Receita Simples Para Cozinhar um Líder de Massas
Ana Isabel Marques
É cada vez mais assustadora a desvalorização do estudo das humanidades, e.g. História, Filosofia, Sociologia, em prol da entronização das ciências exatas, sobretudo, porque vivemos tempos particularmente perigosos e porque, infelizmente, não é a engenharia, a medicina ou a astrofísica (por muito que concorram para o nosso bem-estar material) que fornecem as ferramentas para sabermos lidar com fenómenos que estão a minar as sociedades atuais. Digo isto porque vejo os jovens e jovens adultos arredados dos tais estudos das humanidades e acefalamente reféns da estupidificante convicção da inutilidade das Letras. («Letras são Tretas»).
Se não vejamos, a História vai-nos deixando preciosas lições sobre os factores que, invariavelmente, estiveram na base da eclosão dos conflitos armados, das recessões económica ou da ascensão de regimes ditatoriais. A ignorância desses ensinamentos, o desprezo pela revisitação da memória coletiva (um exercício retrospetivo) e a obsessão com os avanços tecnológicos e científicos (exercícios prospetivos) podem-nos sair muito caros a curto e médio prazo. Refiro-me, muito concretamente, à forma como assistimos à ascensão de algumas figuras no panorama político nacional e internacional (figuras estas que não teriam a menor aceitação junto de um eleitorado esclarecido e conhecedor da História). Se atentarmos na forma como essas figuras vão arrebanhando votos e conquistando cada vez mais eleitores, verificamos que usam uma receita extremamente simples que se perde na noite dos tempos. Assim, vou dar-vos conta dos procedimentos e ingredientes para que (de forma fácil e rápida) possamos cozinhar um pequeno (ou mesmo um grande) tiranete.
Em primeiro lugar devemos ter consciência de que os regimes ditatoriais partem de uma noção de menoridade dos eleitores, menoridade esta sustentada por um incentivo à ignorância e um consequente desinvestimento na cultura e educação. O Líder de massas não vê os eleitores como concidadãos, mas sim como uma massa não pensante e ávida de um timoneiro. É usual que nos regimes totalitários o ditador assuma, por isso, alguns tiques de pseudo paternalismo de que resulta, por um lado, uma infantilização perniciosa do eleitorado e, por outro, uma idolatria do líder por parte da população que vê neste uma figura protetora, restauradora da ordem, de princípios e valores.
Dito isto, cabe referir que são os contextos de crise económica, com o consequente aumento das taxas desemprego e custo de vida galopante, que constituem os cenários mais propensos à entrada em cena da figura do líder de massas. E, posto isto, digamos que estão reunidos os ingredientes da marinada.
Vamos agora passar em revista os ingredientes necessários para cozinhar um líder de forma simples e eficaz. Em primeiro lugar, à semelhança de qualquer pater familias, o líder deve ter uma atitude que transmita confiança (independentemente das aleivosias que esteja a proferir), um tom de voz firme (por vezes desafiador) e sempre muito convicto. Isto do tom e da atitude é também depois uma questão de gosto pessoal, de temperamento e de estilo. E o cardápio é variado: pode ir desde a teatralidade de um Hitler, ao estilo mais arruaceiro, capaz de transmitir às massas a ideia de que tem “estofo” para ficar à entrada da gruta para correr à paulada quem se atreva a fazer-lhe frente.
Quanto ao modus operandi, existe igualmente um protocolo bastante rigoroso a observar. O líder deve refutar a ponderação, a análise e o consenso, pois tudo isto é sinónimo de indefinição ideológica, de fraqueza e de conluio – as chamadas «meias-tintas» abominadas pelo povo. O líder deve apostar na frontalidade (podendo, a gosto, adicionar alguma arrogância e mesmo falta de educação). “Coragem” para este líder é não ter medo de promover os conflitos e incitar à violência e “debater” é insultar com o objetivo de amedrontar o interlocutor e deleitar os eleitores ávidos de um bom Circo Romano.
Passemos agora ao conteúdo, à semelhança de um bom pater familias também o líder vai resgatar os pergaminhos dos «egrégios avós» e fazer tudo para restaurar o orgulho do clã (leia-se nação). Para isso, e numa toada perigosamente emocional, venera-se o solo pátrio, a língua materna, os feitos da nação, naquilo que é um entendimento deturpado e pernicioso do passado das nações. Trata-se do uso das mais elementares estratégias de promoção da identidade nacional no pior sentido do termo (recomendo vivamente as reflexões de Daniel-Henri Pageaux), pois, ao invés de incentivar os indivíduos a um melhor conhecimento de si mesmos e da sua cultura, o que passa também pela valorização dos contactos com outros povos e culturas, procura-se acima de tudo incutir a perniciosa noção da supremacia da identidade nacional sobre a das outras nações. Esta atitude, diz-nos a História, está na base do surgimento de políticas hegemónicas, belicistas e da eclosão de conflitos armados.
O ingrediente que se segue, e que é sucedâneo do anterior, é a identificação dos males sociais que urge arrancar pela raiz. Mais uma vez, à semelhança de um bom patriarca, é necessário ver de onde partem as ameaças ao bem-estar da família para promover a sua erradicação. Quando falamos de males, leia-se: fatores de natureza diversa que possam funcionar como «bodes expiatórios» para os problemas contextuais. Esses males podem ir, desde vícios estruturais, da máquina do Estado, (e.g. a corrupção, falhas nos sistemas judiciais ou na política de impostos), à falência da moral e bons costumes de antanhos. Segue-se a seleção dos alvos a abater, ou seja, a identificação das personagens que encarnem todas estas falências. Estes alvos podem ser também de proveniência diversa, desde alvos fáceis já caídos em desgraça (e.g. suspeitos de corrupção) ou grupos que não tenham prestígio social e constituam comunidades minoritárias nas franjas (e.g. ciganos, refugiados, residentes de guetos nas periferias urbanas).
Estão, pois, desenhados os modos e escolhidos os motes da campanha do Líder: “Morte aos refugiados”, “Chega de corrupção”, “Portugal é dos portugueses”, “A justiça é uma vergonha” etc. etc. E isto "chega" para se criar um programa político. Não existe uma visão estratégica para promover o desenvolvimento do país, para solucionar os problemas das populações, nem existe uma preocupação efetiva para alcançar o bem comum. O único objetivo é, regra geral, o saciar de um ego descomunal, de uma ambição pessoal desmedida, a tomada do poder pelo poder e o enriquecimento material do líder (e de meia dúzia de apaniguados).
Concluo com a ideia com que iniciei esta reflexão: dificilmente alguém conhecedor das receitas milenares para o fabrico de tiranetes se deixaria ludibriar, em pleno XXI, por este tipo de figuras da política. Com o maior dos respeitos pela pluralidade democrática, a eleição deste tipo de figuras só se explica pela ingenuidade de muitos eleitores, pouco informados, e (legitimamente) em desnorte. E é indecentemente aproveitando-se das angústias de uma população vulnerável que os tiranetes da política têm a desfaçatez de se arvorarem em salvadores da pátria. Os livros, a educação e a cultura vão-nos ensinando que esse tipo de heróis são personagens de ficção. Daí que os tiranos sejam tão alérgicos aos livros.