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Poesia Pagã apresentação site

APRESENTAÇÃO DA OBRA POR RITA BASÍLIO 

Antes de dar a palavra ao autor, gostaria de fazer uma breve apresentação deste livro de Miguel Samarão que, espero, seja o primeiro de muitos.

Quando, no início deste ano, a Editora Textiverso recebeu um email do Miguel Samarão manifestando o seu interesse em publicar sob a nossa chancela, foi unânime, após apreciação do original de Poesia Pagã, o parecer favorável à sua publicação, com o reconhecimento da sua manifesta qualidade poética.

Foi da escolha do autor a excelente fotografia da capa, que estabelece com o corpo do texto, no seu todo, ou com este ou aquele poema em particular, uma relação de simbiose, deixando-nos na indecidibilidade quanto ao primado da imagem sobre o texto ou do texto sobre a imagem. A fotografia da capa celebra o cunho dionisíaco presente no fio condutor que interliga estes poemas, conferindo-lhe a unidade que faz a obra um todo completo em si mesmo.

Na verdade, o próprio objecto livro apela, de imediato, aos nossos sentidos: Poesia Pagã apresenta-se-nos, deste modo, como «uma coisa feliz» (convocando Rilke, nas Elegias de Duino), «uma coisa bela» − a thing of beauty −  (nas palavras de Keats).

Poesia Pagã é, assim, o livro com que Miguel Samarão, excelente músico e poeta, se estreia na cena literária, com um traço muito próprio, a que subjaz uma forte componente musical, que desde logo singulariza a sua composição poética e artística.

O termo “lírico” remonta ao grego lyrikós, “relativo à lira”, instrumento musical com o acompanhamento do qual os poetas recitavam os seus versos. Durante o período da Idade Média, como se sabe, os poemas eram cantados. Miguel Samarão vai à raiz desta tradição para nos dar a ouvir, nos seus versos, a voz singular que é a sua. (Como nos deu a ouvir, na abertura desta sessão, a maravilhosa música que também compõe e executa).

Miguel Samarão é, de facto, um poeta. Ser poeta não é dar a um texto a forma gráfica de versos, como parece ser o entendimento de muitos, entendimento que, infelizmente, é incutido às crianças nas nossas escolas, levando-as a acreditar que a mancha gráfica e a rima fazem um poema.

 Ser poeta é ter uma prevalecente noção de ritmo, que passa por se ser músico de alma. «O ritmo é a vida» é o título de uma das obras de Henri Meschonnic. E poesia é, acima de tudo, vida. E é esta vida que vibra intensamente nestes poemas. Destaco, por exemplo, logo a primeira estrofe de «Primeiro fado»:

O meu desejo
é que a minha boca ao pé da tua
se torne um beijo
daqueles que transformam o vinho
em Tejo
e transportam a minha saudade tua
a uma ilha.

O envolvimento do poeta no poema enquanto seu sujeito enunciador, tão intrínseco à enunciação quanto a materialidade verbal que a sustenta, é a solicitação a que respondem estas palavras de Ramos Rosa no artigo «Como falar de Poesia», publicado na revista Relâmpago, nº 6, de 2000:

«O poema auto-constitui-se no seu dinamismo transpessoal. [...] O poeta autêntico converte-se na poesia que o insere no universo.»

É nesta medida que Poesia Pagã se apresenta como uma «antologia de estados de alma do autor», e por «autor» entenda-se o Poeta que neles se converte (como sublinha Ramos Rosa no passo que citei) «na poesia que o insere no universo».

É o que acontece quando escutamos este poema concentrado no seu núcleo poético e que se expressa em dois versos, criadores de um ethos em que reverberam cintilações dos haicai:

E se num charco cair uma pedra
esta não volta a ser atirada.

Constituem Leitmotive a embeber estes poemas na ambiência pagã que lhes dá o nome, o vinho, a guitarra portuguesa (a que, «carinhosamente», chama «Elefante Bardo»), as ilhas, as aves…

Mas são a mulher e o amor (o poeta «apaixona-se muito», diz-nos) a linha de força, que corre profunda e modela todo o universo poético em que se nos torna sensível, palpável, o sopro, a respiração do Poeta. Escutemos o final do poema «Uma mulher»:

Quero uma mulher que diga que sim 
ou que diga que não
mas que olhe para mim
como quem olha o céu
com olhos de nuvem
e traga para a cama
os dias de sol.

Quero terminar com o poema «Uma grande razão», que é já, só por si, e evocando Mário de Cesariny, uma grande razão para Miguel Samarão não deixar nunca de escrever:

A vida precisa de uma grande razão
de um abraço talvez
e de nunca pedir perdão
do cansaço
ao fim do mês 
traído pela satisfação
de começar tudo outra vez.

Passo então a palavra ao autor.

 Apresentação da obra Poesia Pagã por Rita Basílio, Investigadora FCSH-UNL

(07.03.2020)