A investigação que hoje aqui vos apresento é o resultado do meu trabalho de Mestrado, com defesa de dissertação em Setembro de 2011, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientação do Doutor Carlos Camponez e co-orientação do Doutor Saul Gomes. Uma experiência enriquecedora e que em muito contribuiu para a minha valorização pessoal e para o conhecimento da história dos primórdios do século XX.
Ao longo de dois anos conheci um conflito que marcou decisivamente a vida das nações no século XX. Neste mês de Abril comemoram-se os 96 anos da batalha de La Lys. Permitam que dirija uma palavra de apreço e reconhecimento a todos os militares aqui presentes pois sei que estão e estarão sempre preparados para entrar novamente nas trincheiras, na linha da frente das guerras.
O exército português é um motivo de orgulho para a Nação, porque sempre lutou contra o inimigo e muitas vezes também contra a falta de apoio nas vossas missões. A Grande Guerra de 1914-18 foi disso exemplo. Partiram para lutar contra tantos inimigos mas sobre as piores das condições humanas no terreno, com a agravante do Estado Português não vos ter cumprido tantas vezes com a palavra. Daí o desfecho triste da batalha de La Lys, com homens abandonados, até pelos próprios aliados.
Hoje, neste espaço militar da nossa honrosa cidade, apresento este livro que homenageia acima de tudo os muitos leirienses que deixaram os seus pais, esposas, filhos, restante família, bem como seus amigos. Deixaram tudo para que em muitos dos casos quase nada retornar, a não ser o cadáver, o ferido ou o homem marcado profundamente pelo horror da guerra. Esta guerra das guerras foi mesmo um tormento para os combatentes.
Este livro “Jornalismo Leiriense e a Grande Guerra” vai muito além da análise jornalística do conflito. Retrata em vários capítulos o Portugal de então, da débil Monarquia à implantação da República; apresenta as origens do conflito e os primeiros repórteres; Leiria no final do século XIX e início do século XX; a análise da imprensa de Leiria da época e finalmente o objecto principal do estudo: Capelanias Militares e a luta de José Ferreira de Lacerda por esta causa na Grande Guerra e a Crónica de guerra que este sacerdote-jornalista fez publicar com os seus relatos de pormenor directamente das trincheiras, ao lado dos seus soldados valentes.
Esta publicação pode estimular o leitor para a análise, contextualizando as épocas mas também as motivações dos acontecimentos. Não se pode falar da Grande Guerra sem se perceber o século XIX assim como também não se pode analisar as transformações históricas de Leiria do início do século XX sem irmos beber às várias mutações de relevo da cidade do seu século XIX.
Mas, falando do conflito dos conflitos de 14-18, para se perceber todo o contexto das origens da Grande Guerra é necessário uma análise exaustiva a várias problemáticas do mundo. O capitalismo e as disputas de poder entre potencias, seriam assunto demasiado extenso para aprofundarmos agora. Quanto a Portugal, será forçoso irmos até ao final do século XIX, ao momento da nossa história em que muito se falava e delineava a mudança do regime monárquico para o republicano. Para entendermos a história é forçoso andarmos entre século e século, entre Portugal e o mundo, recuando e avançando no tempo, para uma melhor percepção dos acontecimentos.
O final do século XIX português trouxe à discussão pública e política uma percepção crescente da necessidade de existir uma alternativa governativa, afastando a Monarquia dos centros de decisão dos destinos do País e dos portugueses. Crescia cada vez mais uma corrente republicana que colocava em causa a considerada cansada e duvidosa Monarquia, num Portugal que se preparava para o alvorecer de um mundo moderno.
Para além dos republicanos, a Carbonária e a Maçonaria estiveram na linha da frente nas estratégias concentradas para a mudança do paradigma governativo português.
No dia 1 de Fevereiro de 1908, D. Carlos I e o seu filho herdeiro Luís Filipe, foram assassinados no Terreiro do Paço, em Lisboa. O regicídio revelou-se determinante para o virar de página da Monarquia.
Entretanto, os intelectuais da época começam a difundir os seus argumentos em favor da criação de uma República portuguesa. Muitos publicaram as suas ideias para inverter ou modificar um regime que era cada vez mais considerado problemático e nada vantajoso para o povo.
A 4 de Outubro de 1910, desencadeou-se uma iniciativa republicana que viria a mudar os rumos histórico-políticos de Portugal. Foi bombardeado o Palácio das Necessidades, local onde se encontrava o rei e, no Tejo, instalaram-se unidades navais, consideradas indispensáveis para o coroar de êxito das operações, mas cujo principal efeito consistiu em amedrontar os defensores da Monarquia.
No dia 5 de Outubro de 1910 foi instaurada a República Portuguesa, proclamada nos Paços do Concelho de Lisboa. O regime monárquico português foi derrubado do poder, juntamente com as suas instituições e as suas figuras. O desfecho indesejado da revolução republicana ditou ao último rei português, D. Manuel II, um exílio em Inglaterra.
Depois da instauração da República, foi constituído um governo provisório que teve como presidente Teófilo Braga, mantendo-se em funções até 24 de Agosto de 1911, data em que foi aprovada a nova Constituição.
Os primeiros tempos da República Portuguesa não trouxeram bonança aos novos governantes do País. Viveram-se tempos difíceis e confusos, resultando num período de grande convulsão. Surgem revoltas contra um regime que demonstrava também ele ser incapaz de trazer rápidas melhoras para a situação do País, colocando-se cada vez mais em causa a República, enquanto alternativa política.
O Governo Provisório de Teófilo Braga foi dos que mais estabilidade política obteve, conseguindo legislar matérias de grande importância para o País, tais como: a Lei da Família, a Lei do Registo Civil, a Lei do Divórcio e a corajosa Lei da Separação do Estado com a Igreja, que viria a ditar mais tarde uma oposição declarada do Vaticano contra o Estado Português.
Entretanto, a Lei da Separação do Estado com a Igreja, aprovada em 20 de Abril de 1911, pelo então Ministro da Justiça, Afonso Costa, viria a ser determinante nas variadíssimas transformações que existiam em Portugal. Veremos como esta separação colocou tanto entrave na forma de estruturar e de se relacionarem as organizações do Estado e do Clero, apenas ultrapassadas em 1917, já em plena Grande Guerra, com o reatamento parcial das relações entre o Clero e o Estado e entre o Vaticano e Portugal.
A Grande Guerra teve origem no dia 28 de Junho de 1914 em Sarajevo, com o assassinato de Ferdinand, o duque que era o herdeiro do trono Austro-Húngaro, aquando da sua visita à Sérvia. O conflito bélico mundial, conhecido como a Guerra das Guerras, veio ditar mais de quatro anos de sofrimento para as nações do mundo, especialmente aquelas que mais se envolveram nas hostilidades, incluindo Portugal nessa lista.
Embora Portugal se considerasse oficialmente neutral, o certo é que correspondeu positivamente no dia 13 de Agosto de 1914, a uma solicitação da Inglaterra para participação no conflito. Se por um lado, em Portugal havia uma relação cúmplice com os ingleses, por outro, existia também uma corrente que se manifestava declaradamente contra a Inglaterra, considerada como o cerne de todos os problemas nacionais, questionando a solidez e os fundamentos de uma aliança política segura, como muitos apregoavam.
A 22 de Julho de 1916 foi criado o Corpo Expedicionário Português (CEP), preparando para a guerra da Flandres a Divisão de Instrução.
Portugal já participava na guerra, numa primeira fase, na defesa das colónias em África, com o envio de forças expedicionárias para aquele Continente, a 14 de Agosto de 1914, depois de conhecidas as intenções dos alemães em desejarem apoderarem-se de Angola e Moçambique.
A 30 de Janeiro de 1917 partiu do Tejo, a bordo de três vapores dos aliados ingleses, o primeiro grupo de militares do CEP. Após uma viagem difícil, onde imperou o medo e a dúvida nos soldados portugueses, o CEP desembarca a 2 de Fevereiro em Brest, seguindo depois para a região de La-Lys.
A chegada das tropas portuguesas começa a ser documentada pela imprensa mundial da época, incluindo no imenso rol de jornais, o New York Times (edição de 11 de Março de 1917).
Aos portugueses, esteve destinado, numa fase inicial, um local resguardado dos combates mais duros.
Os militares portugueses estavam de forma limitada no conflito, com imensos condicionalismos face aos seus congéneres. Com o evoluir do tempo começam a ter um maior envolvimento na guerra. O governo português e o Ministério da Guerra, em todo o tempo que o CEP está em França, apoiam de forma muito condicionada a sua acção militar. Vários tipos de pedidos de reforços seguem para Portugal.
Medina referiu que os “efectivos dos batalhões estavam reduzidos a metade, a falta de oficiais é imensa. A situação é difícil e perigosa, sendo impossível assim de cumprir com decoro as acções do exército português e a missão confiada, acrescendo na circunstância muitos homens esgotados fisicamente, moralmente deprimidos». (Medina, 1993: 274; Tomo 1).
Agrava-se o panorama da guerra no começo de 1918, quando a Rússia assina a paz e a Alemanha ganha imediatamente mais força, lançando mais divisões na frente francesa.
No dia 9 de Abril de 1918, às 04h15 da madrugada, os alemães, numa frente de 18 quilómetros, invadem uma zona que tem o sector português como alvo. O desastre acontece, com uma humilhação das tropas portuguesas no campo de batalha.
A descrição da batalha de La Lyz é elucidativa em várias publicações da época, retratando o fim inglório dos soldados portugueses. Significou a morte de muitos soldados portugueses, num ambiente e cenário de guerra trágica, com as tropas lusas a serem surpreendidas pela potência alemã que estava sabedora da intenção de retirada portuguesa da Flandres naquela madrugada.
A grande vitória dos aliados contra o exército alemão aconteceu na batalha de 18 de Julho de 1918, com uma influência determinante da vinda do exército americano.
A 11 de Novembro de 1918 é assinado o armistício. As populações estão enfraquecidas, propagam-se doenças como a gripe espanhola, as taxas de natalidade baixaram pelos militares mortos que não regressaram. Especialmente as nações europeias, incluindo Portugal, conhecem uma estagnação no seu crescimento económico e até demográfico. O conflito provocou muitos mortos e um número vertiginoso de feridos.
«O conflito sacrificou a Europa. Os combates fizeram mais de 8 milhões de mortos e 6,5 milhões de inválidos. A Alemanha e a Rússia foram as mais atingidas, cada uma com 1,7 milhões de mortos. A Áustria-Hungria e a França registaram, respectivamente, 1,45 e 1,35 milhões, e o Japão e os Estados Unidos 300.000 e 100.000 mil mortos.» (Carol; Carrigues; Ivernel, 2011: 336).
Na frente da batalha estiveram muitos militares de Leiria. Todo o distrito está intimamente ligado a esta hecatombe mundial. Até no campo artístico o concelho de Leiria deu ao CEP o único artista português que Norton de Matos autorizou de forma oficial. O Ministro da Guerra conferiu a Adriano de Sousa Lopes o registo da guerra através do desenho, pela técnica água-forte. Muitas das suas obras estão actualmente no Museu Militar, em Lisboa, sendo os seus registos dos mais importantes como forma de se perceber como foi o desenrolar do conflito e o quanto os portugueses sofreram na batalha.
Durante o conflito, na rectaguarda do Pe. José Lacerda, no tempo em que esteve no conflito, o portomosense Júlio Pereira Roque deu apoio na redacção de O Mensageiro. Para além de lhe orientar o jornal que ficara em Portugal foi este Júlio Pereira Roque de Porto de Mós, conhecido como JUPERO, que muito contribuiu para o alcance do restauro da Diocese de Leiria.
Em 1921, desejou-se homenagear os combatentes portugueses da Grande Guerra. Uma decisão do governo português permitiu trazer para Portugal uma simbologia importante da memória do conflito. Tanto em França como em África, existiram mortos que não se conseguiram identificar. Muitos foram sepultados nesses países, mas, dois soldados desconhecidos, um da Europa (França) e outro de África (Moçambique), vieram para a sua Pátria.
Os corpos dos dois Soldados Desconhecidos chegaram em simultâneo a Lisboa, a 6 de Abril de 1921. A partir dessa data nunca mais se vieram a separar. Estiveram três dias na capital portuguesa, colocados no átrio do Parlamento, seguindo depois para a vila da Batalha, concelho de Leiria.
Chegados a território leiriense no dia 9 de Abril de 1921, os dois soldados seguem para a Batalha onde são colocados num só túmulo, na Sala do Capítulo do Mosteiro Santa Maria da Vitória.
Ao entrar no conflito da Grande Guerra, os batalhões portugueses incluíram nos seus contingentes muitos homens de Leiria. Muitos destes soldados e oficiais não chegaram a regressar porque tombaram sob as armas de um conflito que dizimou milhões de vidas.
Juntamente com os militares portugueses, também seguiram os repórteres de guerra e ilustradores/pintores, que elaboraram documentos preciosos que registaram a hecatombe, os momentos de desespero, os medos e hesitações, mas também as vitórias e o desejo dos portugueses voltarem à sua Pátria.
Foi a Grande Guerra que trouxe alterações ao modelo da cobertura de conflitos armados. Em 1914, o jovem Hermano Neves, com 29 anos de idade, seguiu para França, para fazer em regime de exclusividade a cobertura dos acontecimentos. Mas, chegado a Paris, não conseguiu acompanhar de perto o conflito pelas imensas restrições que eram impostas no terreno, regressando a Portugal dois meses depois. Foi o jornalista Silva Graça, do jornal O Século, que viria a conseguir a proeza de acompanhar com muita proximidade a Grande Guerra.
A região de Leiria, no tempo da guerra, esteve servida por vários órgãos de comunicação social, cinco com ideologia política do regime republicano e um do regime monárquico. Todos acompanharam o conflito com a notícia, crónica e textos de opinião.
Leiria Ilustrada - (12-01-1905 – 30-12-1916)
O Radical - (02-03-1911 – 12-04-1917)
O Anunciador - (19-09-1915 – 11-10-1931)
Jornal de Leiria - (07-01-1917 – 31-07-1919)
Voz Infantil - (04-09-1918 – 08-02-1919)
O Mensageiro - (07-10-1914 – encerrou em 2013, com 99 anos de publicação)
No tempo da Guerra não existia Diocese em Leiria. Como forma de fomentar um movimento para restauro diocesano, a 7 de Outubro de 1914, José Lacerda funda o jornal O Mensageiro, conseguindo atingir o objectivo em Janeiro de 1918.
Entretanto, a Grande Guerra, na zona da Flandres, levou-o a voluntariar-se para cumprir a função de capelão militar. Assim aconteceu, de 2 de Maio de 1917 até 21 de Setembro de 1917. No tempo em que permaneceu em França escreveu crónicas de guerra, quase todas redigidas no cenário bélico, sendo publicadas no jornal O Mensageiro, no período 9 de Maio a 29 de Novembro de 1917, caso pouco comum na imprensa regional portuguesa da época.
A sua acção como capelão militar foi importante. O interesse pelos soldados e a necessidade dos valores cristãos, a assistência na doença ou morte, fizeram deste voluntário de guerra um protagonista destacado.
Outra das funções destacadas de José Lacerda foi o de cronista do conflito, enviando para O Mensageiro os seus textos que descreviam o que se passava na Flandres, especialmente as notícias e os relatos das experiências difíceis da Divisão do 7 de Leiria.
A temática da guerra está presente desde a primeira edição de O Mensageiro mas a morte dos portugueses em França começa a ocupar as páginas de O Mensageiro, logo na edição 122, de 31 de Janeiro de 1917. «O sangue português já correu no solo de França, na actual campanha».
As capelanias militares foram um dos objectivos de maior importância para o sacerdote-jornalista. Para se perceber toda a sua dedicação a esta causa é necessário recuar até 15 de Julho de 1916, altura em que o governo inglês lança o convite a Portugal para integrar o conflito, sublinhando o texto inglês que seria imperioso que o CEP fosse acompanhado por capelães militares. Este facto levantava mais uma problemática porque se promovia no nosso País a separação entre a Igreja e o Estado Português.
Ainda Portugal não participava na Grande Guerra, já o Pe. José Lacerda preparava malas para se deslocar para França como capelão militar. Para se ter uma noção do seu sentimento de antecipação, a Grande Guerra teve início em Agosto de 1914 mas logo a 30 de Outubro desse ano, já o Pe. José Lacerda oferecia a sua disponibilidade dos seus serviços ao então Ministério da Guerra.
O Pe. José Lacerda, convencido que Portugal integraria a guerra no seu início, envia desde logo o requerimento ao governo para que seja integrado no Exército como capelão militar, manifestando a importância desta figura nos campos de batalha.
«Exmo. Senhor General Comandante da 7ª Divisão: Pela leitura dos jornaes e pelos preparativos que se notam em Leiria, vae o nosso valoroso exército seguir dentro em pouco para os campos de batalha. É de crer que à semelhança dos exércitos de todas as nações beligerantes o nosso também tenha a acompanhá-lo capelães militares»[1].
Só no dia 2 de Maio de 1917, partiu o Pe. José Lacerda para França, com o objectivo da realização de uma grande vontade em cumprir a função de capelão militar na Grande Guerra.
O Pe. José Lacerda chegou a Paris no dia 9 de Maio de 1917 e segue imediatamente para a zona da Flandres.
A sua presença na Flandres foi positiva mas, mesmo assim, bem ao seu estilo inconformado, não fez uma campanha absolutamente consensual. Houve alguns conflitos de relacionamento com o capelão-chefe (Pe. José Patrocínio), sendo mesmo alvo de um rigoroso processo disciplinar. Um dos motivos deste desentendimento era a necessária presença de mais capelães na Grande Guerra e o facto de não existirem esforços do seu superior para usar os seus conhecimentos e influência nas relações com Lisboa, de forma que o Parlamento português autorizasse um aumento do número de padres entre as tropas portuguesas.
Durante a guerra desempenhou outra função importante. Um jornal regional acompanhou a guerra através da crónica, de forma atípica, através do punho do sacerdote-jornalista. Entre 4 de Maio e 21 de Setembro de 1917, escreve, para além do seu pormenorizado diário de guerra, 31 textos que viriam a ser conhecidos como Crónicas da Guerra / Em Campanha, publicados semanalmente até 29 de Novembro desse mesmo ano, no seu jornal O Mensageiro.
O sacerdote e jornalista José Lacerda descreve pormenorizadamente os horrores da guerra e as problemáticas em volta dos soldados, a falta de condições, a religião junto dos militares, levando o leitor a imaginar o palco da Flandres, incluindo aqui os sons das metralhadoras, dos canhões e dos aeroplanos. Toda esta realidade daquele tempo difícil é descrita na sua óptica de capelão mas também de cronista, não esquecendo a visita dos governantes portugueses naquele País.
Outro aspecto curioso é a transmissão de emoções do que vivia na Grande Guerra. O Pe. José Lacerda chega mesmo a escrever sobre as causas e consequências da artilharia portuguesa nas linhas do inimigo, nos gritos que ouvia, sentindo de forma profunda a tristeza e o choro.
No contexto do jornalismo regional da época, ter um correspondente de guerra que enviasse todas as semanas crónicas sobre o conflito era um facto pouco comum e, na maioria dos casos, economicamente irrealizável.
No conjunto de títulos de imprensa de Leiria do período que compreende a Grande Guerra, apenas o semanário católico O Mensageiro se destacou com o acompanhamento integral do conflito mundial, primeiro com as notícias da guerra (até a partida do Pe. José Lacerda) e depois com as crónicas, enviadas de França pelo sacerdote e jornalista.
Para se ter uma noção do cenário horrível em que o Pe. José Ferreira de Lacerda operava, juntamente com as tropas portuguesas, destaco alguns dos momentos mais marcantes das suas crónicas.
«Vemos mulheres a limpar as carruagens, mulheres a dirigir serviços, mulheres a trabalhar e todas elas cobertas de luto! Que sensação! Debaixo daqueles vestuários tão tristes, quantos corações não sentirão a perda de ente queridos! Não se queixam. Ocupam longe das linhas os logares, que os heróicos soldados da França ocupavam antes de irem cumprir o seu dever, defendendo a Pátria invadida pelo secular inimigo.»
«Às 7 sai um comboio de soldados para o front e eu quero vê-los partir. Vou para a estação. Estugem os vivas. Os soldados beijam as mães, as irmãs e as noivas. Quem sabe se não será aquele o ultimo beijo. Não vejo lágrimas. Apenas um soldado se abraça à mãe e a irmãzita dos seus 8 anos. Vejo-lhe lágrimas nos olhos, mas sorrisos nos lábios. Ah incitamentos dos que ficam, há promessas dos que partem. O comboio vai repleto de soldados.»
«Fui á primeira linha, vendo aí, a 100 metros, as linhas alemãs. Não é feio, mas é perigoso. Os nossos soldados são finos e estão suspirando por entrarem em combate. Percorri tudo e se Deus quiser lá irei bastas vezes.»
«Daqui a pouco os boches são capazes de nos cumprimentar com os gazes asfixiantes, repetindo as proezas das noutes anteriores. Temos de dormir de mascara ao pescoço.»
«Eu nem quero que me lembre o que tenho presenciado! Mal diria eu quando falava sentado no escritório de certo advogado, sobre os horrores de um combate, que viria a presenciar esses horrores! É a guerra ao vivo, ao natural, que aqui se sente.»
«Foi feito prisioneiro um soldado aí do 7. Conduzido para as trincheiras alemãs, começa a ser interrogado. Cai uma granada nossa próximo do local, os boches fogem, e ele, cumprida a formalidade, vem para o seu posto, atravessando o arame e chegando todo roto!»
«Choramos sem querer! E, por vezes, temos de voltar a cara para que nos não vejam as lágrimas! Se eu escapo, não lhe digo nada! Os heroes estão nos lares, os outros estão a honrar Portugal. Que bons soldados nós temos!»
«Se vissem morrer um homem com gases, fugia! Que barbaridade! Pedi a um médico inglês que desse morfina a um moribundo para o não ver sofrer mais.»
«Não se conte que a guerra venha a acabar pelas armas. Só quem vê isto é que sabe. Há-de acabar pela luta económica. Os alemães serão vencidos neste campo. Pelas armas isto nunca terminará, por causa desta maldita guerra de trincheiras. Para se avançar um quilómetro, sacrificam-se milhares de homens, para no fim se esbarrar com outras barreiras piores. Isto não é guerra, é selvageria e canibalismo. Nós não saímos das trincheiras.»
«O nosso soldado é valente. Ao vê-los caminhar alegres para a morte, rio-me com eles, mas sofro tanto ou mais do que eles quando os vejo feridos e, ao sepultar algum, choro por tal forma que me chego a envergonhar.»
«Meu amigo, não sei se aí voltarei, porque eu passo os mesmos perigos que eles, mas se eu não voltar, ao passares próximo de um soldado que tenha estado nas trincheiras, descobre-te porque é um herói. Mal tu sabes o que ali se sofre, os momentos que ali se passam.»
«Tudo serve para matar. Estamos independentes dos ingleses, o que não é sem tempo. Vamos por conseguinte ter liberdade de movimentos, se liberdade pode haver nas trincheiras.»
«Assisti agora à saída dos nossos soldados para o cortiço. Quantos regressarão?»
«O 7 tem sido muito experimentado. Tenho pena dos que morreram, mas mais tenho dos que ficaram prisioneiros.»
«Agora sentem-se muito os morteiros de trincheiras; qualquer experiência dos boches, que estão impossíveis de aturar. Isto cada vez está mais sério. Vou ver se sou necessário, pois os boches estão furiosos com os morteiros. Não estão sossegados e o pior é que lhes vamos sentindo as fúrias. Aí devem horrorizar-se com as baixas. Aqui admiramo-nos como são tão poucas.»
«A guerra continua no mesmo estado. O canhão não cessa de troar. Ontem quase se podia ler com o reflexo dos tiros.»
«Tiros, gazes, trincheiras, morteiros, arames farpados, gritos, dores, homens feridos, contorcendo-se com dores! Eis o que vejo! Pelas estradas, filas intermináveis de automóveis conduzindo metralha, balas, espoletas! Nos ares, aeroplanos carregados de bombas que, quem sabe onde irão lançar o luto, a morte! No subsolo, minas, dinamite! E isto no século XX! Nas ambulâncias, nos hospitais, nos comboios da Cruz Vermelha, nos automóveis, feridos, soldados sem sentidos, lívidos, cadavéricos, sentindo dores, deixando ver no embaciado do olhar um vago sonho de felicidade, se um dia vão abraçar os seus! O céu, carrancudo e gotejando chuva, parece condenar tudo isto. Quando chegará o dia de as armas se ensarilharem no cimo das trincheiras, das bandeiras brancas adejarem e dos soldados saltando se abraçarem no terreno de ninguém, onde os cadáveres, agora insepultos, servem de pasto aos ratos e vermes?! Que horrores os desta guerra!»
As suas crónicas são um testemunho real dos acontecimentos da Grande Guerra. Foi este José Ferreira de Lacerda que apoiou muitos dos portugueses, muitos dos homens que da sua cidade partiram, alguns para não mais voltar.
Este livro é uma homenagem a todos os combatentes de 14-18 e uma evocação a este sacerdote-jornalista. Ao ser apresentando neste espaço militar torna-se também um sinal de estímulo e de apreço para com todos os que aqui se formam para se preparem a qualquer momento para ingressar as filas da morte. E não podem escolher o dizer não. O dever é o código de conduta de um militar. Para todos os que integram esta casa, de oficiais aos valentes soldados, a minha admiração e agradecimento por tudo o que por nós fazem, também pelo que poderão vir a fazer.
Obrigado.
Joaquim Santos
Leiria, 5 de Abril de 2014, cerimónia da apresentação pública do livro “Jornalismo Leiriense e a Grande Guerra”
[1] Caixa 1243, requerimento do Pe. José Ferreira de Lacerda, 4 de Outubro de 1914, pedindo que integrasse a lista dos capelães militares do CEP, Arquivo Histórico-Militar, 1ª Divisão, 35ª secção, pretensões e requerimentos.