Apresentação de “As Minhas Memórias [Leiria, 1909-1939]”, de Raul Faustino de Sousa, e inauguração da Exposição “(Re)Conhecer Leiria – Memórias e Imagens do Século XX”, por António Veiga Moreira de Figueiredo
Exm.º Sr. Dr. Raul Castro, Presidente da Câmara Municipal de Leiria,
Exm.ª Sr.ª Dr.ª Paula Cândido, Directora do Arquivo Distrital de Leiria,
Exm.º Sr. Mário Matias, Presidente da Fundação Caixa Agrícola de Leiria,
Exm.º Sr. Eng.º Carlos Fernandes, representante da editora Textiverso,
Exm.º Sr. José Fabião e família,
Exm.ºs familiares de Raul Faustino de Sousa,
Exm.ºs convidados,
Caros colegas, desta aventura que foi montar a exposição “(Re)Conhecer Leiria – Memórias e Imagens do Séc. XX”,
Minhas senhoras e meus senhores.
Naquela tarde quente, na Repartição Técnica da Câmara Municipal de Leiria, o jovem desenhador, formado no ensino técnico-profissional, olha para a obra que acabava de concluir, levanta-se da cadeira onde estava sentado junto ao pesado estirador, abre a janela esperando uma aragem mais refrescante e diz para os seus botões com satisfação: tarefa concluída.
Consciente da importância daquele trabalho, que o arquitecto chefe, Camilo Korrodi, lhe tinha pedido, pega na pena, ajusta o aparo de ponta fina e, molhando ao de leve no pequeno frasco de tinta de Nankin, escreve:
Cópia fiel da tela de 1809, existente na Biblioteca Erudita e Arquivo Distrital, executada na Repartição Técnica da Câmara Municipal de Leiria, por Raul Faustino de Sousa, em Agosto de 1939.
Neste pequeno apontamento de rodapé, ficou um elo que permitiu, 73 anos mais tarde, reconhecer sem sombra de dúvida que o autor desta “cópia fiel” era o mesmo de um conjunto de manuscritos que, em boa hora, os familiares do autor entregaram ao Arquivo Distrital de Leiria.
A decisão de guardar os cadernos pessoais de Raul de Sousa em local onde poderiam ser consultados e preservados com segurança, escritos ao correr da pena, que a sua memória de eleição registou durante uma vida de trabalho, sem pretensões mas empenhadamente, veio a permitir, conjugadas várias circunstâncias e vontades, envolvendo entidades públicas, um patrocinador privado e uma editora, que, quase um século depois de terem sido vividas, essas memórias pudessem hoje ser fruídas pelos leirienses.
O livro “As Minhas Memórias [Leiria, 1909-1939]”, de Raul Faustino de Sousa, da editora Textiverso, com n.º 19 da colecção “Tempos & Vidas”, editado com o apoio do Arquivo Distrital de Leiria e da Fundação da Caixa Agrícola de Leiria, vem hoje a público e recomenda-se.
Quando as palavras de Raul de Sousa começam a desfiar o seu quotidiano aos nossos sentidos, a cidade ganha forma, luz, cor, cheiro, movimento, ruído, poesia, e uma realidade ingénua, mas genuína, faz-nos lembrar um Aniki Bóbó à beira Lis, filmado com a câmara de um António Campos.
Não sou especialista, nem sequer versado, em literatura. Deixo, pois, o trabalho das análises filológicas para os entendidos na matéria. Não é só esse o motivo que nos fará prender na escrita de Raul de Sousa, onde certamente terá mérito, mas sobretudo o prazer de encontrar alguém que, como nós, se encantou por esta cidade e, para além disso, partilhou de forma sincera as suas mais sentidas memórias e impressões.
O texto que abre este trabalho, da autoria de Patrícia Ervilha, é bem esclarecedor do alcance deste livro, pelo interesse que certamente irá despertar na geração “senadora” local, permitindo também aos mais novos o encontro com informação de carácter socio-histórica, cultural, urbanística e regional, cujo conhecimento e registo será seguramente mais um esteio para uma cidadania interventiva e mais culta nas vivências da cidade.
Quando vou a apresentações de livros, fico sempre com a sensação que preferia ir ler o que o autor escreveu, em vez de ouvir a expressão duma maneira de o ler. Manias. Por vezes falta-me a paciência de ouvir alguns oradores. Hoje até talvez fosse o caso, se estivesse desse lado a ter de me ouvir. No entanto, as circunstâncias muito particulares de se conjugar a publicação destas memórias com a abertura ao público de uma exposição, cujas imagens são precisamente, e em grande parte, comentadas por extractos das memórias de Raul de Sousa, permitirá, talvez, vermos de outra forma, como a tinta da sua caneta se funde com a luz e a sombra das imagens, deixando às palavras do autor melhor função que às minhas. Podemos dizer: veja a exposição, mas leia o livro, ou leia o livro, mas veja a exposição.
Raul de Sousa revela locais, espaços, pessoas, factos e episódios, momentos de amizade e de ternura infantil, picarescos e sérios, singulares e colectivos, cuja descrição nos transporta sem esforço para aquele tempo.
A sua biografia é de homem envolvido no seu meio, activo e multifacetado. Deixo-vos a tarefa de a lerem e compreenderão o seu percurso rico e singular.
Homem de horizontes para além da sua terra de adopção, será digno de estudo, e até publicação, o registo da sua passagem por África, trabalho com sabor entre a literatura de viagem e a antropologia, mas que, como refere o editor, não cabe no entanto no âmbito desta publicação.
No seu texto sobre Leiria e Marinha Grande refere-se a mais de três centenas de pessoas, com as quais conviveu, conheceu ou se relacionou, na vida familiar, académica ou de vizinhança e nas suas actividades profissionais, culturais e desportivas.
É particularmente curioso o seu interesse pelos automóveis, com a sua descrição e registo gráfico, não sendo de estranhar que os seus genes tenham sido transmitidos, com mérito, a seu filho [Hélder de Sousa].
A leitura deste livro, cuja preparação se deve ao trabalho de transcrição elaborado no Arquivo Distrital, e a publicação à Textiverso, será, tenho a certeza, um momento de grande deleite, ajudando na afirmação da cultura local, no reforço da nossa auto-estima colectiva, e, sem pretensões, no enriquecimento do conhecimento sobre a história de Leiria no século passado. As notas de Mário Matias, Ricardo Charters de Azevedo e Carlos Fernandes, que vão aparecendo ao logo do texto, são particularmente oportunas e esclarecedoras, permitindo uma interessante ligação à actualidade e à teia de acontecimentos e relações sociais da época.
O autor conviveu de forma transversal com a sociedade leiriense da primeira república e do início do estado novo. Assistiu a momentos que marcaram a vida daquele período, desde a passagem do cometa “Halley”, às transformações urbanas da cidade de Leiria, à proliferação da propaganda e da ideologia fascista, e à reacção àquela trágica ideologia, às práticas de cultura duma cidade de província e ao contacto com os seus agentes mais destacados, quer através do ensino artístico que frequentou, quer na vida social que viveu e testemunhou.
Poderia relembrar-vos muitos nomes de personalidades locais das artes plásticas, da música e do teatro que o autor cita e com quem conviveu, mas prefiro que façam o exercício de os encontrar no texto.
Pela importância na formação de Raul de Sousa devo destacar, no entanto, a figura do Professor Narciso Casimiro da Costa. Artista incontornável na Leiria do séc. XX, tinha com os discípulos uma forte ligação de amizade que ultrapassa a função académica e que se alimenta ao longo dos anos, mesmo com o afastamento físico, que naturalmente a vida traz.
A documentação de Narciso Costa, em depósito no Arquivo Distrital de Leiria, cujo estudo e análise daria certamente uma excelente tese universitária, revela esta particularidade da sua faceta, que Raul de Sousa também cultivou, pelo mérito que reconhecia ao seu mestre.
Em cada trecho da sua prosa o autor deixa ficar uma ideia, uma sensação, um valor, uma crítica ou louvor, nos quais transmite um forte sentido de observação, com recurso a uma ética sólida de quem distingue com clareza o bem do mal, sem moralismos ou juízos de valor radicalizados.
Não me parece curial desvendar-vos nesta pequena apresentação os segredos escondidos na prosa do autor, como já disse, pois essa descoberta e esse gosto quero que o desfrutem na intimidade do contacto com o texto, mas gostaria de vos ler uma pequena passagem que, pela frescura, nos faz entender o sentido das sensações dos poetas locais de todos os tempos, pois também eles conheceram e deambularam pela nossa costa marítima, aqui bem perto.
Escreve o autor:
Os passeios que se organizavam em conjunto ou somente isolados, depenicando camarinhas nos próprios arbustos, aspirando aquele ar puro, contemplando as maravilhosas paisagens, saboreando as pingas de água cristalina correndo em bocados de telhas ou mesmo nos próprios regatos, ou ainda nas encostas dos pinhais; a água férrea na Ponte Nova, o perfume das acácias floridas, o sussurro do vento brando, fazendo ranger as braças dos pinheiros, o sentir estalar a caruma debaixo dos pés, o chilrear dos passarinhos, os encontros com outras pessoas em passeios higiénicos, por entre aquelas verduras tão puras, tudo, tudo, tudo aquilo tem um encanto e uma sedução tão intima que nos julgamos senhores daquele pequeno mundo, que é muito nosso, e é de todos nós.
Ali passei alguns bocados maravilhosos da minha existência, naquela paz bendita, que só é vista e sentida por aqueles que adoram o belo da Natureza que a praia de S. Pedro de Muel encerra.
Quem nesta sala não sentiu já a mesma brisa e as mesmas sensações que o autor? Do mesmo modo que desta forma simples, mas bem articulada, nos deleita com prazeres bucólicos de um Lereno, se espraia noutras descrições de hilariante desenlace, e que deixaria Jacques Tati em pulgas para mandar o Sr. Hulot de férias a Leiria com Vasco Santana e António Silva.
Ora ouçam:
Uma vez, a minha família mandou-me a casa do Sr. Alfredo Martins, para tirar medidas a um fato. Caminhava pelo largo do Rocio, ao sair do alfaiate, em direcção ao Fadigas: passava nessa altura o automóvel do Craveiro. Isto passou-se em 1916.
O automóvel, lembro-me bem, era cinzento e ia aberto, quer dizer, com a capota de pano deitada atrás. A marca do automóvel não me lembro. O Craveiro era, além de chauffeur, futebolista de primeira categoria, e parece que era o melhor futebolista daquele tempo. Ao chegar à curva do Fadigas, tocou a buzina várias vezes e, como um grupo de homens que ali se encontravam não se afastava, eu vi o Craveiro pôr o braço de fora e dar uma bofetada a um homem que desandou em pião, até que foi de encontro a uma árvore das que ladeavam a entrada naquele sítio.
Estou certo que o prazer que tivemos na leitura deste livro será também o vosso, como se as memórias de nossos Pais e Avós aqui estivessem connosco, solidificando uma cadeia de conhecimento, hoje mais do que nunca, imprescindível para compreendermos os tempos sombrios que percorremos, na certeza de que será através do saber e da cultura que se encontrará o caminho, e um sentido de vida para os homens na superação das suas desventuras.
É este também, creio, o desígnio mais profundo da exposição que hoje se inaugura.
O m|i|mo abre hoje as suas portas a uma exposição sob o título “(Re)Conhecer Leiria – Memórias e Imagens do Século XX”. A exposição é organizada pela Câmara Municipal de Leiria, através do m|i|mo e pelo Arquivo Distrital de Leiria, em parceria com a Cinemateca Portuguesa, Fotografia Monumental e Região de Leiria, e conta com o patrocínio da Fundação Caixa Agrícola de Leiria.
Nesta, pretende-se revisitar a cidade, onde se moldou a actualidade, e que, como Raul de Sousa, nas suas “Memórias”, também evoca espaços, locais, pessoas, e uma expressiva vivência social, reflexo dos tempos que atravessou.
As imagens mergulham-nos num tempo que nos fará meditar e reflectir sobre vários aspectos da vida local do séc. XX, numa quase sociologia imagética, pré-25 de Abril.
A história do suporte fotográfico, bem como do cinema é, naturalmente, um tema caro a este singular museu e casa de cultura, no qual se têm vindo a desenrolar as mais variadas actividades de divulgação.
A luz, que as objectivas de fotógrafos amadores e profissionais, como a de José Fabião, souberam tão bem modelar, e que hoje, aqui, também preiteamos, registaram e ilustram os textos e as memórias hoje publicadas.
José Fabião, contemporâneo e amigo de Raul Faustino de Sousa, mesmo com 15 anos de diferença de idade entre ambos, é um caso singular de profissionalismo. Gerações de leirienses foram focados pela lente da sua máquina, em diversas fases da vida, e, desde sempre, um sorriso inebriante, um timbre de voz inconfundível e uma genuína simpatia, registou a nossa expressão nas emulsões de milhares de películas de fotografia. Lembro-me, quando pequeno, de caminhar com mais gosto para o fotógrafo do que ao barbeiro, ao dentista, ou às vacinas. É que não doía nada!
A feliz circunstância de estar à guarda do m|i|mo o espólio deste fotógrafo notável que viveu profissionalmente o século XX em Leiria, bem como um acervo próprio de imagens recolhidas durante a formação e consolidação deste museu, conjugada com a consulta e recolha de elementos doutros importantes acervos, existentes no Arquivo Distrital de Leiria, na Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, no Arquivo Municipal, e de outras instituições como o Orfeão de Leiria - Conservatório de Artes, ou colecções particulares, como do Prof. Dr. Alexandre Ramires, permitiu organizar esta mostra que, não se esgotando em si própria, pretende ser um ponto de partida para o reforço da informação e do conhecimento das imagens da cidade, a inventariar e registar pelo m|i|mo, como fiel depositário desse património.
Sabemos que muitas outras imagens existem em arquivos diversos ou colecções pessoais. Relembro aqui a edição em 1977 da notável exposição, sugestivamente intitulada de “O saque da cidade de Leiria”, organizada por Jorge Estrela, José Marques da Cruz, Rui Ribeiro, Fausto Simões e António Luís Ferreira, cujas vicissitudes da sua armazenagem ao logo de vários anos, pelo Município, reclamam actualmente, e como corolário lógico desta iniciativa expositiva que hoje começa, uma séria decisão sobre o seu restauro. Numa era em que a informação digital lidera, quando bem utilizada, e por profissionais, muito trabalho está facilitado, e isso é uma vantagem actual que não existia no passado.
Só a sistemática organização e conservação da informação permite de forma segura manter a memória das coisas.
Por esse motivo, quer o lançamento do livro de Raul Faustino de Sousa, quer o exemplo da obra de José Fabião, quer a realização desta exposição, pretendem ser elementos catalisadores de um processo mais vasto de consolidação do conhecimento sobre a cidade e do registo da sua imagem física e humana. Todos podem colaborar, pois as suas memórias e os seus contributos serão parte da memória colectiva, sem as quais esta não existiria.
Termino com um reconhecimento à Câmara Municipal e ao pelouro da cultura, pelo empenho na concretização desta iniciativa, a todas as pessoas que ajudaram na identificação de muitos fotografados, às entidades públicas, particulares, e serviços municipais envolvidos, cujo rosto são na realidade pessoas de grande valia técnica, profissional, humana e científica, sem as quais não seria possível este trabalho.
Bem hajam!
Disse.
António Veiga Moreira de Figueiredo
Leiria, 8 de Dezembro de 2012