palavras e o sentido percebido pelo leitor. É da natureza da comunicação verbal.

A poesia do CLP é omissa naqueles artifícios que ajudam a fazer passar uma imagem de sucesso rápido, imediato, espampanante. Ele limita-se a deixar fluir a sua poesia com a naturalidade serena de uma fonte de água límpida.

Os seus versos não têm uma métrica certinha obediente aos padrões estabelecidos? Não, não têm – que pena! –, com excepção de alguns poucos sonetos. Os versos dele não rimam? Pois não, não rimam, a não ser ocasionalmente. É certo que a rima por vezes ajuda a mensagem a entrar pelo ouvido... quando não tem o efeito oposto. E por vezes deparamos com certos poemas que nos parecem inconclusos – que pena! –, poemas que não terminam com o ponto final ou equivalente, como mandam as regras, uma espécie de versos sem fronteiras, que aparentemente não começam nem terminam logicamente... E tais poemas deixam-nos como que em suspenso? Pois é verdade que sim. Mas felizmente que sim! A poesia de CLP é uma poesia de liberdade, em que as referências aos níveis mais profundos da vida humana ocorrem com toda a naturalidade e não surpreendem, fluindo como a tal água que brota da fonte límpida sem precisar de canalização. A propósito de canalização, diria que a poesia dele não é planeada, não encaixa numa formatação prévia nem posterior, nem tão-pouco segue os trâmites de produção alheia: tem de facto a marca inconfundível da personalidade do autor. Isto, para quem o conhece, é óbvio.

[ver contra-capa da “IGNORÂNCIA” (o 1º poema que eu musiquei...)]

Misticismo – janela para o alto

E aproveitemos para apontar desde já uma das traves mestras da poesia do CLP: há um sopro de misticismo que paira sobre a maior parte da sua obra, uma dimensão espiritual que às palavras se acrescenta e está para lá do seu sentido comum.  Infelizmente, tal dimensão parece ausente, nunca tanto como hoje, em todos os sectores da cultura, em todos os campos em que se desenrola a vida dos cidadãos.

Notemos pois: se as palavras do poeta aparentemente dizem uma coisa, numa segunda leitura virá à tona um patamar de significação mais elevado, um outro nível de sentido que transcende o imediato, um nível mais etéreo que porventura nos aproxima da visão original do autor. Digamos que a visão mística se insinua nos interstícios das palavras. Na verdade, o impulso poético projecta nas palavras impressões fugazes que provêm não raro da própria alma, ou mente profunda (para usarmos a terminologia dos sábios místicos budistas). E é justamente a alma ou mente profunda a parte do homem menos explorada e menos conhecida do próprio homem. Ignorando a sua verdadeira dimensão espiritual, o homem volta para a materialidade os seus esforços para encontrar aquilo a que chama, de um modo obsessivo e patético, a felicidade. Erro trágico! Quando se referiu metaforicamente à porta estreita, o que o Mestre Jesus terá querido dizer é que o reino de Deus – a felicidade perfeita, aquela que não se extinguirá jamais – só é acessível ao homem através da própria alma, e não pelo acumular sôfrego das gratificações do corpo e da mente.

Se os santos e mestres espirituais são abridores de portas, aproveitemos a metáfora para chamar a certos poetas abridores de janelas. Não hesitamos em incluir CLP nessa categoria. Diremos então que a poesia dele abre frequentemente uma janela para o alto quando nos relata experiências vividas interiormente. Não existindo uma linguagem específica para esse tipo de vivências, o poeta tem de recorrer à linguagem comum do dia-a-dia. É o que sucede na maior parte da sua obra. De resto, em AS ESTAÇÕES DE DEUS (2002), o próprio poeta declara abertamente, referindo-se a Deus: “Todos os meus poemas falam de ti”

Misticismo – a natureza como janela

É neste sentido, mas não só, que devemos encarar a referência frequente do poeta à natureza. A contemplação da natureza e das coisas simples da natureza vai-lhe servindo para tentar desvendar a janela da vivência mística, isto é, para tentar descrever o indescritível. É certo que a palavra, pela via da metáfora, pode sugerir ou canalizar impressões, mais ou menos vagas e imateriais, ainda que a totalidade da experiência, o seu significado último, esse, geralmente nem ao próprio poeta seja normalmente acessível. Por isso podemos dizer que a poesia do CLP, mesmo quando nos fala das coisas mais triviais, de simples objectos ou seres de porte minúsculo, aponta sobretudo para um plano da realidade – um plano do Ser - que a razão não alcança. E aqui me parece surpreender um dos aspectos mais interessantes e significativos da poesia do CLP: a coexistência dos diversos planos do Ser num espaço semântico comum. Exemplifico: formiga é uma palavra, ou seja uma representação mental que designa o bicho “formiga”; é, concretamente, o bicho da classe dos insectos; e é, na poesia do CLP, uma janela aberta, embora minúscula, para... a contemplação de Deus. Não se trata aqui daquele deus que o homem inventou, velhote de barba até aos pés, sentado no seu trono celestial a governar o universo e o homem; trata-se, sim, da substância divina do próprio Ser, aquilo que é comum à espécie humana e a tudo o que compõe a chamada criação. Quando, pois, a poesia do CLP se demora longamente na contemplação da natureza, geralmente está a oferecer ao leitor uma janela, ou pelo menos uma clarabóia que pelo filtro da natureza tem vista para o céu. O mesmo é dizer que, para o poeta, a natureza tem um substrato espiritual.

[ver ONDE (2001), pg. 21 e O LIVRO DAS PEQUENAS ORAÇÕES (2008), pg. 20]

A natureza por si mesma

Mas é frequente, também, o poeta deixar-se flutuar numa contemplação embevecida, quase diria apaixonada, das coisas simples da natureza. A natureza valendo por si mesma e não só por aquilo que representa num plano mais subtil da realidade: as plantas – as árvores, as maçãs, as rosas, as papoilas, as ervinhas que cobrem a terra -, a água (porque é o alimento e é transparente, deixa ver através), os bichos pequeninos e humildes, principalmente as formigas, os pássaros – seres vivos como nós, que assumem a sua estatura de quase nada, que aceitam exemplarmente a sua ínfima condição num universo tão imenso – e que nada reclamam nem cobiçam daquilo que os transcende; e também as casas, que passam porque vão ruindo, e os barcos, porque transitam...

E o poeta sabe que à sua sábia ignorância (sua deles bichinhos) corresponde uma sabedoria mais profunda: a compreensão mais perfeita da sua condição - e daí a humildade que não precisam de cultivar porque lhes é congénita. E neles se demora longamente a sua atenção carinhosa, a sua comovente ternura.

[ver A POEIRA DOS DIAS (1996), pg.48]

Solidariedade humana

A atenção e o carinho do poeta pelas coisas da natureza não podia deixar de contemplar os seres humanos em si mesmos, com todas as suas conhecidas fragilidades e imperfeições, e também com todas as suas lamentavelmente ignoradas aptidões.

Podemos dizer que toda a cogitação, toda a reflexão a que o homem se tem entregado desde que veio ao mundo resulta da sua inépcia para se enquadrar intuitiva e espontaneamente na realidade que é o mundo e a vida. Usando cada vez mais a razão como instrumento de excelência para chegar ao conhecimento, reflectindo e argumentando sobre si mesmo e sobre o mundo, buscando racionalmente, tecnologicamente, desenfreadamente, estabilizar a existência e alcançar esse estado a que chama felicidade – o homem afasta-se mais e mais do objectivo perseguido desde sempre: acabar com o sofrimento e eliminar esse fantasma da extinção que lhe assombra toda a existência. Paradoxalmente, contudo, é nessa mesma incapacidade do homem que assenta o grande motor que tem estimulado e impulsionado toda a evolução da espécie, tanto na origem das suas conquistas como na origem dos seus fracassos. Se as conquistas nunca são totais, completas, definitivas, os fracassos, esses, tantas e tantas vezes, são demolidores... Falamos do carácter trágico da existência humana, em que a poesia do CLP mergulha raízes igualmente profundas. Ele mesmo o declara em

FALAR ÀS AVES (1993):

“eu poeta me declaro amante do mundo

das coisas feitas e transitórias

solidária voz da dor que nos acompanha”

Toda a obra de CLP é percorrida por um sentimento de solidariedade perante a condição de incerteza e transitoriedade que caracteriza tudo quanto vive. Assim, também em O LIVRO DE PÓ:

“Se os meus poemas pudessem tudo abarcar

eles seriam um só e único abraço

rodeando todo o planeta”

A saudade

Cabe aqui referir o sentimento de tristeza pela perda irreparável dos familiares e amigos queridos. É um sentimento assumido como saudade, uma saudade que percorre intensamente alguns livros e se estende logo aos tempos de uma meninice feliz e descuidada. Mas é uma saudade que o poeta sente agravada pela dor de envelhecer conservando a memória de um passado que não se repete. Lemos em GUARDA-ME CONTIGO... (2014):

“é tão estranho envelhecer com as papoilas ao lado do coração”

E na pg. 76 o apelo dramático lançado à memória da mãe e que dá o título ao livro: “oh, guarda-me contigo entre as papoilas”.

Solidão: o homem é o seu próprio caminho

mas deus é o termo de todos os caminhos

Decantadas as ilusões e os sonhos loucos da juventude, em que tudo parece oferecer-se ao alcance do olhar, bem cedo o homem comum se apercebe das contingências do mundo e da vida. “Num mundo feito de coisas aparentemente importantes, de lutas e conflitos pela posse de coisas feitas de pó”, a vida começa a doer, e por vezes dói bastante. Onde as incertezas fazem a regra e não se descortina excepção, nada existe que ofereça garantia de permanência; a vida humana não segue um percurso rectilíneo facilmente previsível; antes constitui um fluxo de incertezas constante, com a agravante de não se repetir de indivíduo para indivíduo,

“como se fosse um grande rio onde tudo se apaga e nada permanece”.

É talvez em O SINAL DE JONAS (1999) que se acentua este lado sombrio da existência, já anteriormente abordado, aliás, em A ÚLTIMA CEIA (1996), A FUGA DAS CIDADES (1997) e ALGUÉM QUE TU CONHECES (1998).

[ver A FUGA DAS CIDADES, pgs. 22, 23, 32, 49]

ALGUÉM QUE TU CONHECES é um livro muito curioso em que a poesia acontece em forma alegórica, diluída e destilada sob a forma de prosa, em que a figura do Mestre Jesus, inspiradora de um sem número de poemas, se cruza e completa com a figura de outro grande luminar espiritual da humanidade: o Buda Shakyamuni. Sobressai aqui a grande constatação: não existe um caminho único, solidário, comum a todos os homens; cada ser humano tem um destino próprio e um caminho individual a percorrer, um caminho fatalmente solitário que não pode partilhar com o seu semelhante. Como diz o poeta em A ÚLTIMA CEIA, “o homem é o seu próprio caminho”.

Contudo, no termo desse longo e tortuoso caminho, nada menos que a consciência da nossa verdadeira natureza: somos Deus, somos universo, somos infinito. Ouçamos o próprio poeta:

[ver O PERFUME DA FLOR (1996), pg. 50]

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E o percurso poético de CLP prossegue com a publicação de A MINHA POESIA É UMA IGNORÂNCIA, que hoje nos trouxe aqui. É claro que já o li. É um livrinho, se atendermos ao formato impresso. Mas um livrinho com uma edição de um bom gosto que merece uma menção especial. O meu aplauso a quem concebeu e realizou a edição.

Obrigado pela vossa atenção e o vosso silêncio.

Pedro Jordão

Cortes, 1 de Abril de 2017

 




Por Mário Marques da Cruz

Meu caro José Adelino Vieira Brites,

Li este teu último livro e ouso falar dele, já que confiaste em mim para o apresentar.

Por ser a visão tua sobre ti mesmo de nada valem as palavras que vou proferir. Aceitá-las-ás modestamente... à tua maneira, eu sei.

Falas dum zé, pondo-te a coberto dos juízos que dele faremos. Mas ele és tu, até porque o tratas tão mal. Impiedoso ao princípio, vai-lo compreendendo... e nós a ti...

Zé: a Isabel leu, Tirso de Molina. Reconhecerás assim mesmo que a tua literatura não é da igualha da daquele frade do Séc. XVII. Fica, reconhecemos todos, aquém, na eloquência da adjectivação; distante na erudição das evocações. 

Tem contudo outro valor, a tua escrita, repara tu: excede-a na fraternidade com que facilmente nos conquistas. Na humildade dos sentimentos com que queremos identificar-nos. Esta sim: é de ouro de mil quilates a singeleza e frontalidade de que ela se reveste. A tua escrita é espontânea e muito, muito fraterna. Além do mais, Tirso negou o próprio nome, enquanto tu o exibes tão garbosamente – “o Zé”! Aquele erudito negou também a paternidade, e aí, Zé Adelino... eu vejo confirmado neste livro o que já sabia: os teus Pais são os teus primeiros e principais heróis! Eu sei... ainda hoje!...

Para nós é cómodo: só de vez em quando caímos no Zé Brites. No resto... é um Zé ninguém. É o Zé português. É o Zé daquela época... que afinal reagia e tinha sentimentos...  Mas vamos crescentemente acolitá-lo nas suas aventuras e acabarmos por admirá-lo no seu exemplar espírito de sacrifício e rejubilar com ele nas boas ocasiões. Correste a tua vida de trás para a frente. És um maratonista... que não acabará cansado tão pouco... Não se fica indiferente a esta corrida que foi a tua vida. Até queremos correr ao teu lado este pedaço grande que te restará ainda.

Ah, o livro! Oito vértices, poucas páginas...

E chocamo-nos! Quem está em contramão? Pois basta termos presente esta poesia do aflito Álvaro de Campos:

Onde é que há gente neste mundo, pergunta o poeta angustiado!...

E hoje, respondo: em tua casa! Satisfá-lo, Zé, a esse angustiado Álvaro de Campo e diz-lhe que aí só havia ”gente ordinária”... na boca do teu saudoso Pai! Desassossega esse Fernando Pessoa, aflito desde a década de 30... nem todos são semi-deuses! Onde é que há gente neste mundo? em tua casa! Tu e os teus : Gente de verdade, que sofreu enxovalho e foi vil no sentido mesquinho e infame da vileza. E além de ti havia naquela casa mais gente! O Afonso a pedir o terço e a Ti Teresa a esticar as magras batatas (que ainda partilhava às 4 de cada vez!) para vos minorar a fome. Porque aquela casa existiu, existes tu inteirinho... que a descreves tão candidamente, mergulhado em recordações tão sublimes e poéticas...  mesmo imersos que estavam em dívidas, em trabalho duro, em dificuldades. Nela se revelaram os teus Pais – os teus heróis de sempre... e os teus irmãos, contra a vontade de quem tu nos contas com tanta graça que nasceste... tu e os teus... gente de verdade que sofreu enxovalho e foi vil e que por isso foi inoculada de fraternidade, de humildade, do dom do perdão e da misericórdia – uma fortuna mais herdada da tua Mãe e que te traz em paz com a tua consciência que a sugere e com a tua inteligência que a exige. E assim, podes confessá-lo, em nome da verdade dum retrato factual daquela aldeia e daquela época...

O livro, o livro! Capas pretas, sem badanas...

Vamos então à infância e descalço-me para ir contigo à Escola. Vou acompanhar-te no teu deslumbre por esse teu primeiro espaço exterior à casa, nessa primeira experiência de “alforria”. Vou ajudar-te a reprovares na 3ª classe e em compensação tu ensinas-me dos ninhos... (ninguém reprova, Zé – são todos os “maiores”!)

O homem é um ser eminentemente social e tu és disso o paradigma acabado. As pessoas com quem interages vão ser o móbil da tua vida de humanista dos 4 costados. Os teus colegas são esse teu primeiro mundo novo e se eles têm sapatos, tu tens a Ti Teresa que te cura os esgrumeiros dos pés com azeite quente da candeia... mas agora Zé, vamos aproveitar a natureza, pródiga, sempre mais para os que a merecem: enchemos o teu farnel de trevo azedo, de pútegas, maçãs azedas e figos do mato – tenho água na boca!

O livro! faz outro... de seguida, pá!

Ah, sim!... Sucedem-se os episódios mais e menos pitorescos daquela juventude pobre e vivida intensamente. As festas fictícias que encenavam com padre, banda e tudo... os casamentos e as amêndoas rijamente disputadas e... surge a poesia. E logo com “a fonte” sobre quem poderás e deverás exercer a posse plena. Invoca pois a usucapião pelo espírito já que pensas nela a toda a hora...: - é tua a fonte! Porque dela cantas as sofredoras mães que à cabeça levavam a frescura, a higiene, a água da escassa sopa e as preocupações para o jantar. Para ti, a fonte é... o brotar de muito mais que aquele córrego de água e de mistérios. É o local de encontro de ânsias, de desespero, mas também da remissão do espírito e do corpo,  e de encontros felizes de namoricos... e acima de tudo foi, a fonte, uma musa mais da tua poesia – essa que é a tua companheira mais antiga e também sempre fiel, confidente, refrigério quantas vezes do sofrimento e da desesperança.

O livro!... 96 páginas!...

Mas ainda bem que surge a poesia... que tu a quiseste para a tua vida...

O mercado dos homens vem a terreiro. Poupas-nos palavras vãs, mas não nos poupas à revolta a que aderimos num abraço em que te envolvemos na tentativa de ajudarmos os menos capazes e que ficaram de fora nas preferências dos empregadores... sem emprego, sem jorna... mas que tinham igual amor pelos filhos a quem também não podiam valer. Tu ficaste chocado, Zé! Imaginamos como se te apertou o coração ao constatá-lo. Mas... obrigado por essa pincelada mais desse retrato de época, aí salpicada da fria e escura côr da desumanidade daqueles tempos... hoje até já largamente ultrapassada por mais ferozes iniquidades e crueldades...

Mas a tua espontaneidade atinge níveis de verdadeiro literata quando nos manifestas com tanta graça que “a gordura e os sapatos não pesavam” e as atopadas eram eficazmente curadas com macheias de terra ou teias de aranha. Deixo mais um cumprimento e afectuoso abraço por esse teu desassombro e apetece-me gritar aos médicos de hoje que chegaram tarde e que afinal são eles a medicina alternativa. Querem remédio mais eficaz? Mais ecológico ? Teias de aranha: abundantes, geométricas, sem iva... nem princípio activo!...            Sucede-se poesia, agricultura, a confissão e a hóstia saborosa e estás caído... nos amigos. Os verdadeiros, chamas-lhes. Mas nem havia outros: teu primo Luis, primo Joaquim e irmão António... amizade vivida sem interrupções nem mesmo quando se apoderava de ti uma confessada inveja por não teres tais roupas e tais sapatos... aquelas alegres cumplicidades tudo compensavam e os amigos são em ti, inexcedíveis... todos! É o que ressalta do teu livro... das verdades nele contidas...

Neste livro, uma seta vermelha... muitas setas...

Lá dentro as estrelas, os bagoixos, os dias do bolinho, num retrato sociológico fidedigno, circunstanciado porque muito bem ilustrado – basta o coração - e realista porque cheio de emoção, claramente notória... por exemplo nas mulheres do dia do bolinho, que nos apresentas confinadas às varandas de que não desciam os degraus, vinculadas que estavam às tarefas da cozinha, na multiplicação da farinha mesmo antes da dos pães, da roupa, do espírito em infindáveis rezas... então aproveitavam aquele dia para contactarem as crianças da aldeia e assim se renovarem naqueles sorrisos, maroteiras e novidades sobre os seus pais... e atrevo-me a falar de literatura para enfatizar um belíssimo momento mais da tua auto-biografia: versejas sobre o Soutocico na década de 50 e nas carências, essas sim à farta. Cativam-nos o teor do verso. A métrica ritma-nos o pulso e os sentimentos... a rima embala-nos... e de repente, daquele ambiente lúgubre ressurge a tua juventude e o teu sangue a correr nas veias e feres-nos: “indiferentes à miséria existente, Zé e seu primo Luís percorrem todos os poços que havia em redor, à procura de caracóis e de ninhos de toutinegra”.  Meu caro: Redol e Pereira Gomes não fizeram melhor. A literatura tua, atinge neste contraste um clímax mais da sua expressividade. E foi-te fácil fazê-lo: bastou admitir que a tua vida continuava, e essa era a de aproveitar a natureza pródiga, para quem a merecia: o Soutocico vivia na escravidão e “com banha rançosa nas salgadeiras”,mas a tua vida sentia o apelo também das toutinegras e... como te ensinou o Afonso teu saudoso pai: “o tempo não se espera em casa!” e tu brindas-nos com essa literatura à maneira dos neo-realistas, também eles irmanados contigo na denúncia desabrida da condição social.

Este livro... perscruta e escrutina a tua alma e tu, apaziguado, aceitas-lhe o veredicto... contracapa!...

Manténs o teu sorriso de garoto e se calhar essa inocência. Juraria que ainda hoje confessarias de manhã um pecado para o repetires na tarde desse mesmo dia... por exemplo o de roubares um pepino. Mas ainda bem, Zé, que o roubaste. Rouba mais... e leva-me contigo!... Fingiu a tua Mãe, perante o espoliado proprietário daquela horta, que te dava um castigo... e tu apresentas-nos, como ninguém, de como as Mães gostam dos filhos: fingiu ela que te castigava, que te batia... e tu fingiste que choravas, numa cumplicidade que eu juro nunca mais terás conseguido com ninguém. Por isso elas são as nossas Mães e aquele indulto que te concedeu a Ti Teresa, todo compreensão e amor, traduz na justa medida de quanto é capaz uma Mãe. Tu sabes, Zé: irrepetível. Mas talvez esse exemplo da Ti Teresa te tenha inoculado esse condão de seres aquilo que és na hora de julgar os outros: tolerante, compreensivo. Também o era a tua Mãe: terna na hora de perdoar. Também o era a minha própria Mãe, soutocicense como ela.

Ah!, O livro! Contramão! Nós, os outros, é que estamos em contramão, parece-me!

Mas o Zé faz-se um rapazola e o seu Pai sabe disso e chama-o de ajudante no campo... e começa também a ganhar a jorna... para a casa, pois os irmãos tinha emigrado.

Sentia-se pequeno “na aridez daqueles campos” da Curvachia... e é fácil, a quem como Raul Brandão “extrai ternura duma pedra”, é fácil, dizia, traduzir para o papel as percepções que vão acrescentando a sua vivência... algum silêncio e contemplação e os mistérios da religião tomam agora o lugar do irrequietismo de criança.  Esse silêncio é refúgio que nem a poesia interrompia. Sentia-se inadaptado o deslumbrado Zé, pelas pessoas e receia não poder vir a ser como elas. Tempos de ânsia, de hesitações... E num pequeno capítulo fala-nos na novidade na aldeia sob a forma de luz eléctrica mas também da sua fase mais mística – práticas, sonhos...

Eu não sou literata, mas sou atrevido e ouso aqui identificar uma característica desta autobiografia: a descrição surge-nos despida, confessionalmente desabrida e sempre emotiva e... onde repousas tu de vez em quando? Nos textos com que nos descreves pessoas, o lugar e as casas: textos que são contemplações risonhas e tolerantes sobre o menino que tu foste; juízos de atitudes só isentas porque distanciados no tempo; mas sempre com muita poesia ou prosa poética... aquela que te corre nas veias. São assim os textos da casa, do sonho com o sol e o da subsistência.

Mas permito-me enfatizar o texto do corte do mato, que nos ensina quanto naquele tempo valia uma ordem dum Pai. Era um ensinamento e um caminho aberto para os bons resultados. Mas... vamos ao mato, com o Zé!:

- levanta-te, são horas!

Puxou da camisa já transpirada de outros dias, vestiu as calças que cheiravam a pó...

Puxou as botas cardadas de debaixo da cama e calçou-as...

Olhou para os santos pendurados em quadros de parede, que pareciam olhar para ele...

- pega na enxada, no barril de água e vamos embora!

Colocou um casaco velho pelos ombros e partiram a caminho da serra...

Nada disseram um ao outro...

Estava escura a noite ele sentia medo das bruxas e dos lobisomens...

Por isso ainda seguia mais junto aos calcanhares do seu Pai...

Na subida da serra, o mato áspero ia-lhe batendo nas pernas... enquanto alguns tremoceiros que haviam sido ali semeados faziam barulho à sua passagem...

De vez em quando uma cotovia levantava voo debaixo dos seus pés

De repente um espesso nevoeiro invadiu a serra...

Começou a sentir a maresia a amaciar-lhe o rosto...

Alguns pingos caíam-lhe do nariz e das orelhas...

- como se não vê ainda bem, vamo-nos deitar um bocado até que comece a clarear...

Era o que ele queria ouvir...

Estendeu o velho casaco sobre os carrascos, arredou algumas pedras para que o não aleijassem nas costas...

Tapou o rosto com a ponta do mesmo e adormeceu logo de seguida...

- vamos que já se vê!

Ainda se não tinha levantado já o seu Pai ia batendo com a enxada contra o mato...

Nos seus tenros 16 anos, ia sentindo dificuldades em acompanhar o ritmo do seu Pai...

- vá... não pares, daqui a pouco vem para aí um calor dos diabos...

O sol começava a aparecer entre os ramos dos pinheiros...

O cabo da enxada fugia-lhe das mãos e o zé cuspia-lhes...

De repente viu surgir o vulto de sua Mãe ao longe...

Sentiu naquele momento uma mistura de alegria... e de amor...

A mãe chegava com o almoço e ele, querendo mostrar que era homem, nem parou logo!...

- vamos almoçar antes que arrefeça...

Sentou-se em cima do casaco que estendera, agarrou no tacho e na colher e comeu em poucos segundos as batatas com bacalhau...

- não bebas tanta água que ficas com o estômago pesado e daqui a pouco queres beber e não a tens... vamos empavear o mato...

Vamos... levanta-te... vamos, Zé... vamos... vamos... e foste... à serra cortar mato e... escrever das páginas mais humanas com que deparei na minha vida de leitor, também deslumbrado. Vamos ao mato, Zé! E leva-nos pelos caminhos dessa alma de sonhador, de poeta a quem puseram nas mão uma enxada e tu transformaste na pena subtil... na mais sublime relatora dum lugar e das suas gentes...

É o teu caminho atravessado por mais episódios, que os leitores, aqueles que não passaram histórias semelhantes aproveitarão em larga escala. Os outros, rememorarão e sentir-se-ão regressados prazenteiramente a esses tempos irrepetíveis.

Este livro! O livro! Uma autobiografia... talvez por isso não tenha prefácio, tão-pouco de dedicatória...

Atravessa-lo com fotografias e documentos também eles curiosos e já de per se, retratos de época.

É este livro também um fórum privilegiado teu, de agradecimento. A quem te fez bem. E tomamos nota da generosidade de algumas pessoas. Que te quiseram bem e te ajudaram.

A biblioteca Gulbenkian exerceu sobre ti decisivo fascínio e começou a moldar-te. Estou errado?

E vem o período africano da tua vida! É rico esse período do teu livro porque nunca deixas de ilustrar o ambiente, trazendo-nos as realidades da PIDE/DGS e a repressão, a precariedade dos teus tratamentos e que revelavam a consideração que o estado desse tempo tinha pelos melhores dos seus filhos...

A tua tropa em Angola teve um preâmbulo de peripécias onde pontificou mais uma vez a amizade... desta vez do João Ganchica. Que bom termos amigos... merecê-los!... Sabemos que, depois de Angola, das doenças, das injustiças, do afastamento, do tédio também experimentado, nessa colónia do teu desespero, vais fixar-te em Moçambique e arranjas emprego. Encontras uma comunidade de soutocicenses que apoias e onde és apoiado... e aparece em Moçambique, vinda de qualquer paraíso a tua futura mulher... casam em novembro de 1973, com uma adiada lua-de-mel e tudo!...

Nunca fala de namoradas e é compreensível: afinal a sua namorada (ainda se namoram!) iria ter com ele e ampará-lo, até... hoje. No livro não fala de namoros mas nós sabemos que é assim: guardado está o bocado...!... e é aqui que a vida e o livro e o Zé mudam de rumo. “Levantado da lama” é a tua mulher que te apoia no processo duro da descolonização que viveste e que contas com tanto pitoresco e tanta sinceridade! É a tua mulher que te ampara, no abandono que denuncias dos governantes portugueses e te dá força para regressar à terra. E te dá um filho primeiro e outro depois... é a tua mulher que te ampara até ao momento em que as nuvens te deixam finalmente um horizonte límpido, sopradas por algum vento de bem-aventurança. Quando, já em Portugal, na condição aviltante, também, de retornado, te sentias traído e maltratado, reentras na agricultura (1976/78) para a sobrevivência da família... e substituis-te à mãe dos teus filhos (também a tratar da subsistência). Substitui-la em aventuras, por exemplo, no dispensário.

Difícil é saber em que fase da descida da guilhotina passa um condenado a cadáver, mas em que fase da tua vida ela assume um definitivo rumo de paz e dias venturosos na humildade do trabalho, da família e dos amigos, essas tuas grandes opções, esse momento é o da chegada da carta da Escola Preparatória dos Marrazes, parece-me bem...

Chega uma carta para te apresentares na Escola. A partir daí, foi esperares que te reconhecessem as pessoas que iam sucessivamente dirigindo o teu trabalho. Tu tinhas tanto para dar e... não te deixavam. Aí o teu livro é omisso. Preferes a realidade de algumas insuficiências tuas ao desenrolar de páginas de auto-louvor egocêntrico e balofo. Preferiste ser simples e fraterno, e eu sou um privilegiado por ter estado em algum momento ligado umbilicalmente ao teu percurso literário. Ao compores um pequeno livro comigo, fui por uma vez na vida simples e fraterno. Obrigado, “ganda” Zé!

Mas as vicissitudes sofridas, a ansiedade, estavam para trás... agora era dar tempo ao tempo, tão somente. Desanuviar, cumprir as tarefas de que te incumbiam, partilhar generosamente as missões sociais que tomaste como tuas em tantas e tantas horas em prol da comunidade e das suas organizações. Mas, Zé... namoraste e amassaste os teus amados filhos e ainda te sobrou tempo para a tua querida filarmónica e para os versos. Ainda bem!

Este livro... pequeno, muito amor e candura quanto baste!...

Desempenhaste cargos sociais e preencheste empregos. Uns e outros com responsabilidade, empenho e amor à causa... às causas... mas continuaste fiel à tua amiga e confidente de sempre... a poesia.

Quando escreves:

nasci na cama

de ferros torcidos

cresci na lama

dos vencidos

nasci do álcool

amigo dos trapos

cresci descalço

vesti farrapos...

                                            ................... aí denuncias que o passado não te largava...

Pois é! Ao ver o teu livro, confiamos na justeza do teu julgamento desse teu passado. Esta poesia é também catártica. Ela é a vitória sobre esses tempos difíceis... vitória só possível pela homenagem que, orgulhoso, fazes aos teus Pais, aceitando os seus exemplos de sacrifício; vitória possível pela paixão pelos teus amigos e pela tua terra... que até possui uma fonte donde brotam água e mistérios... possível pelo empenho com que tudo cumpriste; pelo amor da tua namorada de sempre; vitória possível sobre esses tempos difíceis pela probidade do teu comportamento, que vigorará como exemplo cívico para todas as épocas e todos os lugares. A vitória que te permite hoje estares aqui com todos os que em ti se revêm e que te emulam. Invoco N. Camarneiro e deixo: “Uma história são pessoas num lugar por algum tempo”. Esta é mais uma história. Bonita, por tal sinal. O teu livro é muito bonito porque o é a tua vida. E porque escreves com amor pelos outros. Escreve outro de seguida, mas... não tenhas pressa: aprendi no outro dia que Da Vinci  cantava e acompanhava-se por uma lira que segurava na mão com que não pintava. Mas a Gioconda esteve na paleta desse mesmo Leonardo, nada menos que 6 anos... as obras que valem a pena são maturadas por um tempo de namoro, depois, pacientemente geradas e finalmente paridas... e com que dores!...

Mas escreve Zé, nós precisamos! Se tiveres esgrumeiros nas mãos, trata-os: a tua Mãe bem te ensinou que é com azeite da candeia (ou com teias de aranha, a aldeia está cheia delas...).

Soutocico, 29 de Janeiro de 2017

Mário Marques da Cruz

 




Por Luís Vieira da Mota

Fundação Caixa Agrícola de Leiria, 12 de Março de 2016

            De Pedro Moniz, Pérolas de Vida.

            Ou a Pérola do Pedro, ou Pedro, um daqueles diamantes com que, às vezes, topamos na vida?

            O Pedro Moniz recorreu aos mais diversos e astutos estratagemas para me convencer a escrever o prefácio deste livro. Não satisfeito com isso, remendou mais alguns pretextos para que fosse também eu a debitar arrazoados no acto da primeira apresentação pública das suas Pérolas. Eu fiquei muito honrado com o principal motivo que o Pedro evocou para me convencer: a amizade. Todas as outras razões que quis somar a essa são supérfluas. Essa basta. No entanto há uma outra, que ele acrescentou, quase em surdina, que me deixou com certa coceira nas orelhas. Perante a minha tentativa de escusa, aconselhando outros mais apropriados, «Quem, disse ele, melhor para prefaciar o meu livro se não o amigo de há muitos anos e pai da Bé.» Aqui a trombeta deu sinal. Mas falso: não encontrei nestas Pérolas do Pedro nenhum soneto que pudesse fazer da Bé uma “espécie de rapariga com brinco de pérola.” Portanto ficámo-nos pela razão principal: a amizade. Razão tão boa que convenceu.

            «Tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja.» Foi assim que Cristo renomeou Simão. E este Pedro, que vós ireis descobrir nas páginas deste livro, é também uma pedra. Genuína, límpida, como o mármore das estátuas quando não precisava de cera para disfarçar as imperfeições: por isso sincero, sem cera.

            Vamos então, agora, falar de alguma coisa sobre aquilo, não o que vocês sabem, mas sobre aquilo deste livro que vocês ainda não sabem, mas querem saber, e que julgam, ou pelo menos acreditam, que eu já sei. Se querem que vos diga que neste livro há filosofia? Há (Pág 73)

 

             FILOSOFANDO

            Questionaram-me: o que é filosofar?

            Fecho os olhos, mergulho no meu ser,

             Saboreio o que quero responder

            E hipóteses começam a brotar:

 

            Filosofar é querer questionar,

            É para o desconhecido correr…

            Sem ao fim chegar e na meta ver

            Que há outra interrogação a formular.

 

            Filosofar é ter olhos abertos

            Aos mil e um segredos que o cosmos guarda,

            É tracejar com a razão uma via

 

            Que nos levará para os céus libertos,

            Onde a VERDADE em fogo divino arda.

            Abro os olhos. É isto a filosofia!

(fim de citação)

            E há enleio? Há e muito. Mas escolho, para amostra, este excerto do enleio Filipino da pág 17

            «Os teus olhos de suave castanho

            São o Mondego, onde em divina aventura,

            Nada o cisne da plumagem mais pura,

            Qual sereia em mitológico banho.»

(fim de citação)

            Contudo, todo o enleio que o autor revela ao longo destas páginas é contido. Não tem arrebatamento porque é doce e fundamentalmente porque é respeitador. Conhecendo-se o Pedro logo se entenderá essa contenção. Para ele, um cântico arrebatado, com outros termos, ou com imagens mais ousadas seria aproximar-se muito das raias da inconveniência. O que lhe seria muito incómodo.

            Se quisermos encontrar outro tipo de entusiasmo, teremos de recorrer aos poemas onde ele canta outros amores. E então encontramos o homem de Fé. Porque o Pedro é um homem de Fé e de esperança: Fé em Deus e com Esperança nos homens, donde nascem as orações. E roga, na sua Prece, (Pág. 20)

            «Senhor, solicito auxílio!

            Da realeza de David,

            Sapiência de Salomão,

            Fero ímpeto de Sansão,

            Concedei somente o mínimo

            A quem, humilde, suplica:

            Ambiciono ser feliz.»

(fim de citação)

            E, para o ser, basta-lhe apenas o mínimo, um quase nada, de cada dom.

            Se compararmos os poemas que classifico de enleio com os outros, nomeadamente aqueles que dedica à sua terra, às suas terras, principalmente Barreira, Coimbra e Portalegre, sentimos logo a diferença: nestes não há contenção, porque o autor sabe que nestes cânticos não corre o risco de melindrar nem de se sentir incomodado. Mas onde o Pedro vos há-de parecer mais arrebatado será nos sonetos de cariz patriótico, com focagem muito especial no mundo novo, o da modernidade, que Portugal deu à velha Europa e sem o qual a Europa continuaria velha. 

            Não se pode, não posso, deixar de realçar o outro tema, nem sei se o mais importante, de todos os deste livro. São os poemas mais simples, mas também os mais ternos. São os poemas onde o Pedro manifesta a sua gratidão por isto ou por aquilo, por tudo ou por nada, às pessoas que foi encontrando na vida, com uma recomendação muito especial pelo quanto têm de ingénuo, sincero e puro, aos versos Idictianos, nas páginas 26 a 28, onde o autor relembra com todo o carinho os seus colegas de trabalho em Portalegre. Para terminar, alinho o seu Soneto da (Pág. 75)

 

            CONVERSÃO

 

            Era uma vez um rapaz inocente,

            Perdido em confusão por este mundo:

            Tudo o que o seduzia eram, no fundo,

            Os tépidos ideais da humana gente.

 

            Um dia sucedeu fatal acidente:

            Abismos d‘alma tão e quão profundos,

            Plenos de vãos prazeres furibundos,

            Dão lugar a algo muito mais premente…

 

            Aquelas truculentas tempestades

            De tibieza, amargura e sem razão

            São amansadas por brisa muito suave,

 

            Brilham as resplandecentes verdades.

            Dou-te, homem divino, a minha mão

            E sou mais livre do que qualquer ave.

            (fim de citação)

Com o segundo soneto de “Uma ave e o Poeta”, de Teixeira de Pascoaes

            E a avezinha, serena e confiada,

            Num olhar de ternura me envolveu;

            E em sua doce voz iluminada,

            E tão cheia de graça, respondeu:

 

            – Meu canto é luz do sol em mim filtrada;

            Vou a cantar… e canta d luz do céu.

            E das aves da noite a voz cerrada,

            É penumbra que nelas se embebeu.

 

            Sonho a perfeita e mística alegria!

            Desejo ser a alma da harmonia,

            Que toda a terra e todo o espaço inflama!

 

            Quero ser o Infinito e a Eternidade;

            Não ser a estrela e ser a claridade;

            Ser apenas o Amor, não ser quem ama.

                                    Citado de “As Sombras, A ave e o Poeta, II” de Teixeira de Pascoaes

                                    Edição Círculo de Leitores, (As Sombras, Senhora da Noite, Marânus)

                                    colecção Pequeno Tesouro, pág. 82

Finalmente, em conclusão e com autorização do Pedro Moniz,

            SONETO PETRINO

            Ao Dr. Pedro Moniz, no dia da apresentação do seu primeiro livro como poeta

            Pensei, em tempos, o que eu fui pensar!

            Que Pedros só o Moniz e o Santo havia,

            Pois nesse tempo só o Moniz lá ia

            A casa, como amigo, conversar.

            Era tal o calor do seu palrar

            Que à mulher disse, ou ela me dizia,

            Ainda vamos ver o Pedro, um dia,

            Numa “jota” qualquer, a chefiar.

            E vimos! Olha o Pedro que já manda

            Naquela juventude! E aos abraços

            Corremos, aos saltinhos, p’la varanda.

            Após zipar na Têvê os quatro espaços,

            Ficámos p’ra morrer, de cara à banda:

            Afinal havia outro, o Pedro Passos!

Luís Vieira da Mota

 




Soutocico (Arrabal, Leiria), 23 de Janeiro de 2016

Por Carlos Fernandes

Apresentar um livro que é, na sua essência, a história da vida de uma pessoa, não é coisa fácil. Ao pensar em como fazê-lo, confrontei-me com o dilema de vos massacrar com um resumo alargado ou de vos sovar com apenas algumas considerações gerais. Decidi ficar-me pela considerações gerais, até para que tenham o prazer de, ao ler, serem surpreendidos com as histórias que o Fernando Brites para aqui carreou. E desincumbo-me, assim, de uma tarefa árdua para mim e, porventura, massuda para todos vós.

Nascido em 1951, o Fernando, para além de uma longa e bem recheada vida, escreveu vários livros, a solo e em parceria.

Seus, são os seguintes:

Mirante (poesia), Moçambique, 1970;

Canção para um poema só (poesia), Leiria, 1975;

Vozes no Charco (ensaio sobre a guerra colonial), Leiria, 1999;

O último patamar (monografia), Soutocico, 2012;

Em co-autoria participou nos seguintes:

5x5 Poetas de Leiria, 1983;

Poesia Contemporânea em Leiria (Antologia dos Poetas de Leiria), 1988;

Orvalhos de Saudade (Antologia de Poetas da Freguesia do Arrabal), 2001.

Tem, portanto, já uma experiência muito significativa neste mester de escrever, até pelo hábito salutar de sempre tomar notas dos acontecimentos. Penso não desvalorizar a sua produção global se disser que “Vozes no Charco” e “O último patamar” são trabalhos de muito mérito que valem por todos. Porque são o fruto de uma vivência muito intensa e vibrante e a leitura atenta e lúcida dos acontecimentos.

Quanto a este “Recreio de memórias”, que classifica de “narrativa”, ele próprio escreve que «não tem pretensões a ser uma autobiografia, pois obedece a um estilo de escrita diferente, tratando-se antes de uma espécie de quase-diário, mais intimista, preocupando-se apenas o autor em colher as suas memórias, sem receios, pois, como dizia Pablo Neruda, é proibido (…) ter medo das suas lembranças.» Entende que «as mais longínquas serão um tanto difusas, logo menos densas, e naturalmente há outro rigor e precisão na busca das mais recentes», sendo «lógico que os factos mais marcantes da sua existência fluam com outra profundidade». Confessa que, «ao franquear o baú de recordações, tem (...) plena consciência do risco, mas saberá aceitar com humildade a crítica que lhe subjaz».

É uma narrativa quase biográfica, sim. Mas não no sentido de elevar de forma narcisista o ego do autor. Que não é o único protagonista. Há neste longo texto de 612 páginas um conjunto de histórias tão diversificado que o autor, às vezes, parece somente mais um protagonista entre todos os que dão corpo à narrativa.

E, à medida que se lê, percebe-se que o tom pícaro não deslustra o ar sério das questões, que a história divertida ou anedótica não se opõe aos episódios trágicos, que o ar bonacheirão de um engate oportuno não coíbe o sentido responsável do profissional.

É importante ainda sublinhar o olhar atento que o autor põe no mundo que o rodeia, assinalando, de par com a sua pequena/grande história pessoal, os acontecimentos que, a nível nacional ou internacional, vão marcando o compasso da história. Para ser breve, não me detenho em exemplos, que são muitos e sistemáticos. E, repito, acho que será muito mais interessante ser o leitor a ser confrontado com eles e a perceber que a nossa história muito pessoal é sempre uma parte da história do mundo.

Poderão fazer-se sempre reparos à forma como a narrativa evolui, aos nomes citados (ou omitidos), aos episódios mais ou menos comprometedores, às revelações surpreendentes, ao protagonismo do autor, sempre presente em tudo o que conta, et pour cause!, aos seus gostos, à sua verve, ao seu dramatismo, às suas pieguices, às suas aventuras, enfim, a tudo o que escreveu. Sim, poderão fazer-se. Mas... porque escreveu! Porque teve a coragem, ou a ousadia, de escrever. Bastas vezes lhe disse, e aqui o repito, que este tipo de narrativas é sempre de uma importância capital para compreender o nosso pequeno mundo, aquele mundo à escala da nossa terra ou da nossa população. É nestas narrativas que, às vezes, se encontra a chave para alguns enigmas. E se não forem aqueles que conhecem as coisas por dentro a deixar escrito como se passaram, nunca mais ninguém atinará com a resposta.

Em termos de estrutura, o Fernando Brites alinhou a sua narrativa por décadas, de forma cronológica, e até nos facilitou ao sintetizar, num epílogo em jeito de reflexão, o que cada década mais significou para si. Permitam-me que passe os olhos por essas considerações e vos desvele, finalmente, as linhas mestras da obra:

[Primeira década] Começa pela infância, a escola, o significado dos valores sociais tão arreigados às famílias daquele tempo e ao início do conhecimento, da aprendizagem, do saber, da sensibilidade e até da poesia.

A segunda década também é relevante, na passagem para o secundário, a perda da avó paterna e também do primeiro amor, a confrontação com uma realidade de horizontes mais vastos, uma década onde aconteceram revoluções pela libertação de tantos povos oprimidos pelo colonialismo, a revolução sexual, dos tabus, da música rock, do vestuário ousado, da forte emigração, da adolescência, da iniciação sexual, da primeira viagem para Moçambique, a coincidir com a chegada à Lua pelos americanos.

A terceira década foi sem sombra de dúvida a mais importante, porque, quase imberbe, virou soldado e foi obrigado a combater numa guerra colonial desprovida de qualquer sentido, convivendo com a dor e o sofrimento, a morte de dois camaradas de armas. Faleceram-lhe os avós maternos; nesta década ajudou a fundar o seu clube do coração, conheceu a mulher da sua vida e casou, nascendo o primeiro dos seus dois filhos, a Sílvia.

[Quarta década] Nos anos oitenta abandonouo futebol de competição com tristeza, deixou de fumar, nasceu-lhe segundo filho, o João, consolidou o seu casamento, construiu a sua casa e, segundo diz, não tendo muitas posses, iniciou nesta década um périplo pelo Portugal real, para o conhecer e aprofundar. Publicou, entretanto, os primeiros livros de poesia e ganhou prémios nesta arte; inconformado, procurou novas soluções no mercado de trabalho, sem grande sucesso, voltando à escrita e à leitura como um escape.

[Quinta década] Esta década, que qualifica de mudança, começou com a dor atroz pela perda da sua madrinha Lucinda, a quem devotava grande respeito pela sua sabedoria, e também do seu cunhado Alcides, com quem partilhou a escola primária e, mais tarde, as aventuras da viagem para Moçambique. Mudou de trabalho, matriculou-se na Faculdade, tirou o curso de Direito, progrediu na carreira técnica da Administração Pública e atingiu cargos de chefia intermédia, de alta relevância no contexto distrital, como o de Secretário do Governo Civil, participou na organização de duas monografias locais e publicou o seu primeiro livro de prosa: “Vozes no Charco”, retrato fiel da sua passagem pela guerra colonial, em Moçambique.

[Sexta década] Inicia-se o novo milénio com nova mudança na sua vida profissional, tendo sido convidado para Coordenador da Secção de Processo de Leiria do IGFSS, onde permaneceu durante nove anos, sofreu uma mágoa terrível com a perda da sua mãe e também de ambos os sogros, acompanhou a adolescência dos filhos, a sua entrada no ensino superior, o ingresso no mercado de trabalho da filha, chegou a Presidente do seu clube e iniciou um ciclo de viagens pelo estrangeiro, conhecido que já estava o território nacional.

[Sétima década] A última década que ele quis relatar, inicia-se com a sua aposentação dos cargos que desempenhava na Administração Pública, com a publicação do seu segundo livro de prosa, “O Último Patamar”, onde são enaltecidos os feitos dos antepassados do povo do Soutocico, em prol da cultura popular, assiste à morte do pai, que o deixou prostrado, foi operado à anca direita e, mais tarde, convidado para presidir aos destinos da Associação de Basquetebol de Leiria, encetando uma viagem ao Brasil para visitar o filho arquitecto, que em São Paulo iniciou a sua actividade profissional.

Pelo meio, a narrativa vai sendo temperada, ou ilustrada, ou matizada, ou enriquecida, ou tudo isso ao mesmo tempo, com poesia, muita poesia, reafirmando os seus dotes poéticos e a sensibilidade que, afinal, perpassa por todos os seus escritos.

Termino lendo justamente o parágrafo que encerra este magnífico trabalho que tive o privilégio de editar em livro e que agora fica à vossa disposição:

«Aos sessenta e cinco anos de idade resolvi escrever e publicar este livro de memórias com o mero intuito de que se torne, não uma revisitação ao baú das recordações, mas sim para que sirva de ampla reflexão às pessoas que o vierem a ler, de como são tão importantes as coisas simples da vida, aprender a vivê-la, recreá-la e preenchê-la com qualidade e intensidade, sem jamais abdicar da sensibilidade, do conhecimento, da observação, da leitura e da pesquisa e chegar ao horizonte dos dias, com aquela sensação extraordinária de ter sabido viver, vivendo intensamente cada momento como se fosse o último, não vegetando simplesmente, vogando ao sabor amargo de uma breve e anónima passagem, sem ter gozado a vida na sua plenitude.»

Parabéns, caro amigo Fernando Brites!

 




Apresentação do livro Peregrinação na Memória – Datas e notas à volta de Cister

de Rui Rasquilho

Por António Valério Maduro*

A Peregrinação na Memória constitui uma viagem no tempo longo em torno de Alcobaça, da história secular da abadia e dos seus monges laboriosos. Rui Rasquilho transporta-nos através de uma cronologia que visita desde os atos matriciais da presença cisterciense aos pormenores da vida material e da existência funcional do cenóbio, caminhada ridente que abrange a razão do espírito e da matéria, a beleza da criação que se estende desde os patamares artísticos e monumentais aos simples frutos da terra.

Lemos a sua ação de desenvolvimento do território e da economia agrária que leva as elites que visitam o Mosteiro, no palco temporal setecentista, a pronunciar-se sobre os méritos da gestão monástica e o seu contributo pleno para a felicidade dos povos ou, então, eruditos, como Leite de Vasconcelos, a afirmar que Alcobaça se destaca da Estremadura Cistagana pela confissão da identidade balizada na superior organização e dinâmica do domínio senhorial. Lemos ainda o papel inovador das Granjas no aprimoramento da tela cultural, da progressão dos índices de produção ou cópia de frutos. Num modelo ideológico e religioso pautado pela autarcia e auto-suficiência, exibem-se dinâmicas que fazem do mosteiro uma instituição que sabe jogar proveitosamente com os excedentes que animam uma útil mercancia concebendo algo que, no extremo, se poderia designar por capitalismo monástico.

Este livro não se reduz a uma cronologia clássica, que se compraz com uma lógica de sucessão acontecimental que consome o trabalho e os dias de tantos e tantos homens, o que por si já seria bastante, dado que a história não se compreende sem uma coluna vertebral que defina o horizonte, fugindo assim ao perigo acrónico dos estudos da longa duração.

Contudo, o trabalho do Rui Rasquilho rejeita claramente uma conceção de matriz positivista, em que o facto vive pelo facto. Aqui, nesta obra, o tempo curto que agita a trama da crónica entra em contexto, torna-se explicativo e esta inteligibilidade não se confina ao local, ao fluir natural da vida do cenóbio alcobacense e das gentes que contribuem direta ou indiretamente para o seu florescer, evidenciando ainda a sua articulação com os outros poderes, os conflitos que sustenta quanto à propriedade e rendas, a relação umbilical que tece e explora com a rede de abadias cistercienses espalhada pela Europa.

Passo a passo o tempo constrói-se numa arquitectura de sentido e o leitor menos familiarizado com a vida e obra dos monges cistercienses é acompanhado por pontos de luz que, na cronologia apresentada por Rui Rasquilho, são dados através de notas explicativas, mais ou menos breves, e textos enquadradores de problemáticas diversas, que servem naturalmente de marcos referenciais ao discurso.

A estrutura do livro começa pelo pré Cister numa seleção de datas chave na afirmação do projeto cristão. O Cister inicial toma o capítulo sequente numa odisseia de projeção espiritual e terrena marcada pela adesão de tantos e pela engenhosa multiplicação das abadias, o que revela que a reforma doutrinária, ou melhor, o retorno à Regra e à vida simples mais próxima de Deus e logo da salvação das almas tocou os homens do seu tempo. O crescimento releva a política que facilita a expansão cisterciense até uma fase de maturidade. Segue-se a vida do mosteiro propriamente dita dividida pelos regimes diferenciados dos abaciatos e pela ação monárquica até aos tempos do liberalismo e ao fecho da história de 1834.

A utilidade da obra do Rui deve ser salientada. Para além de poder ser lida de um só fôlego, trata-se de um texto de consulta não só para quem tem curiosidade nestas matérias ou se inicia na pesquisa histórica, como para os investigadores, nomeadamente aqueles que têm em Cister a centralidade da sua arte. Outro aspeto que convém realçar, tomando conta do modelo preconizado, é o seu ineditismo. Rui Rasquilho, como já realcei, não se compraz em realizar uma listagem cronológica, as datas aqui aparecem perenes de significado porque são integradas na relação conjuntural que o Rui revela e clarifica com um aconchego explicativo.

Veja-se a propósito da remodelação do altar-mor da Igreja (p.150):

“O Cardeal D. Henrique tirou o altar maior para fora para fazer um novo retábulo que fora encomendado em 1530. Na capela-mor colocou colunas dóricas, coríntias e toscanas sobre as quais colocou um retábulo de pincel em madeira (1570). A capela está adornada a toda a altura até ao alto com as vidrarias a iluminar. Colocou no altar uma enorme custódia”, talvez a do abade Ornelas feita em 1412 em Prata dourada – coberta por cortinas de seda que são mudadas segundo as festas e as suas cores. “O coro não tem retábulos como em Espanha que cubram as traseiras do altar.” (Descrição de Jerónimo Roman, 1586.)
Os acontecimentos mais relevantes ou por juízo do autor de maior merecimento levantados na cronologia, aqueles que sustentam implicações nos domínios do espiritual, do temporal, em suma, que interferem com a vida do cenóbio e suas orientações, com a administração e exploração do domínio, com a expansão do edificado recebem fundada explicação, casos até mais humildes suscitam algumas palavras porque a nota cronológica pode por si só não ser suficientemente explicita.

Veja-se a propósito a análise da fachada atual da Igreja (pp.205-208):

 

«Desde a sagração da igreja em 1222/23, as anteriores e sucessivas fachadas de Alcobaça foram a conclusão do espaço litúrgico gótico em cada período com o desenho usado pelos cistercienses em toda a Europa. No início, uma empena de ângulo suave acompanhava o pioneiro interior de três naves com altura idêntica.
Não existiam torres nem elementos decorativos que fossem além de uma imagem em pedra de Nossa Senhora da Conceição colocada no nicho da empena triangular, quatro grossos contrafortes que marcavam as naves, o portal e uma rosácea ladeada por dois janelões. A imagem caída durante o terramoto de 1531 ficou incólume no terreiro e a ela se vieram a atribuir alguns milagres.
Hoje, o frontispício é um elemento de rutura com a igreja gótica, erguida no século XIII de acordo com os exórdios e as instruções bernardinas. Acreditamos que a longa nave foi construída por fases e que, por isso, terá havido uma primeira fachada em cada momento. Sem qualquer prova, podemos supor que ao primeiro claustro incompleto corresponderia uma nave mais curta que será prolongada no final do século XIII.
A fachada atual é uma peça eclética de predomínio barroco construída entre 1702 e 1717. Em 1725, uma estátua da virgem é colocada entre as duas torres. Para tal, necessitou da presença de técnicos italianos, muito possivelmente os mesmos que esculpiram as outras seis estátuas, e que possuiriam os necessários meios técnicos para içar a Virgem. Nas costas do nicho está gravada a data de 1725.
A obra foi inteiramente paga pelo cenóbio de Alcobaça e custou mais de 40 contos.
A fachada da igreja deveria, por isso, ser apreciada no final da visita, depois de se haver entendido, por exemplo, que a cozinha nova fere com a sua imponência o equilíbrio gótico do mosteiro medieval e que foi construída no século XVIII sobre o espaço do scriptorium e do seu jardim, onde funcionou a primeira biblioteca manuscrita no século XIII.
Mas deverá também haver-se visitado a capela-relicário, a capela de Nossa Senhora do Desterro e o retábulo da morte de S. Bernardo para se apreender com mais facilidade as diferenças do barroco português quando se usa o estilo no interior e no exterior.
No interior, o uso da talha de madeira dourada, o azulejo historiado azul e branco e a estatuária em terracota policromada proporcionam um notável equilíbrio estético, que dificilmente se alcança na fachada barroca da igreja, dado o hibridismo de algumas das suas soluções decorativas de inspiração maneirista.
Quatro grandes contrafortes definem bem as três naves que se desenvolvem no interior da igreja, enquanto um varandim e um friso equilibram e separam os três corpos que constituem os 42 metros de altura da fachada. No exterior, patins rodeados de escadarias, ornados por pirâmides acogulhadas, dir-se-iam prolongar as naves da igreja, criando um vigoroso espaço cenográfico, aproveitado amiúde para expor as representações do poder. D. Miguel foi quem melhor o entendeu.
De um lado e do outro do portal, estátuas de S. Bernardo, à esquerda do lado do evangelho, S. Bento, à direita, do lado da epístola, talhadas em mármore italiano, perpetuam o espírito cisterciense, aconchegados em dois belos nichos com baldaquino, aproximando-se das disposições tridentinas.
Uma enorme rosácea domina o segundo andar da fachada, marcado pelo varandim, ornamentado com motivos renascentistas e maneiristas. No seu parapeito corre um encordoado de morfologia manuelina flagrantemente desenquadrado da cronologia estilística dominante.
Ladeiam a rosácea dois janelões que iluminam as naves laterais.
Estátuas das quatro virtudes cardeais completam a leitura do andar intermédio da fachada.
A Força e a Prudência do lado de S. Bernardo, a Justiça e a Temperança do lado de S. Bento.
O terceiro andar da fachada nasce a partir de um friso estreito, ornado com motivos vegetais, quebrado ao centro pelas armas de Portugal joanino enquadradas por dois anjos.
As duas imponentes torres sineiras receberam os primeiros quatro sinos, vindos de Braga em 1720, e novamente em 1778, estes vindos de Lisboa. Como referimos atrás, os sinos, com os seus cabeçotes, foram içados manualmente pelo lado exterior da fachada. As torres são cobertas por cúpulas encimadas por lanternins cegos e coroadas por flechas, de gosto barroco. Um monumental nicho alberga a Virgem, padroeira dos cistercienses, ladeado por dois imponentes “enrolados” de gosto maneirista, que se repetem em menor dimensão sob dois anjos junto à cruz. Um querubim, em baixo relevo, orna a base da peanha do nicho da Virgem.
Em 1750, são colocados os dois báculos em bronze das estátuas de S. Bernardo e S. Bento. Verdadeiramente, é esta a data da conclusão da fachada tal como foi projetada no início do século XVIII.
Posteriormente, após o terremoto de 1755, é construída a ala sul em espelho perfeito da ala norte para aí instalar o colégio Novo de Nossa Senhora da Conceição. Alguns dos atuais sinos são colocados nas torres em 1922 e mais dois na década de 80 do século XX, em novembro de 1989, conjuntamente com novos cabeçotes de madeira.»

Estes apanhados demonstram o conhecimento e a erudição do autor e mapeiam um corpo de assuntos enciclopédicos imprescindíveis para o adensar do enredo histórico. A cronologia do Rui é pois uma cronologia em contexto que permite ao leitor capturar os tempos do mosteiro, a evolução da sua espiritualidade, os rituais da comunidade, os manifestos artísticos em acordo com as transformações da sociedade, o crescimento do mosteiro e refuncionalização dos espaços, a política económica, social e cultural, o seu papel na promoção da atividade agrícola perene de experiência e de inovação, a vida das gentes de trabalho, dos anónimos da história, a identidade e marca de Cister como legado precioso para a modernidade e é por todo este somatório de razões que eu apelo à leitura do livro do meu amigo Rui.

* Investigador do CEDTUR – ISMAI e do CETRAD – UTAD. Email: Este endereço de email está protegido contra piratas. Necessita ativar o JavaScript para o visualizar.

 




Senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Leiria,

Dr. Fernando Lopes

Prezado Editor da Textiverso,

Eng.º Carlos Fernandes

Senhora Vereadora da Educação da Câmara Municipal de Leiria,

Dra. Anabela Graça

Prezados Amigos,

 

Muito agradeço, em primeiro lugar, o convite e a distinção para a apresentação desta obra - «Um bispo segundo Deus ou Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar, coligidas e coordenadas, entre os anos de 1860 e 1863 e dadas à estampa, em 1885, por um filho da extincta diocese», obra hoje reeditada em fac-simile, aumentada com um conjunto de informação anexa (de que sublinho os Comentários do Padre Inácio José de Matos, o editor de O Couseiro, sobre Vitorino da Silva Araújo, o autor do livro que apresentamos), que ajuda a contextualizar a obra e o seu autor, uma coedição da Textiverso e da Santa Casa da Misericórdia de Leiria.

Trata-se, em primeiro lugar, das Memórias de D. Manuel de Aguiar, não escritas pelo seu próprio punho, mas por um dos seus biógrafos, Vitorino da Silva Araújo (que, entre outros cargos e funções, foi professor de latim e, segundo julgamos, secretário do Liceu de Leiria, e que emprestou o seu nome a uma das ruas da cidade), que, em idêntica humildade à do biografado, escondeu o seu nome sob o pseudónimo de “um filho da extincta Diocese”, nome desvendado pelo editor de O Couseiro, na certeza de que, escondendo o seu nome, mais afirmaria o de D. Manuel de Aguiar, 17.º bispo de Leiria.

Obra publicada em 1885, quando, como alude o pseudónimo “filho da extincta Diocese”, a diocese se encontrava extinta havia três anos, datando a sua extinção de 1882, que só seria restaurada na sequência ads aparições marianas de Fátima, entre Maio e Outubro de 1917.

Mas as Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar fundem-se e confundem-se com as memórias para a vida da diocese e, particularmente, da cidade de Leiria (estatuto que remonta a 1545).

E na história da cidade de Leiria, destacamos os acontecimentos em torno da Guerra Peninsular, popular e tradicionalmente designada por Invasões Francesas, e, particularmente, a Invasão de 1810-1811, considerada tradicionalmente a 3.ª Invasão Francesa, aquela que mais danos e sofrimentos traria a Leiria, Invasão sob o comando de André Masséna, que foi travado e ‘derrotado’ nas célebres Linhas de Torres Vedras, sistema defensivo implantado por Arthur Wellesley, então ainda Visconde de Wellington, que visava defender a capital de uma nova invasão, assim como apoiar uma retirada do exército aliado (‘exércitos combinados’ como então se dizia), em caso de necessidade de retirada. Danos, nomeadamente os da Sé, logo na 1.ª Invasão, que transformou a catedral em cavalariça, profanando o templo, efetuando o saque a Leiria, bem como as pratas do santuário.

Pois Leiria, sabemo-lo bem hoje, sobretudo depois do bicentenário da Guerra Peninsular, momento também ele evocativo da Memória, que permitiu melhor conhecer os acontecimentos de há 200 anos, testemunhando-o as diversas monografias dedicadas à temática… de que Ricardo Charters de Azevedo, tem sido um ativo investigador.

Acontecimentos, de que são exemplo o massacre da Portela pela divisão do General Margaron, em 1808, e o Incêndio de 1811, na altura em que as tropas de Napoleão retiravam das Linhas de Torres Vedras, quando sabemos que os atos de violência perpetrados (roçando a vingança) foram sempre superiores na retirada.

Mas voltemos ainda ao título, de onde ainda não saímos, para explicar, afinal, todo o conteúdo do livro – de memórias, de cariz biográfico, portanto, mas igualmente monográfico.

Se é verdade que um título deve apontar para o conteúdo da obra, não são muitos os títulos como este, «Um bispo segundo Deus», que, em jeito de epíteto, sintetizam cabalmente neste expressão tudo quanto foi o bispo leiriense D. Manuel de Aguiar, por mais intensa que tenha sido, como foi, a sua vida. Título que sintetiza o homem, no seu todo, a criança nascida em Évora, em 8 de Dezembro de 1851, o adolescente entregue aos estudos e visitante assíduo do convento do Carmo e do mosteiro dos cartuxos de Aracelli, o jovem estudante da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, o pároco de Santa Cruz do Douro e de São Martinho de Soalhães, o bispo da diocese de Leiria, entre 1790 e 19 de Março de 1815, data em que adormeceria para se encontrar com Deus – pois assim crêem os cristãos, o que explica o cumprimento de Adeus/a Deus, até ao encontro com Deus, no Além, assim como o termo cemitério, antepositivo do grego koimétêrion que quer dizer ‘o lugar onde as pessoas dormem’, um lugar, portanto, de passagem na espera de um outro dia que virá .

D. Manuel fora o 3.º filho sobrevivo de oito, frutos do 2.º casamento de Pedro de Aguiar com Maria Nunes Dourada. Os outros cinco morreram ‘meninos’, revelando-se-lhes uma vida curta, testemunho das elevadas taxas de mortalidade infantil no Antigo regime.

Nascera no dia da Imaculada Conceição, de quem era devoto, sendo baptizado logo depois, recebendo como madrinha Nossa Senhora dos Remédios, crescendo amparado pelo ‘escudo da fé’, nas palavras deste seu biógrafo.

Desde menino era um cristão praticante, desculpem a expressão moderna desprovida de sentido nesse tempo, pois ser-se então cristão era agir, atuar segundo uma praxis. E o jovem Manuel fizera da sua infância e juventude um ‘laboratório de virtudes’, crescimento exemplar no trato e na educação.

Proibidas as profissões religiosas e as ordenações eclesiásticas, o jovem aspirante a eremita optou pelos estudos em Coimbra, cursando Teologia, na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, desde 12 de Novembro de 1792, teria então 20 anos. Seria o próprio reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, ainda Manuel não havia completado os seus estudos superiores, a optar pela ‘milícia eclesiástica secular’ em desfavor da ‘obscuridade de um convento’, porque se num convento poderia lucrar a salvação própria, ‘no século a própria e a alheia’. Desvio do itinerário, mas não do destino que se manteve fiel no serviço aos outros, como forma de servir a Deus.

Em Coimbra, a par dos estudos, dedicava todo o tempo que podia ao exercício da caridade, ‘ora consolando e animando’ os infelizes no hospital, ora servindo os doentes e ajudando os enfermeiros nas limpezas das enfermarias, ora na aplicação de medicamentos.

Colocando-se a hipótese de a Academia o acolher em Coimbra, preferiu voltar à terra natal, já sacerdote. E daqui sairia rapidamente para a Abadia de Santa Cruz do Douro, donde iniciara o ofício de pároco, no bispado do Porto, de que era padroeiro D. Tomás Xavier de Lima, Visconde de Vila Nova da Cerveira, 1.º Marquês de Ponte de Lima e ministro de D. Maria I. Manteve-se na paróquia entre 1779 e 1785, onde a ‘ignorância da doutrina e a infrequência dos sacramentos produzira a devassidão dos costumes’, aí fundando três escolas: uma de primeiras letras, outra de latim, para meninos, e a terceira para a educação de meninas. E de Santa Cruz do Douro sairia para São Martinho de Soalhães (em Marco de Canaveses), abraçando a nova paróquia, como abraçara a anterior. Aqui, as mesmas práticas e os mesmos gestos de caridade, socorrendo os enfermos, vestindo e sustentando os pobres.

Em 1790, porém, por vacatura da Sé de Leiria, por morte de D. Lourenço de Lencastre, a 4 de março, D. Maria I apresentara D. Manuel, em 20 de março deste ano, certamente por indicação do Visconde de Vila Nova de Cerveira, padroeiro das paróquias de Santa Cruz do Douro e São Martinho de Soalhães, ministro da rainha que conhecia bem as qualidades do seu pároco. Ao apresentar-se à rainha, relata-nos o biógrafo, de que D. Maria lhe terá dito ‘- … não vejo que tenhais outro defeito, que o serdes ainda bastante moço’, ao que o ‘servo de Deus’ terá respondido: ‘- Esse, Senhora, defeito é que se vai curando todos os dias’, cura que todos experimentamos quotidianamente!

Já elevado à dignidade de Bispo, entrara a 31 de agosto na cidade, que D. Manuel abraçara, assim como Leiria o adotara, aqui permanecendo até 1815, até que adormecera na noite mais longa, na certeza de um reencontro a Deus.

A cidade testemunharia e alimentaria muitas memórias da sua ação: a memória da fundação do hospital novo da Misericórdia, construído entre 1798 e 1800, e inaugurado a 4 de agosto deste ano, no sítio da ermida de Nossa Senhora dos Anjos, na margem direita do Lis.

Aquando da mudança dos doentes, D. Manuel, com a sua própria carruagem, ajudaria a transportar os doentes; Memória ainda mantida no nome da instituição hospitalar!

A memória da sua ação enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia, aumentando os rendimentos da instituição e dando-lhe novo regulamento em 1 de Fevereiro de 1800.

A memória da instalação de um colégio para meninas no recolhimento de Santo Estêvão, com estatutos de 17 de Janeiro de 1803.

A memória do restauro do seminário diocesano, instalado provisoriamente no Paço Episcopal, no qual instituiu as cadeiras de história eclesiástica, teologia dogmática, teologia moral, instituições canónicas, juntando a cadeira de latim, existente na cidade, e as de retórica e filosofia racional, professadas no convento de Santo António os Capuchos… no mesmo período em que se iniciavam obras de reconstrução do seminário episcopal.

A memória da construção de um cemitério para evitar os enterramentos nas igrejas e, especialmente, na catedral, como era tradição, antecipando as leis de saúde pública que chegariam quase meio século depois, proibindo a realização de enterramentos dentro das igrejas, e que justificariam em parte a revolta popular da Maria da Fonte contra o governo cartista de Costa Cabral, em 1846. E, uma vez mais, D. Manuel de Aguiar fora o prelado exemplar, criando no cemitério a cripta dos prelados, que acolheria o seu corpo no sono da morte.

Obras que renovaram a cidade. Todavia, o sonho desmedido de Napoleão de domínio da Europa e de outras partes do mundo, empurraram os soldados franceses para o território nacional. Muitas das obras de D. Manuel de Aguiar seriam destruídas pela primeira invasão, em 1807-08, comandada por Junot, e, sobretudo, pela terceira invasão, sob o comando de Massena, entre 1810 e 1811. Leiria fora um dos palcos maiores de terror, tortura e sofrimento…

A atitude pacifista do bispo leiriense foi por vezes incompreendida. Mas D. Manuel tivera uma postura idêntica à de outros prelados, no cumprimento, aliás, das determinações do Príncipe Regente D. João, em decreto de 26 de Novembro de 1807, antes da saída (estratégica) para o Brasil (e não fuga como considerava a historiografia tradicional, ignorando um acordo secreto assinado em inícios de Outubro de 1807, entre Portugal e a sua velha aliança, a Inglaterra, que remontava a 1386). Seria, como foi, certamente esta a maneira de tornar menos pesada a presença do invasor, como podemos testemunhar nas palavras do próprio príncipe regente, pois a resistência «seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade’, devendo, assim, evitar-se maiores represálias e atos de vingança perpetrados pelas tropas de Napoleão, cumprindo as ordens do soberano, cuja legitimidade nunca esteve em causa.

Todavia, Leiria não escapou à violência das tropas napoleónicas, que entraram na cidade a 5 de Julho para a reconquistar, quando havia sido liberta do jugo do invasor a 30 de Junho, pelo Corpo Militar Académico de Coimbra, reunido na cidade do Mondego, no contexto dos movimentos de oposição ao invasor, de revoltas populares e da constituição de juntas governativas e militares. Na Portela, uma lápide mantém a memória dos acontecimentos… memória que importa lembrar, porque, como dizia o velho Cícero, ‘a memória diminui… se não for exercitada’.

A cidade seria de novo libertada pelo Corpo Académico, que se aquartelou no Paço episcopal. Acontecimentos que se multiplicariam em número e gravidade na terceira invasão, onde a violência gratuita tomou lugar: violência (tortura, roubos, maus tratos, fomes, violações, mortes, etc…), tendo a população de Leiria e região reduzido drasticamente, como reduziu toda a população desde as Beiras até à 1.ª Linha, obrigada a abandonar as suas casas e a refugiar-se no interior da 1.ª Linha (fechada a 9 de Outubro de 1810) e a destruir as suas colheitas para que o inimigo não pudesse aqui encontrar alimento, quando o exército francês tinha alterado a forma de abastecimento, assentando então no contributo das regiões para a guerra. Ora é precisamente na destruição dos alimentos e na desertificação do território que assenta a tão conhecida política de Terra Queimada, decretada por Arthur Wellesley, então Visconde de Wellington, estratégia que integrava a defesa do território nacional a juntar ao sistema defensivo que ficaria conhecido por Linhas de Torres Vedras. Permaneceram os velhos, inválidos e doentes, incapazes de se deslocarem, onde os bois e os carros não existiam, uma vez pilhados por ambos os exércitos… Velhos, inválidos e doentes, muitos deles encontrados sem vida quando as populações regressaram, o que fizeram ao longo de largos meses, a partir de finais de Março de 1811, altura em que D. Manuel de Aguiar acompanha o seu rebanho, antecipando-se a muitas das sua velhas, pois regressou a 30 de Março de 1811, para reconstruir uma diocese em ruínas, carente de pessoas, tanto quanto estas careciam de alimentos, quando uma epidemia ceifava vidas, mais do que a guerra (tifo), sobretudo no Inverno e primavera de 1811.

Uma palavra mais para o biógrafo que, segue outros biógrafos de D. Manuel de Aguiar, discutindo, porém, os argumentos, concluindo acerca da veracidade ou inverosimilhança das informações que se lhe apresentam, interrogando as fontes permanentemente, num exercício de crítica das fontes, que D. Manuel não necessitava de um panegirista acrítico para que a sua figura saísse enaltecida.

 A D. Manuel de Aguiar, já em São Martinho de Soalhães, os fregueses da paróquia o apelidavam de ‘o abade santo’ ‘nesta parte da vinha do senhor’. E em todas as partes da vinha do Senhor, de Évora ao bispado do Porto, em Santa Cruz do Douro e em São Martinho de Soalhães, e daqui para a Diocese de Leiria, D. Manuel de Aguiar soube ser ‘um bispo segundo Deus’, pois se é certo que esses tempos lhe foram adversos, bem como ao seu rebanho, negando-lhe os meios de que necessitava para reerguer a diocese, não lhe faltou, porém, o engenho e a arte.

Dois dias depois de completarem 200 anos da sua morte, as Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar, agora editadas, testemunham a Memória Viva do prelado leiriense na atualidade.Estão pois de parabéns os editores a Textiverso e a Santa Casa da Misericórdia de Leiria, nas pessoas, respetivamente, do Eng.º Carlos Fernandes, e do Dr. Fernando Lopes, assim como do Eng.º Ricardo Charters d’Azevedo, pelo precioso mecenato, garante da edição, por nos trazerem de novo à estampa esta obra de leitura obrigatória por quem se interessa pela história de Leiria e da sua diocese, pela história da Igreja em Portugal, pela Guerra Peninsular e, particularmente, pela figura de D. Manuel de Aguiar, verdadeiramente ‘um bispo segundo Deus’, expressão que sintetiza de modo feliz a extensa biografia deste bispo de leiriense.

 

Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, 21 de março de 2015

Carlos Guardado da Silva




Desafio do cartaz de apresentação do livro – 2 questões:

O que aprendemos/ sabemos da profissão dos nossos pais?
O que aprendemos/ sabemos das atividades dos nossos filhos?

– Apelo à ligação interativa entre duas gerações: pais e filhos;
– Incentivo ao diálogo entre pais e filhos sobre o seu quotidiano: o que mais gostaram de fazer, o que aprenderam, etc.;

Importância da partilha tendo em conta a realidade de hoje em dia: cada vez os pais passam mais tempo fora de casa em trabalho e os filhos a mesma coisa, na escola e em atividades diversas. Dá-se um afastamento familiar, daí que seja importante ambos perceberem o que fazem/porque o fazem, para verem nisso uma oportunidade de aprendizagem informal.

É igualmente importante perceberem que a distância, apesar de ser difícil, é necessária para ambos – pais e filhos – se realizarem (os pais para ganharem dinheiro, para se sentirem úteis, para desempenhar funções que lhes dão prazer e os filhos, para adquirirem novas competências, para desenvolverem novas capacidades – cognitivas, motoras, criativas e para se divertirem) e que depois… há o regresso, o contar das novidades, o mexer nas caixas, o cheiro dos sapatos novos, o sentir as novas texturas… o matar das saudades = educação para os afetos – fundamental nos primeiros tempos de infância com repercussões em toda a vida.

Neste sentido, no 1º Ciclo do Ensino Básico, este domínio pode ser trabalhado também com o recurso a este livro mas além disso, este apresenta um potencial imenso nas diferentes áreas em termos de atividades a desenvolver:
Língua Portuguesa: escrita criativa imaginando que o aluno é um daqueles sapatos que vai ser vendido a alguém ou a descrever uma peripécia que tenha acontecido ao vendedor durante uma das suas viagens; pesquisar e trabalhar provérbios com o tema das profissões; perceber o uso dos adjetivos como forma de enriquecimento de um texto; etc.
Matemática: trabalhar distâncias, formas, tempo, etc.
Estudo do Meio: abordar as profissões, as atividades económicas, os materiais, as diferenças entre meios rurais e meios urbanos, etc.
Expressão Plástica: trabalhar as texturas, as cores, composições, construções, etc.
Expressão Dramática: elaborar fantoches das personagens; inventar diálogos entre os sapatos durante uma viagem; jogos dramáticos partindo de palavras do texto tendo como base um parágrafo específico “Teatralizávamos cenários e histórias para as personagens que os calçariam”.
Inglês (e outras línguas): exploração do texto bilingue; recurso ao jogo que acompanha o livro permitindo explorar outras línguas e despertar a curiosidade das crianças para as mesmas;
Além de tudo isso, a Nídia ainda nos oferece algumas dicas práticas sobre a questão da Educação para o Ambiente Sustentável: politica dos 4r’; sapatões; bancos de sapatos.

Outra grande mais-valia do livro: preço acessível a todos (facilidade de os pais adquirirem e dos professores puderem trabalhá-lo nas aulas).

Como professora de Educação Moral e Religiosa Católica considero que o livro possui uma ótima mensagem para abordar a questão da família – conteúdo programático do 5º ano de escolaridade, sobretudo ao nível dos valores familiares.

Por último, mas não menos importante, enquanto futura mãe, quero dizer-vos que já lemos a história do “Vendedor de Sapatos” ao Mateus que reagiu muito bem com uns pontapés bem evidenciados. Vamos continuar a lê-la (experimentando a versão em inglês), pois queremos que ele comece desde cedo a perceber a necessidade da distância mas também a importância do regresso, da união familiar, do estarmos juntos… que ambas fazem parte da nossa vivência e que quanto melhor percebermos isso melhor saberemos lidar com os nossos sentimentos e a Nídia, com a sua simplicidade, ternura e emoção, neste livro e em todos os outros projetos ensina-nos isso tão bem.

Livraria Arquivo (Leiria), 15 de novembro de 2014
Ana Rute




Biblioteca Municipal de Leiria, 22 de Maio de 2014

BOA TARDE
Para a assistência que hoje nos acompanha, para o Sr. Presidente da Câmara, para a sra vereadora Anabela Graçae para os meus companheiros de Mesa Prof Doutor Saul Gomes, Eng Carlos Fernandes e para os membros do Conselho Consultivo e para os muitos amigos que vejo na sala. Um muito obrigado também à minha mulher que além de me aturar nas minhas pesquizas, ainda por cima me vem escutar.
Estamos quase no período de reflexão para sabermos em quem vamos votar, no próximo domingo. Ficar em casa não nos fica bem. Lembro-vos que foi a União Europeia que nos emprestou dinheiro e a um juro mais baixo do que aquele que o mercado nos pedia na altura… Cabe-nos agora não fazer de conta que nada se passou e irmos votar.
Talvez uma boa forma de nos preparar para o ato de votar, refletindo em quem o dar, ou simplesmente votar branco/nulo, possa ser olhar para um livro tranquilo, que não tem qualquer envolvimento direto no atualconflito político do dia-a-dia.
Refiro-me à obra editada pelo Eng Carlos Fernandes, da Textiverso, Cadernos de Estudos Leirienses, cuja coordenação científica cabe ao Prof Doutor Saul António Gomes, cujo primeiro número se lança hoje.
Pediram-me para que eu dissesse algumas palavras, a propósito. Aqui vão:
Trata-se de um livro invulgar:
• Invulgar, pela coragem em editar um livro nesta altura em Portugal, pois dada a crise pouca gente compra,
• Invulgar, pois impresso, vai numa linha diferente daquela que a modernidade aponta, i e de fazer e books;
• Invulgar, pois é colocado á venda por um preço MUITO convidativo;
• Invulgar, pois consegue colocar lado a lado autores que tem publicado histórias sobre esta nossa região;
• Invulgar, promete que não se fica por aqui e mais números serão publicados, nomeadamente este ano;
• Invulgar, pois permitirá que alunos do ensino superior de qualquer universidade ou politécnico, possam publicar os seus estudos, ou resumos de teses;
• Invulgar, pois usando uma fórmula, que se pode classificar de fácil, irá demonstrando importânciada nossa região na história nacional e as seus impactos no mundo.
Porque é que eu apoio esta edição?
Resolvi dar um apoio financeiro a esta edição com a ideia de promoção de estudos sobre a história e o património da nossa região, para que, ao conhecermos a nossa história, melhor possamos defender a nossa região. Nesta linha se insere o apoio que tenho dado á ADLEI para o Premio Villa Portela, concedido cada dois anos e que conta igualmente com o suporte da Câmara Municipal de Leiria, do Instituto Politécnico de Leiria e da editora Gradiva .
Segundo a Textiverso, os Cadernos têm como objetivo proporcionar aos numerosos investigadores um veículo essencial para a divulgação dos seus trabalhos que tenham naturalmente como pano de fundo a região alargada de Leiria e dos seus territórios limítrofes com afinidades, como é o caso do concelho de Ourém.
Não se pretende que os Cadernos sejam simplesmente um veículo científico “strito sensu”, mas também não se pretende que se resumam a meros artigos de caracter jornalístico.
A sua função será de fixar elementos essenciais para a compreensão deste território que acabo de definir, com textos síntese, mas suficientemente desenvolvidos e fundamentados para colherem junto dos potenciais leitores a confiança e o esclarecimento que a história desta região merece.
Muitas vezes o público não teria oportunidade de aceder ao conteúdo de teses, ou comunicações em colóquios, pois não tem facilmente acesso aquelas e às atas daqueles, ou porque são de difícil leitura ou porque de restrita circulação.
E que é que esta primeira edição comporta?
E o que é que eu gostaria de saber sobre esta nossa região? Muito… é a minha resposta. Será que um residente desta região saberá quem são os cidadãos que tem nomes nas ruas das nossas povoações? Saberá o que fizeram mais do que outros para serem homenageados? Saberá por exemplo porque é que o estádio se chama de Magalhães Lima? Que terá feito ele, como presidente da Câmara que outros que também igualmente foram? E José Jardim quem era? E o que fez para ter um nome de uma rua, ou será avenida? Dona Alda Sales Machado, que acaba de ver publicada a 2ª edição do seu livro “Toponímia de Leiria” teve muita dificuldade em encontrar registos nos processos da comissão de toponímia que lhe permitissem responder a estas e outras questões.
Como eu gostaria de saber o resumo dos resultados de algumas investigações antropológicas, como por exemplo aquela que se efetuou na praça Rodrigues Lobo quando se tiveram de abril algumas valas. Existe um relatório preliminar da empresa que fez as investigações, mas foi paga e nunca chegou o relatório final. Que bom seria, se em meia dúzias de páginas se relatasse o que la se encontrou e as conclusões tiradas?
Já se poderia, por exemplo, contar a história do estádio em Leiria, cujo primeiro projeto foi oferecido, em 2 de Julho de 1948, pelo meu Pai, Eng Roberto Manuel Charters d’Azevedo, para o qual foi por ele obtido financiamento do ministério das obras Públicas. No entanto em 1955 fazia-se, na Câmara um outro projeto, pois nesta nossa Leiria ninguém esta satisfeito com qualquer coisa que outro tenha apresentado.
E isto só para falar de Leiria. E sobre as outras localidades deste longo distrito muitas coisas gostaríamos de “ouvir”, como como evoluiu a lagoa da Pedreneira durante os primeiros seculos da nossa independência. Já temos um cheirinho apresentado pelo Carlos Fidalgo
Por tudo isto estamos aqui para felicitar o editor, o Eng Carlos Fernandes, da Textiverso e dizer-lhe não esperaríamos menos dele e aguardamos que o trabalho que há longos anos tem desenvolvido para dar a conhecer a história de Leiria e da sua terra, as Cortes, venha agora a ser vertido e continuado nos Cadernos Leirienses
Por último devemos agradecer ao Prof Doutor Saul António Gomes, que nos tem presenteado com magníficos estudos sobre o nosso distrito, relembrando-nos quando ele é rico em acontecimentos históricos. Quem aqui vive esquece-se que neste distrito temos monumentos construídos pelos nossos passados muito relevantes e importantes, como o de Alcobaça e o da Batalha, não falando dos nossos castelos de Leiria, Ourém, Porto de Mós que tão bem figuram na capa destes Cadernos Leirienses de História. O Prof Doutor Saul António Gomes, vem-nos sempre relembrando a história destes locais e a os nossos antepassados. Bem-haja, Doutor Saul Gomes.

Ricardo Charters d’Azevedo




A infância é um lugar tão perto
[A propósito do lançamento do meu livro Guarda-me contigo entre as papoilas]
Cortes, em 17 de Maio de 2014

Uma palavra prévia para dizer que o texto que vou agora ler não é escrito de acordo com o acordo ortográfico.
Em primeiro lugar gostaria de pedir desculpa a todas as entidades oficiais, e a possíveis pessoas importantes por não terem sido convidadas a estar presentes.
Gostaria de fazer alguns agradecimentos. Desde logo, e indistintamente, a todas as pessoas presentes que se deram ao trabalho de vir até aqui para não me deixarem só. Agradecimentos especiais ao Carlos Fernandes, enquanto editor e enquanto amigo, ele que tem sido uma pessoa essencial para a vida cultural de Leiria e arredores. Um agradecimento grande ao Fulvio (um rapaz cheio de talento que é namorado da minha filha mais nova), que fez os desenhos do livro, incluindo o da capa e contracapa. Um agradecimento à Maria que preparou um PP alusivo ao livro, que foi muito trabalhoso.

Guarda-me contigo entre as papoilas começou a ser escrito em 2001, ainda o meu pai era vivo e é todo ele alusivo às “coisas da vida”, que é a vida de todos nós: a família, os pais, os tios, as perdas, a infância e as brincadeiras, o amor e a amizade, os amigos, as coisas importantes. É, talvez, sobre o início e o final das coisas que nunca acabam. Para mim, é um livro de carinho. Permitam que vos conte uma história.

Tive uma infância de liberdade. De correrias pelos campos, de esconderijos nos arbustos ou de finais de tarde junto à noite. Trepei às árvores mais altas pelo menos tantas vezes quantas as que caí de muros e paredes desproporcionais para o meu tamanho. Persegui sardaniscas e pássaros mais ou menos incautos. Também fui perseguido em quintas e outras propriedades por me apropriar de frutos de árvores num tempo em que para mim o mundo era um sítio sem muros ou fronteiras. Para grande preocupação da minha mãe, aprendi a não ter na chuva um obstáculo às longas permanências fora de casa. Tempo e distância fundiam-se em algo difuso e mágico. Por isso, existir era algo simples e permanente, em que a imaginação e a realidade eram indistintas. Em lugares secretos fui um pistoleiro corajoso e destro no manejo do colt. Um tronco de uma árvore tombada era o meu cavalo e os índios temiam a minha fama. Também aprendi a fazer os movimentos de mãos de Mandrake, que nunca resultaram, para minha perplexidade e apesar da insistência.
Tive uma infância de liberdade quase selvagem. Aprendi a beber água dos pequenos charcos sem agitar o seu fundo e talvez por isso e mais algumas tive as doenças todas que era para ter e depois já pude beber água de todos os charcos do mundo, poços e até água choca. Ainda hoje por todo o meu corpo trago as cicatrizes de feridas que nunca me pareceram mais importantes do que as diversões e aventuras que a elas me conduziram. Foi também nesse tempo que ganhei outras cicatrizes enquanto olhava as estrelas na perseguição de grilos. E uma cicatriz conduziu-me a outra cicatriz que eram feridas também. Uma das primeiras feridas terá sido a primeira morte da minha vida, que foi a do meu avô materno. Era ele que me levava da aldeia até ao rio em cima da mula, colhendo as amoras da minha vida.
Esta infância de imaginação quase sem limites devo à minha família, e quando digo família refiro-me aos meus pais, tios e avós. A minha família é oriunda de uma aldeia muito para o interior deste país e, nunca mais aí tendo regressado, nunca deixou de lá estar. Não sei se eles deram por isso, mas com eles aprendi que tudo o que é importante é o que trazemos no coração e que somos estrangeiros de tudo o resto.
Como vocês, também tive pais. O meu pai jamais aceitou ter saído da sua aldeia e por isso, depois de reformado, era aí que gostava de passar o seu tempo. Eu gostava de passear com ele à noite, na nossa pátria, nesses dias quentes de verão. A minha mãe, durante muitos anos, todas as noites sonhou que estava na sua aldeia (que era a mesma do meu pai e dos meus tios). Creio que apenas deixou de ter esses sonhos já na casa dos cinquenta anos. A minha mãe acreditava no Deus da Igreja católica, nos seus padres e santos. O meu pai tinha dúvidas e só quando estava atrapalhado tendia a chamar por Ele. Detestava padres. Seja como for, e pelo sim, pelo não, era eu muito criança quando a minha mãe trouxe um Cristo pregado numa cruz, que disse ser Deus, a morar no quarto onde eu e o meu irmão dormíamos. Explicou que os homens eram muito maus e o tinham crucificado e que ainda que ele fosse todo-poderoso, pois era Deus, o tinha permitido para redimir os homens de todos os seus pecados. O seu amor não era possível de ser expresso em palavras. E ali ficou, assim pendurado, e morava no meu quarto.

Sei que nestas alturas o autor do livro é o centro da atenção. Mas este é um livro de poesia e a poesia é uma coisa especial que quando acontece na vida de alguém a marca profundamente e para sempre. Não sabendo o que é a poesia, devo acrescentar a esta confissão, de ignorância, uma outra: também não sei o que é vida. Apesar disso, desde há anos que me vejo dentro dela. Foram várias as vezes que tentei compreendê-la, mas de todas elas resultou mais ignorância. Creio que esta ignorância é geral a tudo o que é maior que eu. Para quem tenha um contacto real com a poesia, compreenderá que eu diga que esta é algo de tão pessoal e íntimo que partilhá-la só pode ser maior que o mundo. E as coisas que são maiores do que o mundo partilham-se com quem se gosta: os amigos. Deixem-me ser peremptório: vocês são o motivo por que eu estou aqui.
Para quem não saiba ou se lembre, recordo que desde 2008 que não apresento livros em Leiria (o último foi apresentado no ano de 2011, na Sociedade da Língua Portuguesa, em Lisboa), e mesmo o de 2008 foi apresentado em circunstâncias muito especiais na igreja de São Francisco. Creio que o último livro a ser apresentado, em circunstância semelhantes às de hoje, terá sido um livro, de poesia, chamado O sinal de Jonas (1999), apresentado igualmente nas Cortes, no restaurante MOINHO DO ROUCO. De facto, entre 1995 e 1999, o que corresponde a 7 ou 8 livros, o programa foi sempre constituído por duas partes: a apresentação do livro, propriamente dita, e depois um jantar de convívio onde se passavam a mais variadas coisas. É o que hoje tentaremos fazer. Na verdade, o que mudou para voltar a um figurino passado? Sobre um dos motivos prefiro falar logo, no jantar. Motivo igualmente importante é o que respeita à natureza do livro, mas não só. Depois de tantos livros publicados, cheguei a acreditar que toda a poesia é oração e que assim sendo dispensaria o lado público. Mas hoje estou aqui para expressar-vos a minha gratidão. Que não tenham dúvidas: é para mim um privilégio poder fazer parte das vossas vidas.
Espero que não me considerem piegas. Mas é que realmente creio que os amigos constituem o que de mais essencial podemos ter na vida. Um filósofo chamado Lévinas escreveu que nos Outros se revela a presença de Deus. Eu, que nada sei sobre Deus, sei que o meu sentimento por vós transcende o que vejo ou ouço. Nesse caso, e caso Deus exista, então Ele está entre nós, no meio de nós. Em cada um de nós. Caso não exista, existimos nós, agora e aqui, e isso deve tornar a nossa vida com sentido.
Os amigos acompanham-nos durante a vida e também nos últimos momentos desta. Durante a criação deste livro, para além dos meus pais e tios, dois amigos muito queridos faleceram: o António Bernardo, em 2005, e o José Pestana Cruz em finais de 2013. Jamais os esquecerei. O Zé Cruz poucos dos presentes, para além da Maria e do Paulo José Costa, o conheceram pois vivia em Faro e era das lides profissionais. Foi uma das melhores pessoas que conheci. O Bernardo era conhecido de muitos dos presentes e era, de resto, uma presença regular nos Serões Literários das Cortes. Por mais tempo que passe, serei sempre seu amigo. Acreditem que não há dia em que não pense nele. São pessoas que me farão sempre falta e que também estão presentes neste livro. Não estou certo sobre se em vida lhes terei expressado o quanto gostava deles e respeitava. Demasiadas vezes, talvez, tenho deixado por dizer aos meus amigos, esses amigos, o quanto lhes quero e devo. E não desejo que continue a ser tarde demais.

Muitos de vós têm constituído exemplos com que tenho tentado aprender a existir o mais dignamente possível. Alguns de vós conheço há tanto tempo que a minha vida se confunde com a vossa. Em relação a alguns tenho dívidas que jamais poderei pagar. E quero ainda mencionar os meus amigos dos Serões Literários das Cortes com os quais me encontro há cerca de 15 anos uma vez por mês. Temos uma aventura que nos liga no coração. Sei que por vezes sou insuportável com as minhas piadas ou até estranhas irreverências, e eles suportam-me com carinho e condescendência. Já nos conhecemos muito bem, creio. Também quero dizer que há aqui amigos de consultas. Pessoas que são muito especiais para mim. Há também aquelas pessoas que talvez eu não conheça. Sou-lhes muito reconhecido.
Permitam-me, finalmente, destacar alguns amigos mais recentes, que são os meus queridos amigos do taekwondo, que conheço há cerca de dois anos. Nem sei bem como explicar-vos o respeito e carinho profundos que tenho por estas pessoas com que estou quatro vezes por semana, durante cerca de duas horas por dia. Há algo especial que nos une quando nos esforçamos muito tanto física como mentalmente. De especial, também, quando o respeito, a humildade e a amizade estão presentes em todos os momentos e estes são exemplos que vêm de cima, dos mais graduados, a começar no mestre, que considero uma pessoa fora do comum.
Quando estamos com os amigos, talvez já tenham dado conta, regressamos à infância, à meninice ou à puberdade. Divertimo-nos e comungamos da vida. É o que nos une e nos torna melhores. Quando os amigos se divertem, é como se fossem crianças ou adolescentes. Brincam e dizem disparates. Fazem tropelias, pregam partidas.
Afinal, talvez estejamos aqui por culpa de todos e de cada um. Múltiplos caminhos e muitas portas nos conduziram aqui, a este momento único, em que não há coincidências nem acasos. Por muito que um dia tenhamos estado longe uns dos outros, ignorando até de cada um a sua existência, hoje estamos aqui e estamos juntos. Pensem bem: nenhum obstáculo foi capaz de impedir-nos de estarmos aqui. E este encontro não começou hoje ou ontem, mas num tempo que não sabemos nomear.
Por isso, termino deixando-vos uma pergunta: Já pensaram na sorte que temos de estarmos juntos aqui, numa mesma vida, num mesmo tempo e lugar?
Obrigado.

Carlos Lopes Pires




05ABR14

- Ex.mo Sr. Chefe do Estado Maior do Exército General Hernandes Jerónimo
- Ex.mo Sr. Chanceler … General Rocha Vieira
- Ex.mo Sr. Comandante do CID, General Rovisco Duarte
- Ex.mo Sr. Comandante da Brigada de Reação Rápida, MGEN Fernando Serafino
- Ex.mo Sr. Presidente da Liga dos Combatentes General Chito Rodrigues
- Ex.mo Sr. Presidente CML Dr. Raúl Castro
- Ex.mo Sr. Autor desta obra, Dr. Joaquim Santos
- Ex.mo Sr. Representante da Editora, Dr. Carlos Fernandes
- Ex.mas Entidades aqui presentes, Oficiais, Sargentos, Praças e civis
A todos expresso o maior agradecimento pela vossa presença no lançamento deste livro tão importante para a história da nossa cidade.
Ex.mo Sr. Comandante do RA4 e a todos os militares e civis deste Regimento, aproveito esta oportunidade para, em nome do Núcleo de Leiria da Liga dos Combatentes, expressar a nossa imensa gratidão pela colaboração sempre sempre sempre pronta para todas as nossas iniciativas com o objectivo de dignificar os nossos Combatentes.
Agradeço ao autor a honra pela oportunidade que me deu de escrever o prefácio de um livro de tão grande qualidade e valor histórico.
A primeira vez que o li ainda estava na forma de dissertação de tese de Mestrado. Comecei-o a ler mais para o avaliar do ponto de vista metodológico da investigação do que do tema em si. No entanto, após ler algumas páginas confesso que me apaixonei pelo tema e acabei por o ler também como um cidadão leiriense curioso pela história relacionada com a sua cidade, o jornalismo e a guerra.
Efetivamente o autor transporta-nos para um período muito conturbado da nossa sociedade: a passagem da Monarquia para a Republica e o eclodir da Grande Guerra na qual Portugal também acabou por se envolver.
Na verdade, estávamos na época da Consolidação da República em Portugal.
Viviam-se tempos difíceis e a guerra iniciada entre a Áustria e a Sérvia rapidamente se estendeu a vários países da Europa e do mundo, ganhando a amplitude de uma guerra mundial que ficou conhecida como a Grande Guerra.
Aquilo que começou como uma guerra de movimentos, que se julgava seria uma guerra que teria um desfecho rápido, acabou por se tornar numa guerra de posições, mais conhecida por guerra das Trincheiras, onde os avanços e recuos das forças eram muito demorados.
Portugal acabou por sentir necessidade de se envolver nesta guerra, quer para defender os seus interesses em África, quer para apoiar os seus aliados, nomeadamente, a França.
Portugal enviou um Corpo Expedicionário na última fase da guerra. Começou a preparar em 1916 e partiu em janeiro de 1917.
Foi para esta realidade terrível que o autor nos transportou através da análise dos jornais da época.
O autor fez uma análise cuidada dos jornais Leirienses da época, identificando sempre a sua conotação política de cada um, os seus objetivos e tipo de conteúdos. Para isso teve em conta o contexto jornalístico da época. Deu sempre destaque à forma como abordavam os assuntos relacionados com a guerra e se os mesmos eram ou não sujeitos à censura.
Neste aspeto é curioso observar que naquela altura, tal como agora se verifica habitualmente, os governos são contra a censura… desde que a comunicação social não fale mal deles.
Basta recordar que, o jornalismo como símbolo de poder, foi alvo de alterações profundas logo após a instauração da Republica. Logo cinco dias depois os jornalistas e os jornais foram objeto de legislação.
Com a chegada da Grande Guerra voltaram também as censuras às publicações (que durou até fevereiro de 1919).
Por exemplo, Afonso Lopes Vieira foi preso por causa dos seus poemas que escreveu em 1921 intitulado “Ao Soldado Desconhecido”, tendo esta obra sido apreendida por se considerar que lesava a pátria.
Não nos podemos esquecer que no início do século XX havia uma disputa dos monárquicos e dos republicanos pelo poder e, sem dúvida, os jornais com a sua capacidade de influência da opinião pública constituíam uma arma poderosa dessa disputa.
Os jornais que se destacaram nesta época foram:
O Leiria Ilustrado (Tito Larcher);
O Anunciador;
Jornal de Leiria;
O Radical (Joaquim Ribeiro de Carvalho /República);
A Voz Infantil;
O Mensageiro (Padre José F. Lacerda - Igreja Católica ligado à monarquia).
José Ferreira de Lacerda procurou incutir, através do jornal “O Mensageiro”, os valores da monarquia e Tito Larcher, através do jornal “Leiria Ilustrada” procurou chamar à razão para os valores republicanos.
Após a Implementação da Republica, os monárquicos Afonso Lopes Vieira, e Paiva Couceiro chegaram a estar presos por questões politicas.
A imprensa Leiriense foi muito influenciada por estas questões monarquia/ república, pelas alterações nas relações do estado com a igreja e pelo conflito da Grande Guerra.
Temos de ter em conta que antes do século XIX as narrativas dos conflitos chegavam-nos através de diários ou livros escritos pelos próprios soldados, ou por curiosos, e não propriamente por jornalistas.
Henry Robinson ficou conhecido como o primeiro jornalista de guerra. Em 1807, ao serviço do The Times, acompanhou a guerra da Independência de Espanha.
O primeiro jornalista de guerra português foi Hermano Neves que promoveu em A Capital a reportagem curta da guerra civil portuguesa quando se implementou a República em Portugal. Depois, em 1914, foi para França para acompanhar o conflito. (Mas teve dificuldades por causa das autoridades francesas.)
Numa outra perspectiva, Sousa Lopes foi um pintor nomeado oficial-artista do CEP que, na sua obra designada por “Rendição”, com 12 metros de comprimento, retratou a dura realidade que o CEP vivia no setor português na planície do rio Lys, em França.
O autor, Joaquim Santos, identificou muitos registos tais como reportagens, livros e diários que relatavam o conflito conseguindo analisar a evolução do jornalismo de guerra.
Um objectivo da investigação de Joaquim Santos foi caracterizar o género jornalístico dos textos de José Lacerda num contexto em que a crónica reinava e a reportagem se afirmava como um estilo tipicamente profissional de fazer jornalismo. Procurou assim perceber qual destes dois géneros se encontrava nas suas narrativas.
Neste sentido, convém referir que a crónica diferencia-se da reportagem na forma como o autor redige o texto, na sua apresentação, no modelo organizacional e no tipo de textos verbais.
A crónica normalmente reporta-se ao passado vivido enquanto a reportagem tende a descrever o presente, a atualidade. Na crónica o autor pode refletir a sua subjetividade. Na crónica, a descrição dos factos pode ter uma componente interpretativa do autor, podendo produzir um texto mais sedutor, de forma a despertar a paixão pela leitura. Mas isso afasta-o da notícia pura e isenta, o que não pode acontecer com a boa reportagem. Na reportagem o autor deve ser isento e constatar a autenticidade das suas informações
Para além de perceber estes géneros jornalísticos em cada situação, importante para a interpretação dos documentos, também pretendeu contribuir para o estudo da imprensa regional do séc. XX através das análises de casos do jornalismo Leiriense, nomeadamente, perceber como é que os acontecimentos da guerra se repercutiram numa cidade como Leiria.
Mas o objectivo principal desta investigação foi perceber a acção do Capelão Militar e Jornalista José Lacerda. Foi perceber como ele interpretou a sua missão de relatar os acontecimentos da Grande Guerra, uma função que exerceu em simultâneo com a de capelão militar.
Mas reparem! Para consolidar a sua investigação, o autor não se limitou a embrenhar-se nos arquivos e bibliotecas para ler documentos históricos. Ele deslocou-se pessoalmente a Flandres, nomeadamente a Richebourg, ao cemitério Militar Português, onde se deram os combates de La Lys (9 de Abril 1918). Ele quis ver o local onde se deu esta batalha tão famosa que ainda hoje comemoramos. Quis absorver o ambiente e compreender toda a mítica que ainda hoje a envolve. Teve uma acção louvável que reflecte bem o rigor do seu trabalho, cujos resultados estão bem visíveis nesta obra que hoje aqui apresentamos.
Esta obra também tem os seus heróis. Um deles foi o Padre José Ferreira de Lacerda (1881 – 1971) que se evidenciou com o jornal O Mensageiro, para onde escreveu as suas Crónicas de Guerra e com a sua acção sacerdotal na paróquia dos Milagres para onde foi com apenas 26 anos e lá continuou por mais 60.
Deu muitos contributos de cidadania na religião, política, jornalismo e capelanias miliares. Foi um filantropo.
Interessou-se muito pelo desenvolvimento e notoriedade de Leiria, das suas paróquias e do seu povo. Era adepto assumido de monarquia o que, se tivermos em conta o contexto da época, revela bem da sua coragem na luta pelos princípios que acreditava.
Em 1914 José Lacerda fundou o semanário O Mensageiro. Foi um jornal católico e o único que não pertencia aos fundamentos republicanos. José Lacerda e Júlio Pereira Roque (mais conhecido como o Jupéro) utilizaram o Mensageiro para combater as ideias republicanas e Afonso Costa.
Mesmo assim, o grande objetivo d’O Mensageiro foi a restauração da Diocese de Leiria, o que foi conseguido em 17 de janeiro 1918, através de bula “Quo vehementius” do Papa Bento XV.
O Padre José Lacerda notabilizou-se ainda pela sua luta pelo envio de mais capelães militares para o conflito, o que veio acontecer quando começou a haver muitos mortos e feridos. O Mensageiro contribuiu para esta decisão governamental.
Apesar de ter havido a Lei da separação do Estado com a igreja desde 20 de Abril de 1911, voltou a haver uma aproximação muito graças à ação dos capelães militares em 1914 e depois em 1917, pois o Estado compreendeu que assim cumpria melhor as suas funções e que essa era a vontade dos cidadãos. Na realidade, apesar da separação entre o Estado e a Igreja, o Governo acabou por enviar capelães militares para a Grande Guerra por reconhecer que a fé e a religião, no palco da guerra, constituíam um alívio moral para os soldados.
José Lacerda voluntariou-se para cumprir a função de capelão militar (Maio de 1917 a Setembro de 1917), servindo na Grande Guerra em França, onde escreveu crónicas que vieram mostrar o cenário difícil das hostilidades na guerra, as quais foram publicadas no Mensageiro. Salienta-se que graças a isto, a tiragem passou de 750 para 2.500 exemplares.
Para eu concluir, o nosso autor, Joaquim Santos, analisou os jornais da época, nomeadamente, os textos Crónicas de Guerra, do Capelão militar e jornalista, José Lacerda, cujas descrições e análises se recomenda a ler pois dão-nos uma percepção muito boa dos contributos do jornalismo Leiriense para relatar como os nossos soldados viveram a guerra, para conhecer melhor a história da cidade de Leiria e para identificar os géneros jornalísticos da época.
Mas ninguém melhor do que ele próprio para vos explicar as suas análises e conclusões.
Mário João Ley Garcia
Tenente-coronel de Artilharia