Marco de Letras – Feira do Livro do Marco de Canaveses – 01/05/2011
Normalmente costumo estar desse lado. Hoje, embora inexperiente nestas andanças, acedi ao convite do Luís Vieira da Mota, permita-me que o trate assim, para fazer a apresentação deste seu novo livro.
E faço-o, entre outras razões porque gosto de livros. E permitam-me aqui um “à parte”. Hoje ao folhear um dos suplementos de um jornal diário deparei-me com a declaração de uma bonita manequim – bem poderia ser a personagem deste novo livro de Luís Vieira da Mota – que faz esta declaração lapidar: Não leio livros… sou mais da geração internet. Espero, pelo menos, que seja da geração que lê e-books, da geração que quer saber mais. Esperemos que sim.
Para não levantar muito o véu sobre este romance, irei centrar-me apenas em alguns momentos do texto e da informação que paralelamente nos é transmitida, pois é notória a preocupação do autor em cada capítulo, enquadrar no tempo e espaço o desenrolar do enredo.
Luís Vieira da Mota neste seu romance – “O último silvo do vapor”, tal como às personagens do seu enredo aviva-nos a memória de um passado não muito longínquo, onde a linha do Douro era cruzada por máquinas a vapor, e onde o esforço e engenho do homem foram postos à prova, num traçado sinuoso, que ligava por via férrea Ermesinde (aqui começa a Linha do Douro) e Barca D’Alva, com ligação a terras de Espanha.
Voltemos um pouco atrás para lembrar a data de 28 de Outubro de 1856. Foi neste dia que se realizou a primeira viagem de comboio em Portugal. Foi há 154 anos que a primeira composição realizou o percurso entre Lisboa e o Carregado.
Desde então, a evolução do caminho-de-ferro em Portugal (e em todo o mundo), esta grande aventura humana, mudou e assinalou o desenvolvimento do País e da humanidade.
E tudo isto começou com pequenas locomotivas movidas a vapor que rapidamente resumimos:
Os primeiros trabalhos de construção do caminho-de-ferro ao Norte do Douro iniciaram-se com a Linha do Minho, em1872. As obras da Linha do Douro, a partir de Ermesinde, iniciar-se-iam um ano depois, até Penafiel. Ao Marco de Canaveses, correspondeu um novo lanço da Linha do Douro, que se estenderia de Penafiel ao Juncal, em 1878.
O importante entreposto comercial que já era, na época, a Régua, passou a ser servido por via férrea em Julho de 1879. Depois o Pinhão, em Junho de 1880.
O lanço entre o Pinhão e o Tua, em Setembro de 1883, e entre o Tua e Pocinho, em Janeiro de 1887.
Finalmente, a 9 de Dezembro de 1887, era aberto à exploração o troço Pocinho-Barca d'Alva, ficando assim, definitivamente, concluído o caminho de ferro do Douro.
Certamente, perdoar-me-ão esta incursão histórica, mas será oportuno fazer uma homenagem à vontade humana que presidiu à sua construção, tal como às vidas que regularmente se serviam deste meio de transporte, mas também aqueles cuja profissão contribuiu para que tal fosse possível. Mais significativa se torna esta referência se atendermos a que hoje celebramos o Dia do Trabalhador… e tantos foram aqueles que à força de braços, rasgaram por entre pedra dura, num percurso sinuoso, esta nova via.
É com especial agrado que aceitei o convite que me foi dirigido para apresentar este livro, dadas as ligações afectivas e familiares que se entrelaçam num mundo tão singular como este da via-férrea.
Cresci a ver e ouvir também o silvo do vapor, embora misturado já com a chegada das novas locomotivas, num ambiente característico de forte mobilidade de gentes e mercadorias: a estação do Marco de Canaveses, foi desde a minha infância uma referência que jamais será esquecida.
Mas voltemos ao motivo por que aqui estamos.
O enredo de “O último silvo do vapor”, leva-nos a fazer uma viagem no tempo e no espaço, onde uma história de paixão se entrecruza com cenários diversos.
Nestes cenários, o autor leva-nos pelo Douro enquanto linha férrea e rio, onde a paisagem nos transporta para o imaginário de outros tempos. Aqui encontramos o lento desaparecer dos ramais: a Linha do Sabor, Linha do Tua, Linha do Corgo e aquela que podemos chamar nossa – a linha do Tâmega.
As linhas desaparecem mas os rios que lhe dão o nome permanecem com testemunho ad eternum da sua existência.
Será este o momento oportuno para lembrar aqui e para não deixar cair no esquecimento a revitalização da linha do Douro, a electrificação desde Caíde até ao Marco de Canaveses e os diversos agentes que neste momento se mobilizam para que tal seja uma realidade. O Douro e as suas gentes merecem este esforço e empenho de todos nós. E também, neste particular o autor deixa aqui o seu contributo.
Encontramos também, neste “silvo do vapor” a referência às riquezas e particularidades do Douro: desde o seu afamado vinho até às apetitosas laranjas da Pala. Neste particular faltou apenas a referência aos rebuçados das Régua.
Também o autor não se esqueceu de referir ainda o orgulho das estações ferroviárias disputando ente si, o galardão de estação florida – muitas hoje votadas ao completo abandono – apelando à conservação de equipamentos e brio de ferroviários…
Mas o livro fala-nos de uma viagem e é neste enquadramento que a viagem começa… um retorno ao passado que irá fazer reacender dramas e vivências antigas, deixando em cada capítulo um sabor a saudade, de amargura, e por vezes de revolta, pela voz de homens que sempre tiveram presentes, a linha do Douro e o silvo do vapor no seu quotidiano.
Neste contexto surge uma elo de ligação, e utilizando as palavra do autor: uma morena do Juncal andava por ali, memória colectiva de todos eles, despertando sentimentos de ciúme, raiva e paixão, culminando num trágico desfecho.
Crime para uns, acidente para outros, má sorte, certamente, para todos.
Certo é que todas as quintas-feiras, quando a morena embarcava na estação do Juncal, ninguém ficava indiferente.
Deste trágico episódio de um caso de amor, onde as personagens nos remetem para diferentes interpretações, a sua passagem para o imaginário popular seria inevitável. E aí temos o “cego de Rio Tinto” que em verso cantava este drama. E explicou: foi assim que ouvi a história, assim mesmo é que a canto. De resto, as vidas contadas tal qual são, não produzem fado que se sinta. Tem de haver mistério, meu caro senhor… mistério e dor …. Dor e poesia. Destino e pecado. Percebe?
Entre uma linguagem simples e se, quisermos, encorpada, o autor entremeia o enredo com reflexões que vão desde a abordagem política ao Estado Novo, à guerra colonial, à emigração, à religião, metafísica, contrapondo nas suas personagens, interpretações do mais puro senso comum, até explicações de ordem científica.
E, por vezes, tudo isto, rematado com uma boa dose de humor.
A leitura de “O último silvo do vapor”, será certamente uma oportunidade para despertar a nossa curiosidade para redescobrir o Douro, património Mundial da Humanidade, e as vivências de gente simples e humilde, de ontem e de hoje, que jamais poderemos deixar cair no esquecimento.
Nem que para isso, tenhamos de fazer ouvir o silvo, não do vapor, mas da nossa indignação.
Alexandre Aguiar
Marco de Canaveses, 1 de Maio de 2011