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Título completo: Parkinson, meu Amor

Autor: Isabel Pereira Rosa

Colecção: Extra colecção - Romance

ISBN: 978-989-8964-02-1

N.º de páginas: 200

Preço: 12,00 euros

Disponibilidade: Disponível

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Sinopse

A obra Parkinson, meu Amor institui-se como um romance epistolar, em que a autora desenvolve, com a mestria literária que a caracteriza, um enredo que seguimos numa sequência de cartas escritas por Sofia ao seu marido, José, que sofre da doença de Parkinson.

É através destas cartas – que Sofia lê ao marido nas suas visitas diárias ao centro neurológico onde se encontra internado e que continua a escrever-lhe sempre – que a autora explora, de forma muito autêntica e comovente, a relação humana e, sempre, amorosa deste casal, confrontado, em comum, com o trágico desta terrível doença degenerativa. Dão elas ensejo a que recordem momentos significativos do seu passado e discutam temas do presente, ajudando-os a manter a solidez dos elos que os unem e que permanecerão fortes até ao fim.

Ao mesmo tempo, dado o aturado trabalho de pesquisa desenvolvido pela autora acerca da doença de Parkinson, este romance permite ao leitor conhecer um pouco melhor esta doença neurodegenerativa, que afeta cerca de um por cento da população mundial com idade superior a 65 anos, além de muitas outras pessoas com idade inferior, e cuja prevalência tende a aumentar. Em Portugal, estima-se que haja 15 a 20 mil pessoas afetadas pela doença de Parkinson.

 
Apresentação da Obra
 

Ainda o gesto possível, o de salvar a memória

 

Talvez o segredo deste livro esteja na epígrafe que o abre: «Como a doença amplia as dimensões internas do homem!» (Charles Lamb). Compreendemos que toda a estrutura do livro se inicia a partir daqui, estabelecendo uma relação entre um homem e uma mulher, essencialmente, José e Sofia. A ideia de uma amplitude das dimensões internas do homem perpassa a obra, sobretudo na tentativa de uma (re)constituição de uma memória perdida por parte de José, vítima de Parkinson.

Colocada perante um facto consumado que é a doença do seu marido, a personagem com o nome de Sofia resolve escrever-lhe cartas para o despertar da sua letargia, em que ele se vê envolvido devido à doença. Num gesto de amor que se sublima através da sua escrita, Sofia recolhe o mundo nas cartas que escreve diariamente ao seu marido José. Pois é desse modo que ela pode fazer-lhe chegar o seu quotidiano, enquanto José sofre um afastamento cada vez maior. Veja-se na página 17:

«Meu amor:

Hoje, em vez de um doce – que o médico desaconselha -, levo-te esta carta, para que sintas, materializada, toda a minha saudade.»

Pode-se materializar a saudade? Claro que sim, convocando, ou melhor, evocando os momentos que desejamos recordar, fixando-os, escrevendo-os, fotografando, pintando, etc. Neste caso, Sofia escolhe a «materialização» da saudade através da escrita diarística, apresentada sob a forma epistolar, isto é, nas cartas que escreve a José para que ele não se esvazie de experiência.

Ao ler as cartas de Sofia a José – e não se trata aqui de uma troca de correspondência - ocorreram-me várias vezes imagens  evocadas pelo filósofo contemporâneo Walter Benjamin, quando se referia aos soldados que voltavam das trincheiras, de olhar apático e mudos. Estes eram a expressão viva dessa falta de experiência autêntica, destruídos pelo horror da guerra. Tal como nos «soldados» regressados, também em José esse olhar vazio aflora, perante o «ladrão invisível» que lhe rouba a memória e a consciência. Como quando Sofia diz, na página 21:

«Meu amor:

Ontem fiquei tão triste por te ver ausente, olhos parados, rosto inexpressivo.»

Aliás, essa constatação dos rostos vazios e ausentes é constante, enquanto um dos sintomas da doença de Parkinson. Pergunta Sofia, na página 22: «Sofrem mais os rostos impenetráveis ou os olhos que os miram de perto?». É como se eles trouxessem um enigma indecifrável, pois se, de manhã, estão esvaziados de ser e de sentido, pela tarde, como diz Sofia, os olhares animam-se.

De um mundo esvaziado de experiência, como é possível reconstituir o sentido? Essa é a grande questão colocada por Sofia, ao longo de todas as cartas que escreve a José, até ao dia da sua morte e ao anunciado regresso de Joana, a filha adoptiva.

O dispositivo narrativo aqui encontrado pela narradora é muito interessante, na forma epistolar como constrói a novela. Carta a carta vamos medindo o pulso à doença de José, mas trata-se de muito mais do que isso. A personagem dá a ver a sua própria mundividência, que anteriormente era partilhada. É um mundo em que dá conta dos anos negros da nossa actualidade (a eleição de Trump, os refugiados acossados na Europa e os migrantes que soçobram no Mediterrâneo, da miséria que se vive no país, vítima da austeridade, e que obriga os jovens como Joana a emigrarem para terem o seu sustento. Assim, a escrita de Sofia será o reflexo de uma representação do real envolvente, desde os pequenos pormenores do dia a dia, da trivial e banal experiência do quotidiano, às preocupações com Joana, a filha adoptiva que vive e trabalha em Londres, todas as preocupações políticas, como a ascensão dos nacionalismos e populismos, da xenofobia e do racismo, transformando-se em matéria epistolar. Como um testemunho importante do nosso tempo e, simultaneamente, uma reflexão sobre o nosso quotidiano.

Por outro lado, além da história de José, cruzam-se aqui outras histórias, todas de pacientes vítimas de Parkinson. É nas histórias dos outros que Sofia procura o alento para a própria suspensão da sua vida, para ultrapassar a tristeza que vive diariamente, visitando-os, ouvindo-os.

Se o tema da escrita é triste e sem esperança, no entanto, é através das palavras que Sofia procura, a cada instante, reconstituir o seu universo. Contando a José, tentando, assim, refazer-lhe o seu próprio universo, escavando a esperança.

Há um momento em que Sofia diz: «Também dizes que não interessa uma literatura inócua, que não te faça vibrar e que não afirme uma posição, e entendes que é dever do escritor dar voz aos que não a têm. E vais mais longe: dizes que deve haver no autor coerência entre a sua arte e a sua vida. Oh meu querido, esta ideia dava um belo tratado.»  Convocando aqui a função da escrita como esse «dever de dar voz aos que não a têm, Sofia reflecte a sua condição de narradora, mas transporta também consigo, através desse mecanismo poderoso que é a ficção, o próprio objectivo da sua autora, Isabel Pereira.

Construir uma personagem que dá voz ao outro, esse outro que, dramaticamente, se encontra encapsulado na sua própria subjectividade, é, mais do que um simples mecanismo ou dispositivo retórico, um imperativo ético. Significa tal dizer que emprestamos a nossa voz e o nosso olhar àquele que não a pode ter. Como José, há vários pacientes, na casa de saúde onde este se encontra, que Sofia visita. Ouve-os, às suas histórias, medos e angústias, as suas pequenas felicidades, para depois reportar a José o que viu e ouviu. O que Sofia procura, a todo o instante, é esse «resto» que se estampa no rosto e confere aos doentes de Parkinson a sua humanidade. Aquela que sobra e ainda não foi roubada pela doença. O «resto» da memória. Não por acaso pergunta Sofia na página 86: «O que somos nós sem memória? Ela é a substância de que somos feitos, a base da nossa individualidade. Não quero viver sem ela. Quero acrescentar isso ao meu testamento vital.»

De facto há nesta obra uma omnipresença desse topos que é a memória. Sofia sabe exactamente que a privação da memória é algo que, não apenas aproxima José da morte, como o afasta de si própria. Por isso a sua escrita é a inscrição da memória partilhada de ambos, dos factos que estiveram presentes ao longo da vida comum: os pequenos gestos, o modo como Sofia o lembra. Porém, a memória a que Sofia se refere, não é apenas aquela que é individualizada e subjectiva, mas também a que nos toma como seres da comunidade, o inconsciente colectivo de Jung, como diz Sofia, na página 86. E, «mesmo que percamos a memória, não perdemos a humanidade». É verdade que, se o inconsciente colectivo se encontra tatuado na nossa memória, mesmo que percamos a memória subjectiva e individual, continuaremos como parte dessa memória colectiva e inapagável, irrecusável.

Se a tragédia consiste no apagamento da memória de José (e dos restantes pacientes), no entanto, há na voz continuada de Sofia um alento, através da escrita, pois como ela própria o diz, a certa altura, «são as palavras que nos salvam». Trata-se, assim, de um gesto, não apenas salvífico, no sentido em que se salva a memória e a partilha do que há e do que houve entre os dois, do passado e do presente, mas também de um gesto de sobrevivência, nesse sentido em que o humano se inscreve na posteridade. O que sobrevive na linguagem e na escrita é a memória. Essa é a luz que arde gentilmente no abismo do esquecimento, insuportável para Sofia, pois representa a morte do amor entre ambos. É preciso, então, revivê-lo, escrevê-lo, para que a experiência amorosa, também ela, não se dissolva no rio do olvido.

E tudo termina, nestas cartas, não com a morte previsível de José, mas com o regresso de Joana, a filha adoptiva, como um acontecimento capaz de devolver a Sofia a alegria possível. E com Joana chega, no final do livro, uma nova vida, mensageira de esperança e de promessa num universo de escombros e de perda.

Maria João Cantinho

Texto apresentado no lançamento da obra no Centro Neurológico Sénior de Torres Vedras a 27 de Abril de 2019