Maria de Lurdes das Neves GodinhoJá é um lugar-comum começar uma qualquer prelecção ou agradecer um convite público, salientando o privilégio ou a honra do convite. Não serei eu a fugir a esse lugar-comum e, assim, afirmo com forte convicção que também para mim é uma enorme honra e um privilégio encontrar-me hoje neste espaço luminoso e verdadeiramente inspirador, sob o signo de um dos nossos maiores expoentes literários (José Saramago), para apresentar o livro de um dos nossos dilectos ex-alunos do Curso de Tradução-variante de Interpretação da ESTG – o Francisco Miguel Valada.

E perdoem-me mesmo esta pequena e inevitável vaidade de me sentir igualmente orgulhosa pelo facto de o Francisco ter sido meu aluno em várias disciplinas – como, por exemplo, Língua Portuguesa, Cultura Portuguesa, Cultura Alemã e Língua Alemã na Licenciatura – e de considerar que também eu contribuí, mesmo que com uma diminuta parcela, para a formação intelectual, profissional e humana do Francisco – esse aluno atento e observador, de sentido crítico apurado, ávido de conhecimentos e experiências, demonstrando uma consciência e maturidade que sobressaíam face aos colegas.

Lembro conversas que se prendiam com interrogações acerca do significado de se ser português, questões sobre uma presumível portugalidade, a essência ou a alma de um povo, por ex., em acesos debates nas aulas de Cultura Portuguesa e Alemã, ou das reflexões acerca do modo de funcionamento da língua portuguesa e do seu papel no Mundo, recordando-nos o nosso ícone Fernando Pessoa quando afirmava: “a minha pátria é a língua portuguesa”, ou, recuando, no século XVII, o visionário Padre António Vieira que, na sua demanda pelo Mundo, previa a formação de um V Império, tendo por base a unidade dos povos através da língua comum – o português, assente em valores de solidariedade e justiça universais.

É precisamente esta paixão secular pela língua portuguesa, a demanda do seu papel em Portugal e no Mundo que levaria, o Francisco, após a Licenciatura, a prosseguir os estudos numa Pós-Gradução em Interpretação de Conferência na Universidade do Minho, estudos esses que lhe assegurariam primeiro uma breve passagem pela ESTG, enquanto professor de Interpretação do Curso de Tradução/Interpretação, para, posteriormente, numa evolução expectável, ansiar pelo conhecimento de realidades diferentes, vivências Outras no estrangeiro, que se concretizaria na admissão a Intérprete residente da cabina portuguesa, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, no Luxemburgo, exercendo actualmente, em Bruxelas, em regime liberal, a profissão de Intérprete de Conferência de Língua Portuguesa.

Aos 37 anos é, sem dúvida, um percurso digno de respeito [não sei se cometi alguma inconfidência ao revelar a idade do Francisco, mas, quando já se entrou nos “entas”, tendemos a considerar todos os que ainda lá não chegaram como jovens mais ou menos inconsequentes, perdoem-me esta achega].

O livro que ora passarei a apresentar [embora resumidamente, deixarei o seu aprofundamento legítimo para o autor], provém da necessidade sentida por alguns sectores da nossa intelligentsia ligada à linguística, de reflectir sobre a necessidade ou não de haver um Acordo Ortográfico para a Língua Portuguesa, baseando-se para tal numa análise linguística aturada, num estudo teórico que levou o autor em questão a aprofundar os princípios que deverão nortear uma ortografia de base alfabética.
Critérios mais ou menos secundários como a Retórica ou acordos de natureza política não poderão portanto servir de base à defesa de um acordo ortográfico, mas sempre  tendo a Linguística como suporte, pois, como afirma Claude Lévi-Strauss na sua Antropologia Estrutural:
“No conjunto das ciências sociais (…) a Línguística ocupa um lugar excepcional: não é uma ciência como as outras, mas aquela que, de longe, atingiu os maiores progressos; a única, sem dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que conseguiu, simultaneamente, formular um método positivo de trabalho e conhecer a natureza dos factos submetidos à sua análise.” (Paris, Plon, 1958, p. 37)
ou ainda, mais modernamente, João Andrade Peres quando afirma, num artigo do Expresso  de 2006, intitulado “A TLEBS e a sua avaliação”:
“A linguística é a ciência que tem por objecto específico as línguas humanas, como sistemas que correlacionam sons (ou as suas representações gráficas) e significados, desde o plano das unidades mínimas até ao do texto” (Expresso, Caderno Actual, 8 de Dezembro de 2006)

É esse estudo aprofundado, de base linguística, de grande honestidade científica e metodológica, assaz controverso, que ora vos proponho com o livro de Francisco Miguel Valada: Demanda, Deriva, Desastre – os três dês do Acordo Ortográfico, da Colecção Controvérsias [nem podia ser outra] da Editora Textiverso.

Após um intróito na 1ª pessoa – fruto das vivências do autor, que se revela uma interessante introdução ao tema, através de observações sagazes e poéticas a partir da toponímia de uma rua de Bruxelas – o autor revela logo no Prefácio as linhas da sua investigação: assim, tratando-se a ortografia de uma convenção, tal como nos ensina a Linguística, isso não significa que se use da arbitrariedade para a alterarmos, mas deveremos sempre respeitar os princípios de uma ortografia de base alfabética, como na caso da portuguesa. Ora, sendo os dois princípios norteadores da ortografia do português a fonografia e a ideografia,
“a verificação da impossibilidade técnica de unir grafias divergentes, por imperativos fonográficos e ideográficos, deveria ter travado o ímpeto dos seus proponentes, levando-os a declarar a falência do projecto.” (p.15)  
E, mais adiante, na p. 16, no final do prefácio:
Esta reforma, promovida pelo Acordo Ortográfico de 1990, tem trazido a terreiro uma miríade de temas em nada relacionados com o que verdadeiramente está em causa, deixando-se enredar a discussão por questiúnculas colonialistas e neo-colonialistas, transformando em acessório o essencial: a forma correcta de se escrever, a relação entre grafema e fonema, a coerência gráfica, a remissão etimológica.”

Eis-nos, pois, perante a tese deste livro. Ao longo das suas três partes – Demanda, Deriva, Desastre, propõe-se o autor contribuir para o debate crítico sério, deixando de lado critérios políticos de vontade de convergência entre estados, mas centrando-se em critérios científicos baseados na Linguística, pois, segundo afirma em a Demanda (p. 19):
“Os debates têm sido travados em arenas não linguísticas, cingindo-se a temas com interesse meramente relativo, dando-se rédea solta à retórica […], preferindo convencer-se em vez de se explicar, dando-se relevância ao pathos e menosprezando-se o ethos e o logos. […] importa apenas convencer o público, crendo-se ser essencial desviar o debate para longe das complicadas razões linguísticas.” E ainda, no seguimento desta ideia (p. 26):
“evita-se um debate técnico, porventura fastidioso […] e utilizam-se argumentos genéricos, ao alcance de todos e, como é da praxe, apelativos, atirando-se o debate[…] para as primeiras páginas dos jornais, perdendo-se a razão da demanda nas entrelinhas da vã emoção, entretendo-se a opinião pública, quando se deveria esclarecê-la. Enfim, esgrimem-se floretes retóricos, não linguísticos, para se marcarem pontos numa peleja essencialmente linguística.
Alguns dos argumentos não linguísticos utilizados têm sido: um potencial nacionalismo dos detractores do Acordo; as vantagens económicas, políticas e diplomáticas duma grafia única;”

Os defensores do Acordo Ortográfico como Malaca Casteleiro e Dinis Correia (2007, atual – o novo acordo ortográfico) concentram-se no que denominam de “deriva ortográfica”por a língua portuguesa ser “a única língua de cultura com duas ortografias oficiais” (José Carlos de Vasconcelos,“Grau zero ou ainda menos…”, in Visão, 17 de Abril, 2008).
Ao abrigo de uma maior facilitação para o aprendente da língua portuguesa, seja ele nativo ou tendo o português como língua segunda, esquece-se que será uma perfeita inutilidade modificar a ortografia, quando há questões sintácticas (como por exemplo as construções gerundivas ou a colocação dos pronomes) e lexicais, impeditivas que realidades diferentes da mesma língua convirjam verdadeiramente. Toda a gente (ou todo o mundo, na versão brasileira) sabe que se diz por ex. “talho” em Portugal e “açougue” no Brasil e que uma rapariga no Brasil é uma moça de má conduta… Só para dar dois exemplos muito simples, do quotidiano.
Tal como o Francisco, também eu considero esta diversidade salutar e enriquecedora. A “deriva ortográfica” (e entramos, assim, na 2ª parte do livro), à qual Malaca Casteleiro e Dinis Correia consideram “imperioso pôr cobro”, acaba, como refere Francisco Valada (p. 28), ironicamente por se transformar na deriva do próprio Acordo, conducente ao desastre.
Maria Lúcia Lepecki, brasileira, residente em Portugal desde 1970, professora universitária e conhecida investigadora da Língua Portuguesa refere (p. 31): “O Acordo é um desperdício de energias, um desperdício de dinheiro”, pois “um brasileiro lê perfeitamente a ortografia portuguesa e um português lê perfeitamente a ortografia brasileira.” (M. Lúcia Lepecki, “Escritores consideram acordo ortográfico dispensável”, in Agência Lusa, 16 de Fevereiro de 2008).
Não se pense ser o português caso único de tentativa de reforma ortográfica. Relativamente ao alemão, e após longos, intensos e acalorados debates nos países de expressão alemã, especialmente em relação ao emprego do Eszet (ß), optou-se, com a reforma de 1996, pela utilização de duas grafias diferentes – assim, na Alemanha e na Áustria o Eszet continua a ser usado após vogais longas e em ditongos, tendo sido completamente excluído da Suíça alemã e do Liechtenstein que usam, em sua substituição, dois ss. E neste caso, ressalve-se, estamos perante uma reforma aplicada unicamente a 4 países europeus geograficamente muito próximos, o que não se verifica na língua portuguesa, falada em 8 países de 4 continentes bem diversos!
Também o inglês europeu e o americano, para além de notórias diferenças de âmbito lexical, patenteiam palavras com grafia diferente e nunca se pensou num acordo para a língua inglesa, nem surgiram reivindicações no sentido de se facilitar a vida ao aprendente, ao qual será muito simplesmente revelada a diferença de grafia, seja pelo professor, seja por qualquer dicionário.

Na última, e muito mais extensa parte do livro (pp. 37-98), intitulada Desastre, procede-se à refutação teórica das teses que serviram de base à elaboração do Acordo Ortográfico de 1990, à Nota Explicativa e aos diversos textos que sustentaram o  Acordo.
Para tal, e servindo-se dos dois princípios que regem uma ortografia como a portuguesa, de base alfabética, a saber: o fonográfico – que prevê que a cada fonema corresponda um grafema – e o ideográfico, que garante a coesão gráfica e se serve igualmente da remissão etimológica, o autor chama a atenção para o facto de este Acordo se valer apenas de um “critério fonético”, defendendo, assim, a pura representação fonética da grafia, numa aproximação radical aos alfabetos fonéticos. Neste ponto, o estudioso de línguas invariavelmente relembra Halliday – para quem a articulação é arbitrária, devido à não existência de relação sistemática entre som e significado – ou quiçá Chomsky que chamara a atenção para o facto de a forma como falamos permanecer no domínio do mistério. Daqui facilmente se infere que, sem atender à etimologia do nosso alfabeto – herdado do latim, por sua vez herdeiro do sistema grego – se introduzirão inúmeras ambiguidades, pois, como afirmaram Andrade e Viana: “uma mesma grafia pode corresponder a mais do que um som. […] Inversamente, um mesmo som pode ter mais do que uma grafia” (“Fonética”, in Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Lisboa, Caminho, pp.115-167, aqui: p. 45).
E neste ponto convém destacar que nem Saussure, adepto confesso do princípio fonográfico, conseguiu escapar à importância da raiz etimológica, incontestável na grafia do português, do francês, do inglês ou do alemão, etimologia essa que, em conjugação com a pronúncia, determina, pois, a sua grafia.
Poder-se-á perguntar então: qual foi a base linguística dos defensores do Acordo? A resposta é simples e unívoca: a simplificação. A simplificação que leva a que se suprimam consoantes etimológicas de valor diacrítico, como em optimização, refectir ou coacção e a supressão de acentos, criando homografias, com consequências nefastas no plano da Pragmática, como por exemplo [e servir-me-ei para tal de 2 exemplos interessantes do autor]: Num jornal lê-se: Mourinho para Portugal, o que tanto poderá significar com o novo Acordo (uma vez que se suprime o acento agudo) que o Mourinho pode vir trabalhar para Portugal, num clube desportivo ou na selecção, se se considerar para uma preposição, ou se se considerar “para” como forma do verbo parar na 3ª pessoa, então Mourinho pára Portugal, ao chegar ao aeroporto português, paralisando o país mediático e levando mesmo à interrupção de uma entrevista política num canal de TV.
Da mesma forma, o título de outro jornal: “Bloqueios de fundo da UE pára projecto de milhões na área do regadio”, hoje isento de ambiguidade, com a consequente supressão do acento de pára, à luz do Acordo Ortográfico, poderá induzir em erro um leitor médio, medianamente informado e atento, se interpretar o “para” como preposição.
Concluindo: a supressão do acento, conduzindo à homografia, dá ensejo a ambiguidades e confusões semânticas.

Ainda relativamente às consoantes não pronunciadas, etimológicas, como por exemplo o “P” de Egipto, nota-se, com a sua supressão por parte deste Acordo, o total desrespeito pela unidade das famílias de palavras que leva à coexistência de “Egito” e “egípcio”, num claro desrespeito pelo princípio ideográfico, perfeitamente visível na seguinte definição que já podemos encontrar em dicionários actualizados segundo as normas do Acordo: “egípcio – natural do Egito” (p. 60).
Referindo-se a uma outra incongruência relativamente ao par: apocalipse/apocalítico (o último sem “p”), afirma a Nota Explicativa ser esta apenas uma aparente incongruência, pois (p. 72):
“baseando-se a conservação ou supressão daquelas consoantes no critério da pronúncia, o que não faria sentido era mantê-las, em certos casos, por razões de parentesco lexical.” (V. António Emiliano, O Fim da Ortografia: comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,Anexo 1, Lisboa, Guimarães Editores, 2008.

Portanto, assume-se declaradamente o “critério da pronúncia”, em vez dos dois princípios que regem a ortografia, já sobejamente mencionados.

Numa última nota (p.94), gostaria de abordar as denominadas “facultatividades”. Assim, Ivo Castro, no Telejornal da RTP, de 6 de Março de 2008, afirmou: “Nós dizemos ”facto”, escrevemos o c. Os Brasileiros dizem “fato”, não escrevem o c. Portanto, mantêm-se as grafias duplas.”
Ou seja: é permitido escrever-se de forma diferente as mesmas palavras por motivos etimológicos, por tradição ou por pronunciação, adoptando o nome de “facultatividades”. Então, como questiona Francisco Valada muito pertinentemente: “Para quê ratificar um Acordo que prevê facultatividades e insurgir-se contra a dupla ortografia no espírito, quando na forma se a promove?” (p. 95).
Poderíamos ainda relembrar questões morfossintácticas, em que a norma euro-afro-asiática do português se afasta claramente da norma brasileira, como na conhecida questão infinitivo vs gerúndio. Vejamos um exemplo: aquando da Inauguração da Exposição Um Novo Mundo, Um Novo Império. A Corte Portuguesa no Brasil, Rio de Janeiro (RJ, 7 de Março de 2008) no seu discurso, o Presidente Lula da Silva, afirmou o seguinte: “Duzentos anos depois da chegada de D. João VI, nós brasileiros ainda estamos redescobrindo a importância deste evento para entender nosso país”, ao que o Presidente de Portugal, Cavaco Silva, sem dúvida, numa reciprocidade cúmplice, poderia ter retorquido:”pois nós, portugueses, também ainda estamos a redescobrir a importância desse evento para entender o nosso país.” Nesta afirmação ressalta outra diferença, nomeadamente a ausência do artigo definido antes do possessivo na norma brasileira (nosso país), em contraposição à norma euro-afro-asiática (o nosso país).
No seu discurso, Cavaco Silva explica a origem histórica da expressão portuguesa: “ficar a ver navios” que Lula da Silva, automaticamente, deve ter traduzido por “ficar vendo navios”, digo eu (vale a pena ler os discursos dos presidentes do Brasil e de Portugal que se encontram nos Anexos do livro do Francisco Valada na íntegra).

Também é notória a diferente colocação do pronome, denominada próclise na norma brasileira: “Nós, brasileiros, […] nos associamos a esse forte sentimento de família, um laço indissolúvel que nos une a Portugal”, face à ênclise na norma euro-afro-asiática –nós  associamo-nos.
Acerca das diferenças a nível lexical, para além dos dois exemplos acima mencionados, referirei apenas ônibus, trem e bonde só para não sair do âmbito dos transportes.
Sem qualquer esforço, chegaremos, pois, à conclusão do Francisco: a impossibilidade de um texto em português se apresentar de forma morfosintacticamente e lexical unificada, apesar da unidade da grafia pretendida pelo Acordo.
Lê-se na p. 91: “Para se dar ao mundo a imagem de uma língua portuguesa unificada não basta unir a ortografia. Deve igualmente considerar-se o plano lexical” e “a questão lexical multiplica exponencialmente os problemas de quem pretende unificar o que é, por natureza, díspar, tornando mais visível a dificuldade em conseguir um vocabulário ortográfico comum” (como, aliás, preconizam Malaca Casteleiro e Dinis Correia).
Deveremos ainda ter presente uma da críticas mais frequentes relativamente ao Acordo que se prende com a pouca atenção conferida por ele às variantes africana e asiática, limitando-se a consagrar as variantes portuguesa e brasileira – pois, como afirma Francisco Valada, muito pertinentemente, na p. 38: “A língua portuguesa não se restringe a um determinado espaço geográfico: é um diassistema, com normas padrão e normas cultas (e não com uma norma padrão e uma norma culta), que devem ser respeitadas, pois reflectem os usos de espaços geográficos autónomos e diversos.”

O presente estudo do Francisco Valada obrigou-me a aprofundar todas estas questões linguísticas pertinentes à volta da necessidade ou viabilidade deste Acordo, o que, em última análise, se traduziu na minha mudança de opinião. O autor conseguiu o que enunciara no Prefácio: “Chamar a atenção para aquelas opções da reforma ortográfica cuja gravidade me parece enorme”.

Está reaberto e reaceso o debate com este livro. Esperemos que os linguistas, demais estudiosos e a opinião pública em geral lhe dêem continuidade.

Maria de Lurdes das Neves Godinho

24.06.2009, Biblioteca José Saramago, ESTG – IPL

 

APRESENTAÇÃO DA OBRA
Demanda Deriva Desastre, os Três Dês do Acordo Ortográfico

de Francisco Miguel Valada

Por Josélia Neves

PORTO - 25 de Junho - 17h30
Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes

É com uma enorme satisfação que hoje me encontro aqui para apresentar o livro Demanda Deriva Desastre, os Três Dês do Acordo Ortográfico do Francisco Miguel Valada.
Agradeço a honra e felicito a TEXTIVERSO pela ousadia de fazer este o primeiro livro da sua nova colecção Controversias. A metáfora visual do preto e branco presente no logótipo desta colecção, e depois na imagem central da capa, aponta para um duelo entre opostos, num positivo/negativo que só por si poderá sugerir um extremar de posições ou, pelo menos, o arejar de opiniões contrárias. Mas como nos diz o dicionário, “controvérsia”, palavra de origem latina, é “uma questão de opinião sobre a qual as partes discordam activamente, argumentam ou debatem”. E será isso mesmo que o Francisco faz com o seu trabalho: assume uma posição clara, argumenta, e cria mais um espaço para o debate. E é esse o repto que aceito ao propor-me apresentar o seu trabalho.
Dizia eu de início que sinto uma enorme satisfação em aqui estar a apresentar o (que espero que seja o primeiro) livro do Francisco. Tive a sorte de conhecer o “Chico” enquanto aluno do Curso de Tradução no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, ao ler o seu trabalho vejo o rapazito de então com ares de senhor crescido. Posso dizer que apenas conheci o Chico no último ano do seu curso. Passou mais ou menos despercebido nos anos iniciais. De presença discreta, cabeça baixa, com o seu quê de nonchalant, o Francisco parecia mais preocupado em ser um tuno activo do que em ser activamente aluno. Destacava-se, na altura, por ser um pouco mais velho do que os restantes colegas e por assumir sempre uma postura ponderadamente crítica. Soube mais tarde que o seu poder argumentativo vinha não só de uma forte personalidade mas também da frequência de cadeiras do curso de direito. Questionava-me muitas vezes por que razão teria ele trocado um curso de Direito por um curso em Tradução (variante Interpretação) no Instituto Politécnico de Leiria. Este livro vem dar-me, mais uma vez, resposta. Aliás, hoje este livro não me surpreende porque fez-se anunciar muito cedo, muito antes de se falar nesta coisa do “Acordo ortográfico”. A esse propósito, permita-me Francisco que, numa pequena inconfidência, recorde aqui um dos raros momentos em que se me deu a conhecer. No final do 4º ano, após um jantar de curso, seguido de algumas cantigas e alguns brindes aos velhos tempos e à nova vida, o Francisco falava-me emocionado dos seus amores e desamores, da enorme admiração pela mãe, do orgulho de ser tripeiro, da necessidade de voar para longe e, num destremelar da língua, discorria sobre o sentido da vida. Ali falava o poeta, falava o pensador, falava o crítico, falava ainda um ser sensível e culto que sabia que de palavras e de textos se urdiria o seu futuro. Na altura, sem muito lhe dizer, projectei-lhe “um caminho” e com um carinho especial limitei-me a acompanhá-lo a distância: primeiro, uma pós-graduação em interpretação de conferência na Universidade do Minho, logo enquanto assistente no IPL, depois como intérprete de conferência nas cabines das principais instituições europeias. Com determinação, competência e humildade, o Francisco vem trilhando o tal caminho.  
Enfim, vejo este livro como a materialização da conversa então havida: o poeta de então é hoje o escritor meticuloso, de fino recorte estilístico; o “pensador-menino”, é aqui o “pensador-maduro”, tão ponderado e contido quanto acutilante e directo; o rapazito sensível e culto volta a manifestar-se no mesmo carinho pela mãe, a personificação máxima do “lar”, do ser português, do interesse genuíno pela lusa língua nas suas manifestações mais diversas. Aquilo de que me falava então, fala aqui e agora neste trabalho.
Não é fácil classificar o livro Demanda Deriva Desastre, os Três Dês do Acordo Ortográfico. Na sua génese, estamos perante um texto argumentativo que, nas palavras do autor, “não pretende atacar quem defende um acordo ortográfico para a língua portuguesa” mas sim pretende “rebater com argumentos linguísticos (os principais a ter em conta) considerações meramente retóricas (que apenas servem propósitos de persuasão)”. Cumpre-se, num entanto, enquanto texto técnico-científico, pelo rigor com que aborda as diferentes questões tratadas. Esta dupla faceta faz com que esta obra se ofereça tanto ao “leitor-especialista” como ao português comum que tenha interesse e curiosidade por estas coisas da língua numa leitura agradável que se deve a um colorido dialogante, aqui e ali picante e satírico.
O trabalho do Francisco começa e termina em tom de crónica romanceada. No início, numa escrita epistolar reforçada pelo grafismo itálico lê-se: “Bruxelas, num qualquer dia de segunda a sexta. Calcorreio a Rua Froissart que liga a Praça Jourdan à Rotunda de Schuman” (11). O Francisco afirma-se enquanto narrador participante, localiza-se no tempo do comum dos mortais, trabalhador rotinado, localizado num espaço cosmopolita, marcadamente político e referenciado. Percorrida a sua viagem termina num suspiro simultaneamente implicado e sonhador: “Ontem, o Acordo foi promulgado. Mas, hoje, o céu de Bruxelas é azul” (100). Este trabalho escreve-se assumidamente na primeira pessoa, reiterando a cada passo o direito à opinião e o dever de a dar a conhecer. Mas o tom com que opina é sério e assertivo. [O Francisco não brinca com o assunto, melhor, “não brinca em serviço”, como diziam já os seus velhos professores quando dele falavam.] O autor não se poupa a esforços para validar as suas opiniões. Este é manifestamente um trabalho seguro, amplamente investigado e longamente amadurecido. O Francisco não se ficou pela arte do cronista, foi mais longe: foi filólogo, linguista, não desmerecendo o seu papel comprometido do, também ele, professor. O Francisco é um perfeccionista. Dizia-me amofinado, “tem errata e tudo…”. Não se preocupe Francisco, como nos ensinam os chineses, “uma obra quer-se sempre inacabada”, deixando eles por isso, um espaço das suas casas por terminar, por falta de um tecto ou de uma porta qualquer. Dizem que dá sorte!

Não é fácil escrever sobre o Acordo Ortográfico de 1990 quer se seja contra, quer se seja a favor. Aliás, o que mais haverá para dizer quando no Google se encontram já para cima de um milhão e trezentas mil entradas sobre esta matéria? Quando linguistas, historiadores, políticos, letrados de todos os quadrantes já abordaram o assunto por tantos prismas quanto versões? Ressalvo aqui o facto de a maioria dessas entradas serem manifestações claras contra a implementação do Acordo, algo que contrasta com a quase inexistência de matéria factual que o apoie. Essa limitar-se-á a pouco mais do que ao próprio texto do Acordo e respectivos anexos, dos quais se destaca o parecer técnico que o sustenta. O que poderia o Francisco Valada ter escrito para além do que já foi dito?
O que o Francisco nos traz de novo é uma abordagem despretensiosa e descomprometida. A sua isenção não nasce da falta de opinião, essa é clara e assumida: o Francisco Valada é contra UM acordo em princípio:
porque a evolução duma língua natural, como o português, cujas divergências são motivadas por ser falada e escrita em territórios descontínuos, conduz naturalmente a diferenças entre as diversas normas dessa língua (no caso em apreço, poucas no plano morfossintáctico, bastantes no plano ortográfico, inúmeras no campo lexical) e foram surgindo por diversas razões: uma unificação (independentemente de ser ortográfica, morfológica, sintáctica ou lexical) ignorará esses motivos, normalizando artificialmente aquilo que é natural;
porque, ocorrendo numa língua natural, as alterações no português devem surgir naturalmente e não devem ser criadas artificialmente, sem se aduzirem razões concretas. A mudança que implica uma unificação irá sempre ignorar aspectos concretos duma norma em favor de outra.
Mas, acima de tudo, o Francisco manifesta-se de forma contundente contra ESTE Acordo por razões que desenvolve ao longo de cerca de 100 páginas repletas de argumentos precisos, alicerçados em premissas teóricas muito válidas e com rigor científico, sempre complementados por exemplos concretos retirados de contextos tão diversos quanto realidades toponímicas, o falar do povo, documentos legais, excertos da imprensa, realidades vivenciadas pelos mais de 260 milhões de falantes da língua portuguesa espalhados por uma diáspora fluida e em constante mutação. Tudo isto é nos dado com a simplicidade de quem conversa sobre o assunto sem a preocupação de “vender um discurso”, num pensar em voz alta, para que outros com ele pensem.
Este descomprometimento vem do seu anonimato: aqui fala um português, tradutor/intérprete por sinal, que usa a língua enquanto instrumento, vertendo para ela os pensamentos veiculados por utilizadores de outras línguas. E aqui voltamos aos bancos da escola: “o bom tradutor é aquele que domina a sua língua materna”. Mas é também aquele que zela por essa mesma língua. O Francisco é mais um tradutor a defender e a querer ver grande a sua língua mãe. Na história, são vários os tradutores a reflectir sobre a língua: S. Jerónimo, por terras da Palestina nos anos 400 DC; Erasmo na Alemanha do século XV/XVI, John Benjamin na Inglaterra dos finais do século XIX/ início do XX, e mais perto de nós, também no século XIX, Feliciano de Castilho… apenas alguns dos tradutores/teorizadores que se lançarem em defesa da correcta utilização das suas línguas. E, com as devidas distâncias e num presente muito recente, um João Roque Dias, conceituado tradutor técnico do nosso meio, também ele se levantou bem recentemente perante um Portugal que assistia aos Prós e Contras dedicado ao Acordo Ortográfico, defendendo a sua posição enquanto cidadão co-responsável pela manutenção de uma língua portuguesa “saudável”.
A voz do Francisco Valadas poderá não ter a força de vozes como as de António Emiliano, Eduardo Lourenço, Vitor Manuel Aguiar e Silva, Manuel Alegre, Isabel Pires de Lima, Vasco Graça Moura, ou a de Vitorino Magalhães Godinho, todos eles signatários do Manifesto em Defesa da Língua Portuguesa contra o Acordo Ortográfico. Falta-lhe o peso institucional e a consagração que esses ilustres colegas detêm; mas o nome dele estará certamente entre as mais de cento e dez mil assinaturas que o subscrevem e ficará também na história enquanto exemplo de como “um artesão da língua” também tem algo a dizer. Isto é aqui feito com o rigor científico de qualquer estudo académico conferente de grau, um mestrado ou doutoramento, quiçá. A metodologia seguida, a pesquisa alargada, o rigor com que se analisa a língua portuguesa faz deste, sem dúvida, um documento a ser tido em conta no contexto académico. Essa vertente ficou ontem perfeitamente atestada na apresentação do Livro em Leiria, feita pela Doutora Lurdes Godinho, eliminando qualquer margem de dúvida quanto à validade e cientificidade do trabalho do Francisco Valada. Sendo uma estudiosa da língua portuguesa, terminou a apresentação declarando-se ela também, após a leitura desta obra, convencida do grave erro que seria ver aplicado o Acordo ora em apreço. Com este trabalho, o Francisco Valada mais não faz do que lutar, com as armas que tem, naquela que se tornou já uma nova “guerra dos cem anos”. Sim, porque como afirmava Malaca Casteleiro em entrevista a António Melo da África21, “desde 1911 que andamos nisto”. Mas faz mais, pelo seu “descomprometimento político/académico”, pela forma humanista e humanizada com que apresenta factores de elevado rigor técnico, ele vem captar públicos comummente arredados destas reflexões teóricas. O Francisco faz descer a problemática do Acordo Ortográfico ao “povo”, explicando, exemplificando, tornando claro e simples o que é efectivamente complexo e para a maioria das pessoas hermético. Como ter uma opinião se não se conhece aquilo sobre o qual se quer opinar?
A história do acordo ou (des)acordo da língua portuguesa é quase tão velha quanto a existência da própria língua portuguesa.  A nossa língua, outrora o galaico-português, antes ainda o romanço, tem as suas raízes no latim, como o autor desta obra repetidamente refere ao reforçar a etimologia de muitos dos termos que o novo acordo quer agora ver mudados. A herança que chegou ao século XXI é já uma língua, bem diferente daquela imortalizada por Camões ou tão-pouco do português do “emigrante retornado” que escreveu o Livro do Desassossego ou Mensagem. O português de hoje reinventa-se a cada momento a uma velocidade meteórica e à escala global, num “netguês” escrevinhado em blogues, emails, em ambientes de comunicação síncrona a distância (quem ainda não usa o skype?), obedecendo a netiquetas que nada se preocupam com regras e normas. Essas são para contextos “cultos” onde as palavras são pouco cool e se mantêm espartilhadas pela “arte de bem escrever”, não se leia a “arte de bem dizer”. E é aqui que reside a principal contenda do Francisco Valada: a língua enquanto parole, na concepção de Saussure. A língua como actualização constante, marcada por diferenças sócio-geográficas e temporais: actos de fala, na acepção intersemiótica de Searle, concretizados em manifestações individuais utilizando uma infinidade de códigos que sempre que se conjugam criam uma nova realidade linguística. Sobre esta realidade escreve Francisco Valada que “a língua portuguesa não se restringe a um determinado espaço geográfico: é um diassistema, com normas padrão e normas cultas (e não com uma norma padrão e uma norma culta), que devem ser respeitadas, pois reflectem os usos de espaços geográficos autónomos e diversos” (38).
Será caso para perguntar se estarei com isto a manifestar-me contra a normalização da língua? Como professora de línguas, sei bem como é importante existirem regras para explicar o funcionamento da língua. Mas como tradutora e investigadora, também sei, e remeto-me a Toury, que toda a norma tem de nascer de dentro: uma norma é a consagração de práticas correntes, não é uma lei imposta, vinda de fora: a norma é descritiva, jamais será prescritivista. E talvez esteja aqui a razão pelo qual este Acordo, como todos os outros anteriores a ele, levanta problemas. Se outras reformas e tentativas de acordo falharam quase sempre porque as partes (leia-se Brasil e Portugal) não se entenderam – refiro apenas alguns dum passado mais recente, aquelas que marcam o conhecido “período simplificado” que vem do final séc XIX até nossos dias – alguns marcos importantes: 1911 – Acordo ortográfico Portugal/Brasil – que determinou as regras ainda em uso (1920 / 1929 / 1931) e depois a grande reforma de 1945 (alterações em 1971) que é ainda hoje a norma oficial da ortografia que nos rege – como poderemos esperar que agora, no tal tempo da cyber-cultura e da cyber-língua, este acordo seja aceite de forma pacífica?
Pedindo um período alargado de mais profunda reflexão, Isabel Pires de Lima evoca “três ordens de razões” para a revisão do Acordo: “razões técnico-linguisticas e culturais”, “razões político-diplomáticas e culturais” e “razões económicas e culturais”. Nas razões técnico-linguisticas realça as “inúmeras fragilidades no texto do Acordo, designadamente a que decorre do princípio da facultatividade, na sua opinião excessiva e que “vai contra o próprio conceito normativo da ortografia” e acrescenta ainda que a diversidade de critérios na simplificação de preceitos ortográficos desrespeita a “dimensão patrimonial da língua, nomeadamente a sua dimensão histórica etimológica”. Nas razões político-diplomáticas a ex-ministra da cultura afirma que se imporia uma descrição linguística das variantes africanas do Português. Reforça que, neste momento, este é um acordo entre Portugal e o Brasil, o que pode criar outras clivagens. Refere também razões económicas para que se reveja melhor a proposta actual realçando que “a expansão internacional de uma língua não se faz nem por facilitações ortográficas bebidas em critérios fonéticos em detrimento de critérios etimológicos nem por unificações estabelecidas por decreto (…), mas sim pelos conteúdos que for capaz de veicular (através da literatura, música, enfim da cultura)”.
O que o Francisco Valada nos dá com o seu trabalho é um valioso instrumento de trabalho para essa eventual revisão proposta pela Prof. Isabel Pires de Lima. Um instrumento que se baseia em factos concretos, de carácter essencialmente linguístico, perfeitamente justificáveis através da aplicação de critérios que regem deste sempre o funcionamento da língua: critérios de ordem fonológica, etimológica, semântica e morfossintáctica na busca de uma melhor compreensão do que mais não é do que formas de grafar palavras em língua portuguesa. Quer se seja (consciente ou inconscientemente) a favor, quer se seja contra o Acordo Ortográfico de 1990, ler esta obra leva-nos a uma reflexão mais profunda sobre as verdadeiras implicações da sua implementação. Que a aceitação do mesmo seja feita em perfeita consciência das consequências que as mudanças propostas acarretam. Que este trabalho sirva então para um repensar da actual proposta ainda não imposta por lei.
Tudo o que eu possa dizer sobre a forma como o Francisco Valada conduz a sua argumentação passará inevitavelmente pelo que ele próprio nos dá com o seu texto. A concretização da sua reflexão encontra-se dividida em três grandes blocos – os três Dês expressos no título – Demanda, Deriva, Desastre:
No capítulo 1) Francisco Valadas expressa a sua Demanda – “apontar divergências quanto a escolhas ortográficas, resultantes das convenções existentes para os “sistemas ortográficos de tradição escrita” (17) opondo-se àqueles que não têm “abertura para ouvir quem apresenta motivações linguísticas contra esta reforma e contra este Acordo” e quem “considere o debate desnecessário, pois o Acordo é um dado adquirido”(27).  Na memória Descritiva da sua obra, o autor sintetiza este capítulo:
Começa-se por analisar a questão da Demanda da ortografia, a procura de uma ortografia unificada para a língua portuguesa: uma procura secular, que culmina num instrumento desrespeitador dos princípios norteadores duma ortografia alfabética – o ideográfico e o fonográfico. Sendo a ortografia tributária da Linguística, o Acordo é, por seu turno, defendido na arena política, alegando-se que a grafia única traz vantagens económicas, políticas e diplomáticas.

Da Deriva, o autor dá conta com algum amargo de boca, descartando querelas nacionalistas e argumentos pedagógicos, referindo em jeito de síntese que “a fragilidade internacional da língua portuguesa deve-se à fragilidade internacional da política lusófona e à fraca implantação internacional dos Estados de língua oficial portuguesa”(28) mais do que à falta de um acordo ortográfico (acrescento eu). Sobre esta matéria o autor é contundente quando escreve (30):
Pode entender-se ser o Acordo um sinal emitido pela própria comunidade lusófona, anunciando ao mundo a sua fragilidade política e económica e agarrando-se à unificação da língua como se de uma tábua de salvação se trate; ou, na hipótese menos verosímil, entende-se que esta mesma comunidade se encontra prestes a inverter as regras por que o mundo se rege e a descobrir a roda linguística. Trocando por miúdos, os promotores do Acordo pretendem, com um instrumento linguístico, tornar os países lusófonos potências nas áreas referidas, em vez de, seguindo o exemplo das grandes nações, considerarem que estes se devem tornar potências políticas e económicas mundiais credíveis para depois impulsionarem a sua língua e as suas culturas.

Também na sua Memória Descritiva e em relação a este capítulo afirma que:
defender o Acordo como impulsionador da língua é semelhante a começar a casa por um telhado de fraca qualidade; demonstra-se que nem o problema ortográfico é exclusivo do português, nem as diferenças ortográficas existentes, por exemplo, no inglês, impedem uma boa vizinhança entre duas normas e o entendimento de ambas por parte de todos os seus utilizadores.

Mas é sobre o Desastre que Francisco Valada se detém e discorre longamente. Minuciosamente, ao longo de cerca de 60 páginas analisa com elevado rigor técnico e científico, uma por uma, as razões que o levam a falar de um “desastre técnico”.
Não me querendo alongar em detalhes, sob pena de me estar a impor ao prazer da descoberta que vem de uma leitura aturada desta obra, nem tão-pouco ao debate que se pretende vivo no decorrer desta sessão, e por tudo o que foi ontem eximiamente apontado, hoje gostaria de concentrar-me apenas nas formas encontradas pelo autor para provar e fazer entender as suas considerações teóricas a públicos especialistas e ao leitor mais comum. Apontarei apenas dois ou três dos muitos exemplos e explicações que o autor nos oferece.
Entre outras coisas, o autor analisa em pormenor as consequências da queda de consoantes ditas mudas; da eliminação de acentos gráficos; da proposta que se veja a coexistência de várias formas de grafar palavras como “facultatividades” em vez de excepções a regras coerentemente articuladas; da própria irrelevância de um Acordo centrado na unidade lexical, esquecendo-se das diferenças morfossintácticas que separam, por exemplo, as variantes euro-afro-asiática da brasileira.
Vejamos então como aborda essas questões. A dado momento, (37-8), e lembrando ao leitor que a língua portuguesa é um sistema com ortografia de base alfabética em que “cada símbolo representa um fonema, a parte indivisível dum sistema de sons de determinada língua” Francisco Valada toma o exemplo da falta de congruência que geraria a eliminação grafemas mudos:
Os dois princípios que regem uma ortografia de base alfabética são: a) o fonográfico, que prevê que a cada fonema corresponda um grafema; [e] b) o ideográfico, que garante a coerência gráfica (cada signo representa uma unidade significativa). Por exemplo, perante o <P> não pronunciado de Egipto, um leitor fará uma imediata remissão para o <P> pronunciado de egípcio, consciente da afinidade semântica entre as duas palavras. O princípio ideográfico, servindo-se igualmente da remissão etimológica, a qual, responsável pelas consoantes não articuladas (ditas mudas), tem igualmente influência fonética, pois em diversos casos fixa o timbre da vogal precedente.
Em relação a esta prerrogativa, Francisco Valada diz (sic) o Acordo “valer-se de um ‘critério fonético’, votando a etimologia a ‘um certo detrimento’”. Sobre isto, o próprio mais dirá.
Um outro exemplo da forma cativante como o autor torna claro o que possa parecer complexo é a maneira como demonstra o impacto que possa vir a ter o desaparecimento do acento gráfico na forma verbal “pára” (49-50):
Tomo um exemplo, na fronteira entre a ficção e a realidade, cuja formulação é comum nas primeiras páginas de jornais, mas que, com a supressão diacrítica preconizada, se presta a duas leituras:
(1) “Mourinho para Portugal”
(a) Mourinho pode ir para Portugal trabalhar na selecção, num clube ou dedicar-se a outra actividade, se para for considerada como preposição;
 (b) Mourinho pode, ao chegar a um aeroporto português, desencadear uma escalada de emoções, paralisando o país mediático, levando mesmo a uma interrupção de uma importante entrevista num canal de televisão, ou seja, pára o país.

E os exemplos sucedem-se. Aliando as questões da ortografia a aspectos extra-ortográficas (leia-se de carácter morfo-sintático) que uma qualquer tentativa de aproximação entre variantes tão marcadamente diversas da língua portuguesa implicaria, leia-se o capítulo 3.10 e depois os anexos dos discursos completos do Presidente da República Federativa do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva e o do Presidente da República Portuguesa, Aníbal António Cavaco Silva por ocasião da inauguração da exposição “Um novo mundo, um novo império – a corte portuguesa no Brasil”, no Rio de Janeiro, a 7 de Março de 2008.  E mais não digo.

Não me querendo alargar muito mais, os exemplos a que o Francisco recorre, repito, com todo o rigor científico, tornam tudo bem claro porque são facilmente reconhecidos por todos nós. A título pessoal, tendo vivido nos arredores do Porto (mais precisamente em S. Romão do Coronado) durante 10 anos, revi-me na contenda em torno da pronúncia do nosso “Castêlo da Maia” (84-87). Enquanto falante bilingue do português e do inglês, compreendo a referência feita à língua inglesa e só posso concordar com o Francisco quando ele refere (33) que:
Quando se aprende inglês com um professor nativo, o mesmo problema pode surgir e nunca se levou a cabo uma normalização do inglês europeu ou americano, quanto mais um acordo. Se um aluno aprender inglês com um professor americano e escrever theatre e colour numa composição, este último sublinhará a diferença ortográfica entre as diferentes formas de inglês e o aluno aprendê-las-á. Os leitores de português não deverão ver as diferenças ortográficas como um problema, mas como uma explicação adicional a dar ao aluno.

Como professora de línguas e como mãe de um jovem adolescente que também sou, só posso reiterar a refutação do argumento da simplificação que considera (62) que a “memorização da norma gráfica, na aprendizagem destas línguas”, só se faz “à custa de um enorme esforço de memorização”, afirmando-se terem as crianças de 6-7 anos dificuldades em distinguir se determinadas palavras têm consoante etimológica c ou p”. Nascida em Moçambique, questiono-me também sobre o fado a que a língua portuguesa estará votada em terras de África e da Ásia. E não posso deixar de ficar sensível ao cuidado havido ao referir recorrentemente o “falante-ouvinte” ao longo do seu texto. Vejo aqui implícita uma preocupação que me acompanha há já alguns anos: o facto de haver em Portugal (e de acordo com os censos de 2001) para cima de 84 mil utilizadores da língua portuguesa que são surdos. Entre eles incluem-se aqueles que nunca ouviram e que, portanto, jamais poderão fazer referência a uma memória auditiva para de ela se auxiliarem na descodificação de mensagens escritas, e essencialmente os Surdos (de S maiúsculo) que têm como língua natural a Língua Gestual Portuguesa e que lêem a língua nacional, no caso deles o português escrito, como segunda língua.
Terminando mesmo, agradeço ao Francisco a oportunidade que me deu para reflectir sobre aquela que é também a minha língua. Agradeço-lhe as horas prazenteiras de leitura estimulante, embora por vezes densa ao ponto de me obrigar a parar e a voltar a ler para melhor compreender. Por fim, agradeço-lhe poder partilhar este momento consigo e com os muitos amigos aqui presentes.
Só posso concluir lendo-lhe um pequeno excerto de um filósofo que muito admiro, Agostinho da Silva, por achar que ele estaria a pensar em pessoas como o Francisco quando escreveu estas palavras na sua obra Considerações e Outros Textos:
“o pensador não é, por estrutura, polemista, embora não fuja ante a polémica, nem a considere inferior; o seu domínio é no campo da paz, não entre os instrumentos de guerra; quando a batalha se oferece sabe, como o filósofo antigo, marchar com a calma e a severa repressão dos instintos que o mundo inteiro, ante a sua profissão, tem o direito de exigir; o seu dever de cidadão impõe-lhe que tome, ao ecoar da voz bárbara, a lança que defende as oliveiras sagradas e os rítmicos templos. A sua linha, porém, o fio de cumeadas por que se alongam os seus passos melhores comportam apenas uma invenção superadora, um perpétuo oferecer aos seus amigos humanos de toda a descoberta possibilidade de um caminho mais belo e mais nobre.”


Porto, 25 de Junho 2009
JOSÉLIA NEVES



OS TRÊS I’s DO ACORDO ORTOGRÁFICO
(apresentação pública e leitura de trechos selectos de Demanda, deriva, desastre: os três dês do Acordo Ortográfico, de Francisco Miguel Valada, Textiverso, 2009, na Fundação Mário Soares, em Lisboa, em 10 de Setembro de 2009, em presença do Secretário da Fundação, Sr. Dr. Carlos Barroso, e do Autor)
Por António Emiliano, da Universidade Nova de Lisboa / Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.
Ver em:
http://www2.fcsh.unl.pt/docentes/aemiliano/documentos_diversos/EMILIANO-FMS20090910.pdf