Porto, 20 de Junho de 2011, Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes
- Dois tipos de poetas: os laboriosos e os irresponsáveis. O Daniel é um dos segundos, como se comprova pelo texto da contracapa, onde ele fala de “textos inteiros que surgem na minha mente esperando ser lidos e fruídos”. Digo que é um poeta irresponsável no sentido em que não se pode pedir a um poeta assim que, por exemplo, corrija versos menos conseguidos ou que escreva um novo livro para construir uma obra.
- O poeta irresponsável é aquele para quem a poesia é superior a quem a escreve e isso dá o tom de alguns destes “textos inteiros” a que o Daniel chama “a mais profunda literatura”, perante a qual a função dele é mais a de um intérprete, no sentido em que o músico interpreta uma partitura; neste caso, escreve o Daniel, “utilizando o instrumento ao meu dispor que sou eu mesmo”.
- Isto não mostra nenhuma insegurança, não mostra propriamente uma dúvida ou uma falta de convicção ou de crença na poesia, se calhar até o contrário, o que hoje é invulgar. Almada Negreiros dizia que “Poesia é por onde é para cada um” e a impressão que temos é que o Daniel sabe bem por onde é que, para ele, é poesia e que ele a reconhece sempre que a ouve chegar, essa literatura de que ele é só um instrumento de interpretação e que é uma língua ou uma escrita que se coloca acima, como diz um curto poema que começa assim:
“Toda a poesia se levanta
com o esforço de uma pedra
que eleva o seu peso contra o solo”
No final, esse poema completa a ideia, mostrando também que não se trata de a poesia dispensar o solo, o chão acima do qual se levanta, ou seja, não se trata de uma irresponsabilidade total em que a poesia apenas usa o poeta como veículo temporário. O poema explica que é de outro modo:
“pois tudo o que nos é superior
em nós assenta
pesando
a sua altura
sobre nós.”
- Eu diria que esta altura e esta superioridade da poesia explicam que estes sejam poemas em que, por um lado, a própria escrita aparece várias vezes interpelada, tratada como um tema, interrogada como um enigma, que é ao mesmo tempo fonte de sentido e de obscuridade. E que, por outro lado, sejam poemas a que não falta a convicção da poesia, embora isso não impeça que lhes falte a certeza da comunicação. Não devemos estranhar que um dos últimos poemas (o nº XVIII) comece e acabe com uma série de interrogações e os dois últimos versos desse poema sejam só feitos de três perguntas que ficam sem resposta:
“A quem falar? A quem dizer tudo o que me não digo?
E a quem perguntar isto?”
- Muita poesia moderna e contemporânea vive desta incerteza de interlocução, que vem precisamente do facto de o poeta descobrir na poesia, na “literatura mais profunda”, uma espécie de outra voz, uma língua e um pensamento que ele (ou ela) sabe que não se confundem com aquilo a que nós chamamos comunicação quotidiana. Nesse sentido, os poetas irresponsáveis são a prova, pela sua simples existência, de que a poesia pode ser uma experiência e de que é possível (e até talvez necessário) falar de experiência poética, visto que o “surgir na mente” daqueles textos inteiros é um acontecimento cujo resultado efetivo e material são livros como este.
- De que natureza é essa experiência? Como é que se pode descrevê-la? Com certeza sempre de maneira diferente consoante o poeta que a experimenta e lhe dá a sua marca, a sua assinatura. No caso do Daniel Basílio, era a hipótese que eu queria deixar hoje aqui no ar, e que resulta da releitura que fiz de São Douradas as Cordas, cerca de um ano e meio depois de o ter lido pela primeira vez, no caso do Daniel, creio que o que singulariza a escrita dele é a proximidade da experiência poética em relação a uma experiência de tipo religioso. No poema VIII, por exemplo, ele fala (num desses momentos em que ele escreve sobre qualquer coisa que parece que só se deixa ver como se fosse uma espécie de escrita) em “Apenas traços / Traços de um outro mundo / De uma outra absoluta beleza”. E logo a seguir, num poema curtíssimo, ele escreve diretamente sobre escrever poesia e diz assim: “Escrever poesia, abrir os olhos à boca / levar imagens / E nela... cantá-las, abençoando-as...”
- O que eu acabo de dizer sobre a natureza quase-religiosa da experiência poética não impede que se reconheça nestes textos as marcas daquela que é para nós uma das grandes ligações matriciais que dão sentido à palavra poesia, quero eu dizer, a ligação à experiência e à linguagem do amor. Este lado lírico, digamos assim, do Daniel, que torna muitas vezes presente aquilo a que ele próprio chama (no poema V) “um discurso amoroso”, é um lado que no entanto se exprime mais por relação a uma ausência do que a uma presença. Como diz o poema VI (que também começa com duas perguntas: “e o amor? / Quem o vencerá não amando?”), num momento de extrema autoconsciência, “E o que escrevo não é sobre ti / Mas sobre a tua / Magnífica ausência”. Mas o lado religioso da experiência poética é o que não se contenta com este lirismo da ausência e que leva a interrogação da ausência até à vida do próprio poeta, ou até àquilo que nessa vida fica aquém da existência. Não a beleza que se vê e mostra, mas a beleza que se esconde, como diz um dos poemas mais fortes deste livro:
“A beleza que se esconde como uma palavra que não surge,
uma vida que se escolheu não ser,
um caminho não percorrido
um traço por se inscrever.”
- Ora, nesse poema precisamente, “deus”, embora escrito com letra pequena, aparece em pessoa, aparece à letra, no texto do poema, como aliás já tinha aparecido noutros poemas anteriores a este na ordem do livro. Porque o poema é muito claro quanto ao que é importante para a experiência poética, quanto àquilo que, digamos assim, a experiência poética revela e torna presente e que é declarado nestes termos:
“A questão não será o que fui mas sim o que não fui. O que não me fiz
o que não me vi fazer.”
E logo a seguir a esta definição da questão poética é que “deus” aparece, desta maneira:
“E deus a ver-me não ir.
Eis o pecado: o que não se fez, porque outra coisa foi.”
- Reparem bem: “deus” surge, muito judaico-cristianamente, ao pé do pecado, ao pé da palavra “pecado”, que não é hoje, imagino eu, uma palavra muito frequente na poesia. Ora, o que é que, para o Daniel Basílio, tem o pecado a ver com a experiência poética, com a experiência de escrever e, em especial, com a experiência de escrever poemas? A resposta está no próprio poema que estou agora a citar e é, no fundo, muito simples, muito evidente. O poema é uma via de salvação inscrita ou traçada sob o olhar de “deus”. Não tanto por ser um modo de se confessar que se falhou, ou de ir ao confessionário revelar aquilo em que se falhou e pedir absolvição, mas antes por ser um modo de dizer a verdade da falha e de o dizer da maneira certa. Ora oiçam:
“E a verdade, a salvação,
está somente em encontrar a oração certa para a falha,
para a ausência que se tornou o caminho certo.
Este poema é uma contrição”
- “Dor profunda por ter cometido pecado. Arrependimento.” É esse o sentido que dão os dicionários à palavra “contrição”. Já vêem que, ao escrever num poema que “este poema é uma contrição”, o Daniel, pertencendo ao tipo do poeta irresponsável, não pertence porém de maneira nenhuma ao tipo do poeta leviano ou ligeiro que julgaríamos implicado nessa irresponsabilidade. Nem ao tipo do poeta meramente fetichista que se entrega a palavras que não entende, só pelo puro prazer de palavrar, como diria o Bernardo Soares. Há aqui também uma forma de desassossego e é a esse desassossego, a essa inquietação – que aparentemente tem pouco a ver com a pessoa do Daniel Basílio tal como ela se apresenta ao convívio daqueles que, como eu e muitos de vocês, têm o prazer de o conhecer pessoalmente – que eu associo o sentido religioso destes poemas a que também poderíamos chamar afinal, sem nos enganarmos muito, “orações”. O que talvez nem surpreenda muito, porque as “orações” propriamente ditas, as que se ouvem nos templos e nas igrejas, são antes de mais textos e, à sua maneira, também podemos dizer que são poemas, um certo tipo de poemas. E isso dá que pensar, não é verdade?
Gustavo Rubim