Senhor Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Leiria,

Dr. Fernando Lopes

Prezado Editor da Textiverso,

Eng.º Carlos Fernandes

Senhora Vereadora da Educação da Câmara Municipal de Leiria,

Dra. Anabela Graça

Prezados Amigos,

 

Muito agradeço, em primeiro lugar, o convite e a distinção para a apresentação desta obra - «Um bispo segundo Deus ou Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar, coligidas e coordenadas, entre os anos de 1860 e 1863 e dadas à estampa, em 1885, por um filho da extincta diocese», obra hoje reeditada em fac-simile, aumentada com um conjunto de informação anexa (de que sublinho os Comentários do Padre Inácio José de Matos, o editor de O Couseiro, sobre Vitorino da Silva Araújo, o autor do livro que apresentamos), que ajuda a contextualizar a obra e o seu autor, uma coedição da Textiverso e da Santa Casa da Misericórdia de Leiria.

Trata-se, em primeiro lugar, das Memórias de D. Manuel de Aguiar, não escritas pelo seu próprio punho, mas por um dos seus biógrafos, Vitorino da Silva Araújo (que, entre outros cargos e funções, foi professor de latim e, segundo julgamos, secretário do Liceu de Leiria, e que emprestou o seu nome a uma das ruas da cidade), que, em idêntica humildade à do biografado, escondeu o seu nome sob o pseudónimo de “um filho da extincta Diocese”, nome desvendado pelo editor de O Couseiro, na certeza de que, escondendo o seu nome, mais afirmaria o de D. Manuel de Aguiar, 17.º bispo de Leiria.

Obra publicada em 1885, quando, como alude o pseudónimo “filho da extincta Diocese”, a diocese se encontrava extinta havia três anos, datando a sua extinção de 1882, que só seria restaurada na sequência ads aparições marianas de Fátima, entre Maio e Outubro de 1917.

Mas as Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar fundem-se e confundem-se com as memórias para a vida da diocese e, particularmente, da cidade de Leiria (estatuto que remonta a 1545).

E na história da cidade de Leiria, destacamos os acontecimentos em torno da Guerra Peninsular, popular e tradicionalmente designada por Invasões Francesas, e, particularmente, a Invasão de 1810-1811, considerada tradicionalmente a 3.ª Invasão Francesa, aquela que mais danos e sofrimentos traria a Leiria, Invasão sob o comando de André Masséna, que foi travado e ‘derrotado’ nas célebres Linhas de Torres Vedras, sistema defensivo implantado por Arthur Wellesley, então ainda Visconde de Wellington, que visava defender a capital de uma nova invasão, assim como apoiar uma retirada do exército aliado (‘exércitos combinados’ como então se dizia), em caso de necessidade de retirada. Danos, nomeadamente os da Sé, logo na 1.ª Invasão, que transformou a catedral em cavalariça, profanando o templo, efetuando o saque a Leiria, bem como as pratas do santuário.

Pois Leiria, sabemo-lo bem hoje, sobretudo depois do bicentenário da Guerra Peninsular, momento também ele evocativo da Memória, que permitiu melhor conhecer os acontecimentos de há 200 anos, testemunhando-o as diversas monografias dedicadas à temática… de que Ricardo Charters de Azevedo, tem sido um ativo investigador.

Acontecimentos, de que são exemplo o massacre da Portela pela divisão do General Margaron, em 1808, e o Incêndio de 1811, na altura em que as tropas de Napoleão retiravam das Linhas de Torres Vedras, quando sabemos que os atos de violência perpetrados (roçando a vingança) foram sempre superiores na retirada.

Mas voltemos ainda ao título, de onde ainda não saímos, para explicar, afinal, todo o conteúdo do livro – de memórias, de cariz biográfico, portanto, mas igualmente monográfico.

Se é verdade que um título deve apontar para o conteúdo da obra, não são muitos os títulos como este, «Um bispo segundo Deus», que, em jeito de epíteto, sintetizam cabalmente neste expressão tudo quanto foi o bispo leiriense D. Manuel de Aguiar, por mais intensa que tenha sido, como foi, a sua vida. Título que sintetiza o homem, no seu todo, a criança nascida em Évora, em 8 de Dezembro de 1851, o adolescente entregue aos estudos e visitante assíduo do convento do Carmo e do mosteiro dos cartuxos de Aracelli, o jovem estudante da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, o pároco de Santa Cruz do Douro e de São Martinho de Soalhães, o bispo da diocese de Leiria, entre 1790 e 19 de Março de 1815, data em que adormeceria para se encontrar com Deus – pois assim crêem os cristãos, o que explica o cumprimento de Adeus/a Deus, até ao encontro com Deus, no Além, assim como o termo cemitério, antepositivo do grego koimétêrion que quer dizer ‘o lugar onde as pessoas dormem’, um lugar, portanto, de passagem na espera de um outro dia que virá .

D. Manuel fora o 3.º filho sobrevivo de oito, frutos do 2.º casamento de Pedro de Aguiar com Maria Nunes Dourada. Os outros cinco morreram ‘meninos’, revelando-se-lhes uma vida curta, testemunho das elevadas taxas de mortalidade infantil no Antigo regime.

Nascera no dia da Imaculada Conceição, de quem era devoto, sendo baptizado logo depois, recebendo como madrinha Nossa Senhora dos Remédios, crescendo amparado pelo ‘escudo da fé’, nas palavras deste seu biógrafo.

Desde menino era um cristão praticante, desculpem a expressão moderna desprovida de sentido nesse tempo, pois ser-se então cristão era agir, atuar segundo uma praxis. E o jovem Manuel fizera da sua infância e juventude um ‘laboratório de virtudes’, crescimento exemplar no trato e na educação.

Proibidas as profissões religiosas e as ordenações eclesiásticas, o jovem aspirante a eremita optou pelos estudos em Coimbra, cursando Teologia, na Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, desde 12 de Novembro de 1792, teria então 20 anos. Seria o próprio reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, ainda Manuel não havia completado os seus estudos superiores, a optar pela ‘milícia eclesiástica secular’ em desfavor da ‘obscuridade de um convento’, porque se num convento poderia lucrar a salvação própria, ‘no século a própria e a alheia’. Desvio do itinerário, mas não do destino que se manteve fiel no serviço aos outros, como forma de servir a Deus.

Em Coimbra, a par dos estudos, dedicava todo o tempo que podia ao exercício da caridade, ‘ora consolando e animando’ os infelizes no hospital, ora servindo os doentes e ajudando os enfermeiros nas limpezas das enfermarias, ora na aplicação de medicamentos.

Colocando-se a hipótese de a Academia o acolher em Coimbra, preferiu voltar à terra natal, já sacerdote. E daqui sairia rapidamente para a Abadia de Santa Cruz do Douro, donde iniciara o ofício de pároco, no bispado do Porto, de que era padroeiro D. Tomás Xavier de Lima, Visconde de Vila Nova da Cerveira, 1.º Marquês de Ponte de Lima e ministro de D. Maria I. Manteve-se na paróquia entre 1779 e 1785, onde a ‘ignorância da doutrina e a infrequência dos sacramentos produzira a devassidão dos costumes’, aí fundando três escolas: uma de primeiras letras, outra de latim, para meninos, e a terceira para a educação de meninas. E de Santa Cruz do Douro sairia para São Martinho de Soalhães (em Marco de Canaveses), abraçando a nova paróquia, como abraçara a anterior. Aqui, as mesmas práticas e os mesmos gestos de caridade, socorrendo os enfermos, vestindo e sustentando os pobres.

Em 1790, porém, por vacatura da Sé de Leiria, por morte de D. Lourenço de Lencastre, a 4 de março, D. Maria I apresentara D. Manuel, em 20 de março deste ano, certamente por indicação do Visconde de Vila Nova de Cerveira, padroeiro das paróquias de Santa Cruz do Douro e São Martinho de Soalhães, ministro da rainha que conhecia bem as qualidades do seu pároco. Ao apresentar-se à rainha, relata-nos o biógrafo, de que D. Maria lhe terá dito ‘- … não vejo que tenhais outro defeito, que o serdes ainda bastante moço’, ao que o ‘servo de Deus’ terá respondido: ‘- Esse, Senhora, defeito é que se vai curando todos os dias’, cura que todos experimentamos quotidianamente!

Já elevado à dignidade de Bispo, entrara a 31 de agosto na cidade, que D. Manuel abraçara, assim como Leiria o adotara, aqui permanecendo até 1815, até que adormecera na noite mais longa, na certeza de um reencontro a Deus.

A cidade testemunharia e alimentaria muitas memórias da sua ação: a memória da fundação do hospital novo da Misericórdia, construído entre 1798 e 1800, e inaugurado a 4 de agosto deste ano, no sítio da ermida de Nossa Senhora dos Anjos, na margem direita do Lis.

Aquando da mudança dos doentes, D. Manuel, com a sua própria carruagem, ajudaria a transportar os doentes; Memória ainda mantida no nome da instituição hospitalar!

A memória da sua ação enquanto provedor da Santa Casa da Misericórdia, aumentando os rendimentos da instituição e dando-lhe novo regulamento em 1 de Fevereiro de 1800.

A memória da instalação de um colégio para meninas no recolhimento de Santo Estêvão, com estatutos de 17 de Janeiro de 1803.

A memória do restauro do seminário diocesano, instalado provisoriamente no Paço Episcopal, no qual instituiu as cadeiras de história eclesiástica, teologia dogmática, teologia moral, instituições canónicas, juntando a cadeira de latim, existente na cidade, e as de retórica e filosofia racional, professadas no convento de Santo António os Capuchos… no mesmo período em que se iniciavam obras de reconstrução do seminário episcopal.

A memória da construção de um cemitério para evitar os enterramentos nas igrejas e, especialmente, na catedral, como era tradição, antecipando as leis de saúde pública que chegariam quase meio século depois, proibindo a realização de enterramentos dentro das igrejas, e que justificariam em parte a revolta popular da Maria da Fonte contra o governo cartista de Costa Cabral, em 1846. E, uma vez mais, D. Manuel de Aguiar fora o prelado exemplar, criando no cemitério a cripta dos prelados, que acolheria o seu corpo no sono da morte.

Obras que renovaram a cidade. Todavia, o sonho desmedido de Napoleão de domínio da Europa e de outras partes do mundo, empurraram os soldados franceses para o território nacional. Muitas das obras de D. Manuel de Aguiar seriam destruídas pela primeira invasão, em 1807-08, comandada por Junot, e, sobretudo, pela terceira invasão, sob o comando de Massena, entre 1810 e 1811. Leiria fora um dos palcos maiores de terror, tortura e sofrimento…

A atitude pacifista do bispo leiriense foi por vezes incompreendida. Mas D. Manuel tivera uma postura idêntica à de outros prelados, no cumprimento, aliás, das determinações do Príncipe Regente D. João, em decreto de 26 de Novembro de 1807, antes da saída (estratégica) para o Brasil (e não fuga como considerava a historiografia tradicional, ignorando um acordo secreto assinado em inícios de Outubro de 1807, entre Portugal e a sua velha aliança, a Inglaterra, que remontava a 1386). Seria, como foi, certamente esta a maneira de tornar menos pesada a presença do invasor, como podemos testemunhar nas palavras do próprio príncipe regente, pois a resistência «seria mais nociva que proveitosa, servindo só de derramar sangue em prejuízo da humanidade’, devendo, assim, evitar-se maiores represálias e atos de vingança perpetrados pelas tropas de Napoleão, cumprindo as ordens do soberano, cuja legitimidade nunca esteve em causa.

Todavia, Leiria não escapou à violência das tropas napoleónicas, que entraram na cidade a 5 de Julho para a reconquistar, quando havia sido liberta do jugo do invasor a 30 de Junho, pelo Corpo Militar Académico de Coimbra, reunido na cidade do Mondego, no contexto dos movimentos de oposição ao invasor, de revoltas populares e da constituição de juntas governativas e militares. Na Portela, uma lápide mantém a memória dos acontecimentos… memória que importa lembrar, porque, como dizia o velho Cícero, ‘a memória diminui… se não for exercitada’.

A cidade seria de novo libertada pelo Corpo Académico, que se aquartelou no Paço episcopal. Acontecimentos que se multiplicariam em número e gravidade na terceira invasão, onde a violência gratuita tomou lugar: violência (tortura, roubos, maus tratos, fomes, violações, mortes, etc…), tendo a população de Leiria e região reduzido drasticamente, como reduziu toda a população desde as Beiras até à 1.ª Linha, obrigada a abandonar as suas casas e a refugiar-se no interior da 1.ª Linha (fechada a 9 de Outubro de 1810) e a destruir as suas colheitas para que o inimigo não pudesse aqui encontrar alimento, quando o exército francês tinha alterado a forma de abastecimento, assentando então no contributo das regiões para a guerra. Ora é precisamente na destruição dos alimentos e na desertificação do território que assenta a tão conhecida política de Terra Queimada, decretada por Arthur Wellesley, então Visconde de Wellington, estratégia que integrava a defesa do território nacional a juntar ao sistema defensivo que ficaria conhecido por Linhas de Torres Vedras. Permaneceram os velhos, inválidos e doentes, incapazes de se deslocarem, onde os bois e os carros não existiam, uma vez pilhados por ambos os exércitos… Velhos, inválidos e doentes, muitos deles encontrados sem vida quando as populações regressaram, o que fizeram ao longo de largos meses, a partir de finais de Março de 1811, altura em que D. Manuel de Aguiar acompanha o seu rebanho, antecipando-se a muitas das sua velhas, pois regressou a 30 de Março de 1811, para reconstruir uma diocese em ruínas, carente de pessoas, tanto quanto estas careciam de alimentos, quando uma epidemia ceifava vidas, mais do que a guerra (tifo), sobretudo no Inverno e primavera de 1811.

Uma palavra mais para o biógrafo que, segue outros biógrafos de D. Manuel de Aguiar, discutindo, porém, os argumentos, concluindo acerca da veracidade ou inverosimilhança das informações que se lhe apresentam, interrogando as fontes permanentemente, num exercício de crítica das fontes, que D. Manuel não necessitava de um panegirista acrítico para que a sua figura saísse enaltecida.

 A D. Manuel de Aguiar, já em São Martinho de Soalhães, os fregueses da paróquia o apelidavam de ‘o abade santo’ ‘nesta parte da vinha do senhor’. E em todas as partes da vinha do Senhor, de Évora ao bispado do Porto, em Santa Cruz do Douro e em São Martinho de Soalhães, e daqui para a Diocese de Leiria, D. Manuel de Aguiar soube ser ‘um bispo segundo Deus’, pois se é certo que esses tempos lhe foram adversos, bem como ao seu rebanho, negando-lhe os meios de que necessitava para reerguer a diocese, não lhe faltou, porém, o engenho e a arte.

Dois dias depois de completarem 200 anos da sua morte, as Memórias para a vida de D. Manuel de Aguiar, agora editadas, testemunham a Memória Viva do prelado leiriense na atualidade.Estão pois de parabéns os editores a Textiverso e a Santa Casa da Misericórdia de Leiria, nas pessoas, respetivamente, do Eng.º Carlos Fernandes, e do Dr. Fernando Lopes, assim como do Eng.º Ricardo Charters d’Azevedo, pelo precioso mecenato, garante da edição, por nos trazerem de novo à estampa esta obra de leitura obrigatória por quem se interessa pela história de Leiria e da sua diocese, pela história da Igreja em Portugal, pela Guerra Peninsular e, particularmente, pela figura de D. Manuel de Aguiar, verdadeiramente ‘um bispo segundo Deus’, expressão que sintetiza de modo feliz a extensa biografia deste bispo de leiriense.

 

Auditório da Santa Casa da Misericórdia de Leiria, 21 de março de 2015

Carlos Guardado da Silva