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O romance epistolar Parkinson, meu amor de Isabel Pereira Rosa foi magistralmente apresentado no Festival Literário Internacional de Óbidos de 2019 pela investigadora e ensaísta Rita Basílio.

Tendo sido sobejamente elogiado pela sua qualidade e profundidade, algo a que a obra em questão se presta, é com enorme satisfação que publicamos, aqui, o texto integral apresentado pela ensaísta no passado dia 15 de Outubro no espaço "Folio Mais" do F(O)LIO 2019.

FOLIO2019

Parkinson, meu amor de Isabel Pereira Rosa

Óbidos, 15 de Outubro de 2019, Espaço FOLIO MAIS, TENDA DOS EDITORES E LIVREIROS,

Muito boa tarde

É com grande alegria e sentido de responsabilidade que venho aqui apresentar, em nome da editora Textiverso, o livro Parkinson meu amor, de Isabel Pereira Rosa.

Antes de começar, ou marcando o modo do começo desta apresentação, queria ler-vos uma passagem do livro O Canto do Signo, de Eduardo Lourenço:

(cito)

A literatura — a nossa própria existência como absoluta ficção — foi sempre um jogo, o mais eficaz dos jogos que soubemos inventar para vencer dentro da vida aquilo que no seu coração a esboroa: o tempo. A morte não é mais que tempo paradoxalmente solidificado. Contra ambos existe e resiste a singular e, no fundo, incompreensível actividade que chamamos, perdendo-a com esse nome, Literatura. (Lourenço, O Canto do Signo 1994: 11).

Começo com esta descrição (que é uma proposta de entendimento) da palavra “Literatura”, não apenas por ser a perspectiva que subscrevo, mas também pelo quanto ela se adequa ao livro Parkinson, meu amor, de Isabel Pereira Rosa.

 

É no entendimento da “Literatura” como jogo de resistência contra o tempo e contra a morte que encontro a “grande razão” que leva Sofia a escrever cartas ao seu marido José;  que encontro, afinal, a “grande razão” que leva Isabel Pereira Rosa a escrever as cartas de Sofia, dando corpo ao livro  Parkinson, meu amor, abrindo a cor-respondência de Sofia (e sublinho o modo de um “responder com”) ao fora da escrita: a nós, leitores, que entramos, com Sofia e José, no mundo em que a doença de Parkinson é uma realidade que afecta tantos seres humanos como nós, tantos familiares e amigos, como somos dos nossos.

Chamo-lhe “uma grande razão”, evocando o título de Mário Cesariny, porque é a Literatura – no exacto sentido em que a entende Eduardo Lourenço − que leva Sofia a escrever estas cartas.

Sofia responde, escrevendo, à necessidade de resistir ao tempo e à morte − “vencendo, dentro da vida, o que no seu coração a esboroa”, dia a dia.

Às palavras do filósofo português acrescento agora a visão de um outro filósofo, Gilles Deleuze, para quem a Literatura é sempre um acto de resistência, de vida e de saúde.

É pela Literatura, no seio da vivência trágica de um cuidador, observador empático da doença neurodegenerativa que afecta o seu companheiro de vida, que Sofia resiste, prolongando ficcionalmente o diálogo suspenso com o marido, escrevendo-lhe cartas como quem inventa o poder de manter aberta a conversa quotidiana que os unia, lutando por demorar um em-comum que progressivamente se desfaz, como quem confia que, pela escrita, é possível abrir tempo ao impossível, ficcionar a permanência do que se ausenta.

Sofia luta contra essa ausência, contra o silêncio do olhar e das palavras, contra o desaparecimento da memória de José, contra o próprio desaparecimento de José e do mundo de Sofia, que o incluía.

Isabel Pereira Rosa não cria apenas uma personagem ficcional, a autora põe, no palco da escrita, uma mulher que inventa, diariamente, palavra a palavra, o sentido da sua própria existência como resistência vital a uma doença degenerativa que afecta tudo em seu redor, uma mulher que se re-inventa, por escrito, epistolarmente, ao ser confrontada com a eminência do desaparecimento do outro, aquele que levará consigo todo um mundo partilhado.

É a própria morte de uma existência-em-comum que Sofia experiencia, e é pela Literatura que Sofia reage e resiste, criando a sua própria forma de sobreviver ao medo, ao afastamento, à aguda dor da perda de José, ainda perto de si e já tão longe.

Num contexto extremo de sofrimento, de doença e de prenúncio de morte, Parkinson, meu amor, é uma história de escrita (descrita): é pela Literatura que a vida de Sofia e de José é recordada e redivive. A escrita contraria o esquecimento.

“Toda a Literatura” – diz agora o poeta Manuel António Pina – “fala da morte e do amor. E do tempo, que é a morada de ambos” (DVA: 57).

Parkinson, meu amor traz-nos a extrema consciência da complexidade destes três abismos em que se inscreve, afinal, a própria existência humana, sobretudo quando confrontada com os limites da dor e da eminência da perda.

Isabel Pereira Rosa abre-nos à visão da alteridade, à experiência do Outro que não somos, mas com o qual aprendemos − pela empatia, pela compaixão, pela incorporação de uma circunstância que, por humana, pode ser a nossa – a conhecermo-nos melhor.

Quando lemos Parkinson, meu amor, lemos-nos também a nós mesmos. “Quem lê, lê-se”, diz ainda Manuel António Pina.

Quando Sofia (d)escreve a José as suas aflições, os seus medos e preocupações, as pequenas e as grandes, as que são suas e as que nos são comuns, abre-se no livro − e cito o texto de apresentação deste mesmo encontro, aqui, no Fólio deste ano − : “um espaço de reflexão acerca das inquietações e perplexidades dos nossos tempos e os medos que ensombram as nossas perspetivas de futuro”.

Sofia (d)escreve-os ao marido, partilha com ele o mundo quotidiano convertido em palavras que recordam a José preocupações que eram de ambos, desde as mais quotidianas e banais, às grandes questões globais.

Pela escrita que dá a Sofia, Isabel Pereira Rosa (e cito agora o texto de apresentação de Maria João Cantinho) faz-nos ver “todas as preocupações políticas, como a ascensão dos nacionalismos e populismos, da xenofobia e do racismo, transformando-se em matéria epistolar.”

Esta transformação é a própria transmutação que indecide realidade e ficção, o que faz da Literatura um testemunho vital, uma partilha de vozes humanas em cor-respondência ficcional, dando forma e figura (eis o sentido de “ficção”) a emoções e sentimentos informes, que nos conectam, porém, a todos, numa realidade em-comum, onde nos encontraremos, talvez, menos sós.

Este não é, por conseguinte, um mero romance em formato de diário epistolar que conecta a história de José, um doente de Parkinson, com a história de amor que o liga a Sofia, que acompanha a progressão da doença do marido até à morte. Parkinson, meu amor conecta-nos com Sofia, conecta-nos com José, através de inquietações, medos e emoções que também são nossos, singular e intransmissivelmente.

Não somos observadores passivos. É a nossa própria relação com a dor e com a perda, com a fragilidade humana, com o medo e com a morte, que é posta em jogo na leitura deste livro.

Parkinson, meu amor confronta-nos com as mais extremas complexidades da relação com o Outro, com as vulnerabilidades do ser humano, com a nossa silenciosa existência desaparecente.

Só pela Literatura o silêncio é escrito, diz Blanchot e, por isso, Sofia escreve.

A certo momento, dialogando ficcionalmente com o silêncio de José, Sofia lê: «Também dizes que não interessa uma literatura inócua, que não te faça vibrar e que não afirme uma posição, e entendes que é dever do escritor dar voz aos que não a têm.»

Isabel Pereira Rosa dá voz a Sofia, para que Sofia possa dar voz ao marido que a perdeu, não sem antes deixar inscrito, na memória de Sofia, que o que lhe interessa é uma literatura que o faça vibrar, que “afirme uma posição”, que dê voz “aos que não a têm”.

Num sólido jogo de “mise-en-abîme”, Isabel Pereira Rosa dá-nos a ler essa Literatura que interessa a José, a que Sofia escreve por ele, contra o impoder que o atingiu − uma Literatura que afirma “uma posição”: “a Literatura é uma saúde” (Deleuze)

O que marca a singularidade deste livro, para além de revelar um rigoroso e aturado trabalho de pesquisa sobre a doença de Parkinson, por parte da autora (− facto que levou o Médico Neurologista Joaquim Ferreira a descrevê-lo, simultaneamente como “uma linda história de amor”, e “um verdadeiro manual sobre a doença de Parkinson” −) , é a sua abertura à própria questão da Literatura como “resistência, vida, saúde”.

Reitero esta afirmação, porque Isabel Pereira Rosa a revela aqui, exemplarmente.

Sofia escreve, no contexto dilacerante da gravíssima doença do marido, como quem procura, simultaneamente, curar e curar-se, recuperar a memória perdida de José através da sua, recuperar-se a si mesma face a um brutal afastamento; sobreviver, enfim, à sua própria morte, porque parte de nós morre sempre, com a morte de quem amamos.

É na escrita que Sofia encontra a saúde (a força e a esperança) de que precisa para acompanhar José, e para se sentir, ela mesma, menos só, na impartilhável dor que experiencia.

E é nos outros e dos outros que Sofia recolhe e recebe o que precisa para resistir.

Sofia lê, Sofia escuta as histórias dos que a rodeiam, testemunhos de pacientes de Parkinson que visita, reportando por carta a José as histórias daqueles que, como ele, têm as suas lutas, os seus tormentos, as suas alegrias, os seus passados.

Sofia cumpre a função que é a da literatura, recontando, diariamente, histórias: experiências suas e alheias, outras vivências, outros olhares, mais ou menos abertos, mais ou menos opacos. Outras vidas e mortes convertidas em cartas para serem lidas.

cito:

“Meu querido: Ontem, falei com o médico, depois de ele ter estado contigo. Disse-me que te tinha achado um pouco melhor e que considerava que as cartas eram uma boa ideia, sejam elas sobre nós ou sobre outras pessoas.” (p.25)

Parafraseando ainda Manuel António Pina, na Literatura estamos sempre a falar de nós, ou não. Seja como for, as cartas, diz o médico, são uma “boa ideia”.

E quantas vezes uma “boa ideia” é apenas o que falta, não para “salvar” a vida, mas para a reiterar.

Cada um de nós lerá Parkinson, meu amor à luz dos seus próprios olhos − esses “olhos uns”− como dizia António Gedeão − que guiam a singularidade do olhar. A cada leitor caberá testemunhar o que vê − lendo (e lendo-se) – nas cartas de Sofia, nas palavras de Isabel Pereira Rosa.

Trouxe aqui um pouco da minha própria experiência de leitura, agradecendo à autora ter-me dado a conhecer o que não sabia sobre esta terrível doença neurodegenerativa, agradecendo, sobretudo, ter-me permitido integrar na minha própria existência (pensamento, visão e consciência), estes outros de mim, que poderei um dia vir a ser, doente ou cuidador, deixando bem viva a centelha do amor, único sentimento que, esse sim, nos salva.

Há uma pergunta – irrespondível – que não posso terminar sem citar, de tão profundamente poética que é. Pergunta Sofia, na página 22: «Sofrem mais os rostos impenetráveis ou os olhos que os miram de perto?».

Só no coração singular da vivência efectiva de cada um, esta pergunta pode (ou não) ter resposta. “Isto” é o inacessível à Literatura, a questão onde ecoa sempre um silêncio impartilhável.

O certo é que é ainda a Literatura que nos lembra, pelas palavras de Ruy Belo, que “Somos seres olhados”.

É minha convicção − e o livro de Isabel Rosa Pereira reforçou-o em mim, − que é pelo olhar do Outro – tão literário quanto real – que os nossos olhos aprendem a ver mais e melhor. Afinal, como diz Caeiro, o essencial é saber ver.

Rita Basílio