Junto à praia e anoitece
Para Paulo José Costa
Sinto para com Paulo Costa uma espécie de cumplicidade. E creio que o convite dele para ser eu a apresentar o seu primeiro livro de poesia não é um acaso. Ele mesmo sente, creio, essa cumplicidade. De onde vem tal cumplicidade? É que nós os dois sabemos que nas nossas vidas, e em diversos detalhes do que somos, existem diversos paralelos e diversos pontos que comungamos. Refiro dois aspectos apenas: a profissão e a respiração. Isto é, a psicologia e a poesia. E assim temos ido pela vida, entre uma coisa e outra junto à praia.
Hoje é de poesia que falamos, em particular do livro "Sopro da voz". Exactamente pelo que referi atrás, durante a leitura deste livro senti-me em constante diálogo com o Paulo. A isso não será entranho, também, o próprio título escolhido para o livro: sopro da voz. Não uma voz qualquer. Mas uma voz que expira existencialidade. E este sopro faz-se, a meu ver, segundo varias características ou facetas. Porém, antes de as mencionar, gostaria de referir que, de um ponto de vista formal, referindo-me à poesia em si, os poemas deste livro são todos muitíssimo recentes, revelando uma evolução muito grande, relativamente ao que do Paulo já conhecia, nomeadamente, por uma maior contenção, que se revela, por exemplo, na diminuição de adjectivos, deixando maior espaço ao dizer sem nomear. De um ponto de vista de conteúdo, de tema, poderá dizer-se que o amor orienta o fundo deste livro. Digamos que os poemas tendem a orientar-se no sentido da busca de um sentido afectivo e existencial para a vida. Se bem que esta busca e este amor sejam centradamente dirigidos à relação homem-mulher, lembremos que o livro tem uma dedicatória, que é a seu pai, e tem uma introdução poética, neste caso versos de um poema de António Ramos Rosa alusivo à natureza da poesia (para além de, pelo menos, um poema dedicado ao seu filho Afonso). Estes dois elementos constituem, a meu ver, duas janelas para a leitura do livro e, de alguma maneira, subjazem as várias facetas que mencionei mais atrás. A primeira janela revela a presença de um elemento existencial de busca de sentido, e a segunda revela a poesia enquanto instrumento existencial final dessa mesma busca. A primeira é enunciação de uma falta, de uma ausência, a segunda marca a superação dialógica dessa falta através da respiração poética.
Que facetas são essas?
A poesia deste livro é, antes de tudo mais, testemunho de uma viagem, de uma viagem pela vida. E, talvez por isso, há nele uma dimensão dramática: uma dor percorre os poemas deste livro. Porque, realmente, o amor, ou a sua busca, é uma dor. O amor é uma falta, uma ausência, talvez também uma perda. Uma queda para fora e para dentro. Neste sentido, não é propriamente um livro sobre o amor, antes será um livro sobre os dramas fundacionais deste sentimento.
Uma outra dimensão respeita à liberdade, à escolha, à impossibilidade e a um deserto: realmente existe uma espécie de resignação que atravessa este livro em ambos os sentidos. Mas porque este livro é uma viagem, existem igualmente momentos de esperança, como o que aflora no belo poema da pág. 21, de esperança receosa (pág. 20), de perplexidade perante a generosidade do amor (pág. 27), da beleza e alteridade do amor perante a mediocridade da vida (pág. 33) de corporalidade (pág. 40), de melancolia e distanciamento (pág. 41) e, sobretudo, como disse mais atrás, são muitos os poemas alusivos a um sentimento de perda. Veja-se o belo final do poema da pág. 65: Contudo/sem te ter/o silêncio é quase imóvel//e pesa.
"Sopro da voz" termina, quanto a mim, com três poemas que são muito significativos: "Um deserto", "âmago" e "labirinto". Estes poemas definem o livro. Marcam a natureza desta viagem. Dizem-nos o que precisamos saber sobre este livro e sobre a viagem lírica do autor por esta janela da vida.
Uma palavra para mencionar alguns elementos do universo poético que, de alguma maneira, constituem o esqueleto desta poesia: as gaivotas, o mar/a praia, o deserto, o corpo, a terra, os pássaros, o silêncio. São palavras recorrentes, significativamente recorrentes.
Pelo que disse mais atrás, poderá alguém crer que este é um livro amargado. Na verdade, é um livro de "coisas felizes". Toda a boa poesia é feliz. Não sei bem porquê, mas talvez porque nos permita caminhar em silêncio no mundo. E também porque há no mundo e na vida alguma coisa que nos escapa. Mas na poesia não.
Quando terminei de ler este livro, surgiu-me uma imagem, como se de uma foto se tratasse: imagine! o autor numa praia, em pé, olhando de frente o mar, as gaivotas, enquanto anoitecia. Daí o título deste texto: Junto à praia e anoitece. Sendo este o teu primeiro livro de poesia, deixa que te diga, bem-vindo, Paulo, entre aqueles que anoitecem.
Carlos Lopes Pires
Em 28 de Maio de 2011
[Leiria, no GL Caffé bar]
Junto à praia anoiteceu
Para o Paulo José Costa
na sua vida
houve uma árvore
às vezes anoitecia e as flores
não se viam
outras vezes acontecia
e assim foi pela vida
algumas vezes abriu os braços
e os pássaros vieram pela luz
um dia sentou-se na areia do mar
como se fora uma estátua de água
ou uma estrela de noite
e então
junto à praia anoiteceu
Carlos Lopes Pires
Considerações de Paulo José Costa sobre o seu livro “Sopro da voz”
Apresentado em Leiria a 28 de Maio de 2011
Fragmentos de uma Voz
Hoje partilho excertos de uma breve existência. Não serão eloquentes as palavras que vos direi. E não serão um anúncio de vanglória ou presunção, pois a Poesia é em mim a humilde representação da esperança, a sublimação da vida ou a confirmação do amor.
A claridade e espessura das palavras que partilho convosco, sustentam as traves e essência do homem que sou, como se espelhassem em segredo, uma voz ou força da alma. Não sou poeta ou escritor no sentido literal, na perspectiva de ambicionar alcançar os meandros da literatura. Contudo, não poderei deixar de exprimir-me pela Poesia, pois esse é o caminho que trilhei para partilhar a verdade e os excertos de um mundo em que vacilo.
Percorro com a memória os últimos anos de vida e deles emergem os poemas que se expõem neste Livro. São fragmentos, notas soltas, olhares, lágrimas e harpejos de luz. E remontam aos dias, em que ao olhar para dentro da alma, percebera que as palavras eram aves impacientes ou um reduto primordial da solidão.
Este é o meu Mundo mais íntimo, mas que deliberadamente partilho com aqueles que me fazem existir (e com os quais encontro um sentido profundo para criar, num incitamento sincero à Vida). Escrever Poesia, é exultar a alegria e o sentido profundo das coisas, cujas emoções e olhares me tocam no espaço absoluto do coração.
Não poderia existir ou relevar as palavras que exponho, sem a presença ou vida dos Outros. Os outros que quero, que vejo, que sinto, que amo: pois esses compõem o universo pleno da minha cumplicidade.
Se o acto criativo é (como alguém disse), por natureza um acto solitário e de recolhimento deliberado, seria impossível que se revelasse ou traduzisse em palavras que não fossem recebidas pelas mãos abertas (ou pelo coração), daqueles que tornam o meu mundo mais claro e absoluto.
De certo modo, essa partilha é a expressão de um fôlego ou de uma chama que amplia a minha existência, pois criar é existir e revelar silêncios, tornando melódicos os dias ou as horas em que freneticamente nos lançamos.
Um Livro, um Poema, uma Canção ou uma Imagem, são as presenças objectivas da nossa existência. São, aliás, a forma mais plena de existir e de revelar a grandeza ou o sentido primordial do Homem. É por isso que não poderei deixar de escrever, ou de traduzir em palavras os rumores da alma ou os traços da claridade, em que os meus sonhos se expandem.
Por isso, mesmo que hoje se revelem e se propaguem segredos (e se proclame a voz da minha alma!), quero que seja recordado o dia em que um Sopro se tornou Voz e a Arte Poética se tornou Alegria e Ternura, num embalo criativo que fez atear labirínticos sentidos!
Termino com um Poema inédito que quero dedicar a quem foi ao longo dos últimos 15 Anos a minha Luz…
Uma e outra voz
Houve momentos
em que estive longe. Instantes,
em que esqueci o refúgio recôndito
da tua alma. E sem mágoa,
(como uma vela que se desfaz),
derreti o teu nome nas cinzas
que cobriam a película da noite.
E afastei-me nas estradas e
nos ruídos concretos das horas,
desistindo das canções
que nos povoavam os sonhos
e nos tatuavam as mãos de silêncio.
E o meu corpo,
já não ouvia o quebrar das ondas
a rasgar a solidão das pedras.
Porém, regressei
ao colo onde adormecia
e onde enlevado na ternura,
ouvia o estalar vibrante da seiva
e das rosas
que nos trepavam ao alvorecer.
E agora, junto de ti
tenho entrelaçado nos dedos
um fio de silêncio e bruma,
uma e outra voz
a entoarem a mesma canção.
Paulo José Costa