Apresentação do livro Peregrinação na Memória – Datas e notas à volta de Cister
de Rui Rasquilho
Por António Valério Maduro*
A Peregrinação na Memória constitui uma viagem no tempo longo em torno de Alcobaça, da história secular da abadia e dos seus monges laboriosos. Rui Rasquilho transporta-nos através de uma cronologia que visita desde os atos matriciais da presença cisterciense aos pormenores da vida material e da existência funcional do cenóbio, caminhada ridente que abrange a razão do espírito e da matéria, a beleza da criação que se estende desde os patamares artísticos e monumentais aos simples frutos da terra.
Lemos a sua ação de desenvolvimento do território e da economia agrária que leva as elites que visitam o Mosteiro, no palco temporal setecentista, a pronunciar-se sobre os méritos da gestão monástica e o seu contributo pleno para a felicidade dos povos ou, então, eruditos, como Leite de Vasconcelos, a afirmar que Alcobaça se destaca da Estremadura Cistagana pela confissão da identidade balizada na superior organização e dinâmica do domínio senhorial. Lemos ainda o papel inovador das Granjas no aprimoramento da tela cultural, da progressão dos índices de produção ou cópia de frutos. Num modelo ideológico e religioso pautado pela autarcia e auto-suficiência, exibem-se dinâmicas que fazem do mosteiro uma instituição que sabe jogar proveitosamente com os excedentes que animam uma útil mercancia concebendo algo que, no extremo, se poderia designar por capitalismo monástico.
Este livro não se reduz a uma cronologia clássica, que se compraz com uma lógica de sucessão acontecimental que consome o trabalho e os dias de tantos e tantos homens, o que por si já seria bastante, dado que a história não se compreende sem uma coluna vertebral que defina o horizonte, fugindo assim ao perigo acrónico dos estudos da longa duração.
Contudo, o trabalho do Rui Rasquilho rejeita claramente uma conceção de matriz positivista, em que o facto vive pelo facto. Aqui, nesta obra, o tempo curto que agita a trama da crónica entra em contexto, torna-se explicativo e esta inteligibilidade não se confina ao local, ao fluir natural da vida do cenóbio alcobacense e das gentes que contribuem direta ou indiretamente para o seu florescer, evidenciando ainda a sua articulação com os outros poderes, os conflitos que sustenta quanto à propriedade e rendas, a relação umbilical que tece e explora com a rede de abadias cistercienses espalhada pela Europa.
Passo a passo o tempo constrói-se numa arquitectura de sentido e o leitor menos familiarizado com a vida e obra dos monges cistercienses é acompanhado por pontos de luz que, na cronologia apresentada por Rui Rasquilho, são dados através de notas explicativas, mais ou menos breves, e textos enquadradores de problemáticas diversas, que servem naturalmente de marcos referenciais ao discurso.
A estrutura do livro começa pelo pré Cister numa seleção de datas chave na afirmação do projeto cristão. O Cister inicial toma o capítulo sequente numa odisseia de projeção espiritual e terrena marcada pela adesão de tantos e pela engenhosa multiplicação das abadias, o que revela que a reforma doutrinária, ou melhor, o retorno à Regra e à vida simples mais próxima de Deus e logo da salvação das almas tocou os homens do seu tempo. O crescimento releva a política que facilita a expansão cisterciense até uma fase de maturidade. Segue-se a vida do mosteiro propriamente dita dividida pelos regimes diferenciados dos abaciatos e pela ação monárquica até aos tempos do liberalismo e ao fecho da história de 1834.
A utilidade da obra do Rui deve ser salientada. Para além de poder ser lida de um só fôlego, trata-se de um texto de consulta não só para quem tem curiosidade nestas matérias ou se inicia na pesquisa histórica, como para os investigadores, nomeadamente aqueles que têm em Cister a centralidade da sua arte. Outro aspeto que convém realçar, tomando conta do modelo preconizado, é o seu ineditismo. Rui Rasquilho, como já realcei, não se compraz em realizar uma listagem cronológica, as datas aqui aparecem perenes de significado porque são integradas na relação conjuntural que o Rui revela e clarifica com um aconchego explicativo.
Veja-se a propósito da remodelação do altar-mor da Igreja (p.150):
“O Cardeal D. Henrique tirou o altar maior para fora para fazer um novo retábulo que fora encomendado em 1530. Na capela-mor colocou colunas dóricas, coríntias e toscanas sobre as quais colocou um retábulo de pincel em madeira (1570). A capela está adornada a toda a altura até ao alto com as vidrarias a iluminar. Colocou no altar uma enorme custódia”, talvez a do abade Ornelas feita em 1412 em Prata dourada – coberta por cortinas de seda que são mudadas segundo as festas e as suas cores. “O coro não tem retábulos como em Espanha que cubram as traseiras do altar.” (Descrição de Jerónimo Roman, 1586.)
Os acontecimentos mais relevantes ou por juízo do autor de maior merecimento levantados na cronologia, aqueles que sustentam implicações nos domínios do espiritual, do temporal, em suma, que interferem com a vida do cenóbio e suas orientações, com a administração e exploração do domínio, com a expansão do edificado recebem fundada explicação, casos até mais humildes suscitam algumas palavras porque a nota cronológica pode por si só não ser suficientemente explicita.
Veja-se a propósito a análise da fachada atual da Igreja (pp.205-208):
«Desde a sagração da igreja em 1222/23, as anteriores e sucessivas fachadas de Alcobaça foram a conclusão do espaço litúrgico gótico em cada período com o desenho usado pelos cistercienses em toda a Europa. No início, uma empena de ângulo suave acompanhava o pioneiro interior de três naves com altura idêntica.
Não existiam torres nem elementos decorativos que fossem além de uma imagem em pedra de Nossa Senhora da Conceição colocada no nicho da empena triangular, quatro grossos contrafortes que marcavam as naves, o portal e uma rosácea ladeada por dois janelões. A imagem caída durante o terramoto de 1531 ficou incólume no terreiro e a ela se vieram a atribuir alguns milagres.
Hoje, o frontispício é um elemento de rutura com a igreja gótica, erguida no século XIII de acordo com os exórdios e as instruções bernardinas. Acreditamos que a longa nave foi construída por fases e que, por isso, terá havido uma primeira fachada em cada momento. Sem qualquer prova, podemos supor que ao primeiro claustro incompleto corresponderia uma nave mais curta que será prolongada no final do século XIII.
A fachada atual é uma peça eclética de predomínio barroco construída entre 1702 e 1717. Em 1725, uma estátua da virgem é colocada entre as duas torres. Para tal, necessitou da presença de técnicos italianos, muito possivelmente os mesmos que esculpiram as outras seis estátuas, e que possuiriam os necessários meios técnicos para içar a Virgem. Nas costas do nicho está gravada a data de 1725.
A obra foi inteiramente paga pelo cenóbio de Alcobaça e custou mais de 40 contos.
A fachada da igreja deveria, por isso, ser apreciada no final da visita, depois de se haver entendido, por exemplo, que a cozinha nova fere com a sua imponência o equilíbrio gótico do mosteiro medieval e que foi construída no século XVIII sobre o espaço do scriptorium e do seu jardim, onde funcionou a primeira biblioteca manuscrita no século XIII.
Mas deverá também haver-se visitado a capela-relicário, a capela de Nossa Senhora do Desterro e o retábulo da morte de S. Bernardo para se apreender com mais facilidade as diferenças do barroco português quando se usa o estilo no interior e no exterior.
No interior, o uso da talha de madeira dourada, o azulejo historiado azul e branco e a estatuária em terracota policromada proporcionam um notável equilíbrio estético, que dificilmente se alcança na fachada barroca da igreja, dado o hibridismo de algumas das suas soluções decorativas de inspiração maneirista.
Quatro grandes contrafortes definem bem as três naves que se desenvolvem no interior da igreja, enquanto um varandim e um friso equilibram e separam os três corpos que constituem os 42 metros de altura da fachada. No exterior, patins rodeados de escadarias, ornados por pirâmides acogulhadas, dir-se-iam prolongar as naves da igreja, criando um vigoroso espaço cenográfico, aproveitado amiúde para expor as representações do poder. D. Miguel foi quem melhor o entendeu.
De um lado e do outro do portal, estátuas de S. Bernardo, à esquerda do lado do evangelho, S. Bento, à direita, do lado da epístola, talhadas em mármore italiano, perpetuam o espírito cisterciense, aconchegados em dois belos nichos com baldaquino, aproximando-se das disposições tridentinas.
Uma enorme rosácea domina o segundo andar da fachada, marcado pelo varandim, ornamentado com motivos renascentistas e maneiristas. No seu parapeito corre um encordoado de morfologia manuelina flagrantemente desenquadrado da cronologia estilística dominante.
Ladeiam a rosácea dois janelões que iluminam as naves laterais.
Estátuas das quatro virtudes cardeais completam a leitura do andar intermédio da fachada.
A Força e a Prudência do lado de S. Bernardo, a Justiça e a Temperança do lado de S. Bento.
O terceiro andar da fachada nasce a partir de um friso estreito, ornado com motivos vegetais, quebrado ao centro pelas armas de Portugal joanino enquadradas por dois anjos.
As duas imponentes torres sineiras receberam os primeiros quatro sinos, vindos de Braga em 1720, e novamente em 1778, estes vindos de Lisboa. Como referimos atrás, os sinos, com os seus cabeçotes, foram içados manualmente pelo lado exterior da fachada. As torres são cobertas por cúpulas encimadas por lanternins cegos e coroadas por flechas, de gosto barroco. Um monumental nicho alberga a Virgem, padroeira dos cistercienses, ladeado por dois imponentes “enrolados” de gosto maneirista, que se repetem em menor dimensão sob dois anjos junto à cruz. Um querubim, em baixo relevo, orna a base da peanha do nicho da Virgem.
Em 1750, são colocados os dois báculos em bronze das estátuas de S. Bernardo e S. Bento. Verdadeiramente, é esta a data da conclusão da fachada tal como foi projetada no início do século XVIII.
Posteriormente, após o terremoto de 1755, é construída a ala sul em espelho perfeito da ala norte para aí instalar o colégio Novo de Nossa Senhora da Conceição. Alguns dos atuais sinos são colocados nas torres em 1922 e mais dois na década de 80 do século XX, em novembro de 1989, conjuntamente com novos cabeçotes de madeira.»
Estes apanhados demonstram o conhecimento e a erudição do autor e mapeiam um corpo de assuntos enciclopédicos imprescindíveis para o adensar do enredo histórico. A cronologia do Rui é pois uma cronologia em contexto que permite ao leitor capturar os tempos do mosteiro, a evolução da sua espiritualidade, os rituais da comunidade, os manifestos artísticos em acordo com as transformações da sociedade, o crescimento do mosteiro e refuncionalização dos espaços, a política económica, social e cultural, o seu papel na promoção da atividade agrícola perene de experiência e de inovação, a vida das gentes de trabalho, dos anónimos da história, a identidade e marca de Cister como legado precioso para a modernidade e é por todo este somatório de razões que eu apelo à leitura do livro do meu amigo Rui.
* Investigador do CEDTUR – ISMAI e do CETRAD – UTAD. Email: