Sob o signo do Sete

«Fontes de Guerra, Fontes de Paz», de Jaime Martins, para além de ser uma belíssima história de amor passada aqui à nossa porta, é também o relato do percurso de um homem que, apanhado nas contradições de uma guerra sangrenta e absurda, como todas as guerras, se deixa transformar interiormente, optando por desbravar os caminhos da paz. E é também um pouco da história de uma cidade e de uma região – Leiria - que recuperam com esforço próprio das atrocidades dessa mesma guerra.
Desenrolando-se num período muito conturbado da nossa história, o das Invasões Francesas, este romance está pejado de simbolismos, como se poderia esperar de uma obra que aborda com alguma profundidade a filosofia maçónica.
Nessa linha, a análise que vos exponho a seguir começa por vos apresentar o número sete.
O SETE é considerado o número da perfeição, o número divino. Une simbolicamente o céu e a terra, o espiritual e o material, o masculino e o feminino, as trevas e a luz. Representa um ciclo completo de tempo. A própria existência humana pode ser decomposta em etapas de sete anos.
O sete está por todo o lado. Sete são as cores do arco-íris, sete são as notas musicais da escala diatónica, sete são os dias da semana. Sete eram as maravilhas do mundo antigo e sete são agora as do mundo moderno.
O Génesis fala dos sete dias da Criação. Na religião cristã, sete são as virtudes, sete os sacramentos, sete os pecados capitais, sete os dons do Espírito Santo.
Muitos são os provérbios e expressões populares que incluem o número sete. De algo bem guardado, se diz que está «fechado a sete chaves». Fazer diabruras diz-se que é «pintar o sete». Quando há algo muito disputado, diz-se que «são sete cães a um osso». De alguém com maus modos, diz-se que fala «com sete pedras na mão». Os gatos têm «sete fôlegos (ou sete vidas)», a raposa tem «sete manhas» e a mulher – diz o povo - tem manhas de sete raposas.
Uma antiga superstição afirmava que «a sétima de sete filhas é feiticeira e o sétimo de sete filhos é lobisomem». E que estes corriam numa só noite «sete vilas acasteladas».
Sete é um número mágico e sagrado em mitos, contos de fadas e na crença popular.
Basta relembrar, que sete eram os anões da Branca de Neve, sete eram os cabritinhos que o lobo tentou comer, o alfaiate valente matou sete moscas e sete eram as cabeças da Hidra (a bicha das sete cabeças).
Mas, simbolicamente, o sete indica igualmente «mobilização para levar adiante uma missão». Isto é, torna-se na centelha que despoleta a acção das narrativas, sejam elas reais ou ficcionais, como é o caso deste romance.
E nesta obra são sete os personagens que se destacam, como sete são os capítulos em que está organizada.
Vamos então aos personagens, usando algumas das classificações de Propp: protagonista, par amoroso, antagonista, adjuvante e coadjuvantes. Os seus nomes são: Jacques de Mingot, Elvira, Zé Moleiro, doutor Tiago, comandante James Stone, padre Bernardo e D. Manuel de Aguiar.
O protagonista é Jacques de Mingot, um oficial do exército francês que se afirma pelo seu idealismo e rectidão de carácter, contrariando os desmandos dos seus próprios subordinados contra as populações e que por isso é apreciado. Os aldeãos chamam-lhe, a propósito, «Capitão Mão Leve».
Elvira é o par amoroso. É uma jovem camponesa bastante improvável (ou se calhar, rara), que aprendeu a ler e se lança, de forma voluntariosa, nos braços do amor. É ela que, num primeiro momento, salva Jacques de uma morte certa.
O antagonista é Zé Moleiro, trabalhador, mas fanfarrão e amigo dos copos e que, disputando Elvira, tenta prejudicar Jacques.
Tiago é o adjuvante. É um médico abnegado cujas secretas influências (pertence à Maçonaria) salvam a freguesia das Cortes dos excessos das tropas ocupantes – sejam elas francesas ou inglesas. Recebe Jacques em sua casa, nas Fontes, trata dele, apoia-o na sua relação com Elvira, tira-o da prisão.
O Lugar-tenente James Stone é comandante das tropas inglesas, também ele maçom. Reconhece a boa índole de Jacques, trata de apurar a calúnia que contra ele levantara Zé Moleiro e devolve-o à liberdade. Acaba por ter um fim trágico.
O padre Bernardo é irmão de Elvira e braço direito do bispo de Leiria, D. Manuel de Aguiar. Casa a sua irmã com Jacques. Também é maçom e tem problemas por isso.
D. Manuel de Aguiar é uma personagem histórica, responsável pela construção do Hospital da Misericórdia, que hoje ostenta o seu nome.
Após as invasões francesas, ao regressar à cidade, encontrou um panorama desolador e decidiu liderar a sua reconstrução. A esse propósito, relata Afonso Zúquete, na sua biografia «Um bispo segundo Deus»:
«Os franceses tinham incendiado o paço episcopal, o convento de Sant’Ana e o recolhimento de Santo Estêvão; estava arruinado o seminário, a Sé fora totalmente saqueada, e o hospital, além de vários estragos materiais, perdera todos os seus títulos de renda. Nas freguesias não era menor a desolação: havia órfãos e viúvas a cuidar, doentes e feridos a tratar, muita miséria e desgraça a remediar. Intrepidamente, o Prelado lançou-se à obra de reconstrução e reparação de tanta ruína, fixando a sua residência na vizinha freguesia das Cortes».
Para estes trabalhos, o Bispo contou apenas com os rendimentos disponíveis do bispado, reduzindo ao mínimo as suas despesas, e com uma parte do subsídio britânico, então concedido a Portugal. Até à sua morte, em poucos anos, conseguiu reparar os estragos da guerra na sua quase totalidade. Morreu em 1815.
O processo de reconstrução da cidade é uma das várias histórias paralelas do romance de Jaime Martins.
Apresentadas as personagens, vamos agora aos capítulos - sete, como disse antes, com subtítulos fortemente simbólicos. Analisemo-los.
Capítulo 1 - A Caverna
Na antiguidade, a caverna sempre foi considerada como sendo um lugar sagrado, representando o ventre da Mãe-Terra, onde ocorrem as transformações e os renascimentos, e a profundidade da natureza interior. Simboliza tanto o útero como o túmulo, a passagem ascendente para a vida e a descendente para a morte, posto que é a morada das Moiras e Erínias (ou Fúrias) que tecem o destino.
Abandonado como morto, após ter sido baleado durante uma escaramuça, é numa caverna, no vale entre a Abadia e o Calvário (uma Loca da Moura ficcionada) que o protagonista renasce para a vida e desperta para o amor.
Capítulo 2 - As Fontes
A fonte é um símbolo feminino, materno, de origem da vida. É no lugar das Fontes, onde mora Elvira, que Jacques, o protagonista, recupera fisicamente e se aproxima definitivamente dela e o amor entre ambos se consolida.
Capítulo 3 - O Convento dos Capuchos
É, no romance, o quartel-general das tropas inglesas em Leiria e, mais importante para a narrativa, uma prisão. Simbolicamente, a prisão é considerada como uma recusa ao processo de individuação. É o grande revés do protagonista.
Desiludido com a vida militar, Jacques está inclinado a adoptar como sua a terra que tão bem o acolheu, mas é acusado de ser um espião francês e detido pelos ingleses. O protagonista corre o risco de ser condenado à morte, não fora a intervenção do amigo Tiago.
Capítulo 4 - A Liberdade
A própria palavra tem uma carga simbólica tão evidente que não precisa de ser explicada. É o estado ideal do indivíduo, sem outras amarras que as da consciência, nem outras obrigações que as que cada um assume perante si e perante os outros.
De novo nas Fontes, Jacques acerta o casamento com Elvira.
Por outro lado, estando a cidade de Leiria já liberta dos franceses, D. Manuel de Aguiar organiza a reconstrução.
Capítulo 5 - A Nova Vida
Conforme sugerido, há uma mudança de estado para alguns dos personagens referidos antes.
Jacques casa com Elvira. Por sugestão do doutor Tiago, decide aderir à maçonaria, sendo o ritual descrito ao pormenor.
Aquando da desmobilização das tropas inglesas, James opta por ficar em Portugal, indo trabalhar para a fábrica Stephens, na Marinha Grande. Também ele se apaixona por uma portuguesa.
A cidade recupera, sob a orientação do bispo.
Capítulo 6 - O Desaparecimento
Tal como o título indica, há um volte-face nas várias linhas narrativas. A Inquisição entra em cena. O padre Bernardo é preso sob suspeita de pertencer à Maçonaria. O inglês James Stone também. Há traições, algumas revelações e um desfecho trágico.
Capítulo 7 - Renovação
Não por acaso, passa-se na Primavera, estação de renovo por excelência. Morte de D. Manuel de Aguiar. Elvira dá à luz duas meninas. Fim.
O autor, Jaime Martins, como opinou uma amiga aqui presente (que percebe muito mais destas coisas do que eu), «manuseia as palavras com à vontade e elegância, mostrando ter um perfeito domínio da gramática». Uma afirmação com a qual concordo inteiramente…
E assim o atesta de imediato o primeiro parágrafo do romance, que passo a ler:
«Os silvos rasgavam o ar numa frenética música de morte. Estoiros de pólvora impunham um ritmo descompassado, alternando com sons secos do ricochete nas pedras. Uns mais longe, outros mais perto, davam conta que aquele era o dia errado, a hora errada para estar ali. De quando em quando, ouvia-se um estrondo mais forte, de uma boca de canhão que, bem posicionada, despejava sobre aqueles destemidos soldados as suas bolas de fogo. Por entre tudo isto, vozes de comando incitavam ao avanço de ambas as partes. Gritos de guerra que se confundiam com os gritos de dor dos desafortunados que foram destinos de bala, ou de projécteis de artilharia.»
Em pouco mais de 100 palavras, revelando uma grande mestria e uma expressão verdadeiramente «fotográfica», o autor faz-nos um retrato vívido e pulsante de uma sangrenta batalha. Creio ser exemplo suficiente do nível literário do romance.
Da minha experiência, que tive de o ler em tempo recorde, num período muito atribulado da minha vida profissional, posso afiançar-vos que, depois de começar, só consegui parar na última palavra da última página.
E, a fechar, duas curiosidades.
Mingot, terra de origem do protagonista e apelido ligado à família do autor, existe mesmo. Fica no Sul da França, nas faldas dos Pirenéus, 44 km a norte de Lourdes. Pelo que consegui apurar, tem uma densidade populacional de cerca de 53 habitantes por km2. No entanto, o seu território não chega a ter dois km2…
Fiquei a saber também o que significa afinal o acrónimo FMI. Nas palavras ficcionadas de D. Manuel de Aguiar, na pág. 90 desta obra, «é uma sigla de opressão que nos persegue». E quer dizer: «Franceses, Mouros e Ingleses».
Obrigado Jaime e, mais uma vez, parabéns!

Carlos Alberto R. S. Silva
Cortes, 13 de Julho de 2013