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É plausível afirmar que o corpo político, ao contrário do que aconteceu na primeira vaga da pandemia, não tem estado feliz na actual situação. Refiro-me ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro e aos dirigentes das várias oposições. Todos eles não viram, ou não quiseram ver, que os portugueses, passado o medo inicial, iriam complicar a realidade e tomar o vírus como coisa sem importância. Não sei, todavia, se os esforços conjuntos de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Rui Rio, como principal líder da oposição, mesmo sem os sinais contraditórios dados, seriam suficientes para impor aos portugueses, de forma mais musculada, outro tipo de comportamentos.
Há um problema que perpassa na forma como parte da população passou a lidar com o assunto. O vírus não é tão mortal como dizem. Mata alguns velhos e, entre os mais novos, só é problemático para os que sofrem de algumas doenças, isto é, os mais fracos. É isto que, apesar de falso e imoral, está na cabeça de muita gente, que acha que o determinado pelo poder político é apenas facultativo e um embaraço que não se deve tomar em consideração. Trata-se de uma forma de selecção natural e, por isso, justa. Eu que estou no vigor da vida – pensam – não tenho de ser cerceado nos direitos por causa de velhos e fracos. Tenho direito de facto, mesmo que contrarie a lei, a fazer o Natal e a passagem de ano como bem me aprouver, assim como conduzir a vida como entender. Mesmo que estas ideias não tivessem sido formuladas explicitamente por muitos dos que infringiram recomendações e leis, elas estavam lá a soprar-lhes aos ouvidos.
Isto mostra como faliram nas sociedades contemporâneas conceitos como de próximo ou de dever para com os outros. A secularização da sociedade portuguesa, composta em grande parte por católicos não praticantes, conduziu a que se deixasse de ter disponível a ideia de amor ao próximo como guia dos comportamentos. Por outro lado, a ideia de dever para com o outro, uma forma laica de impor uma moral do respeito, não encontrou espaço para florescer, num ambiente marcado pela cultura do eu e dos seus interesses e prazeres. Ora quando nem a religião nem a moral são suficientes para que os indivíduos percebam o dano que condutas irresponsáveis provocam, só resta a violência legítima dos representantes do soberano, que em democracia é o povo. É para isso que serve, em primeiro lugar, o poder político, tornar a comunidade, segundo as regras do Estado de direito, um espaço seguro para todos, incluindo velhos e fracos. E isto tem falhado.
J.C.M., in Jornal Torrejano, de 23 de Janeiro 2021 e aqui.
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Começo estas reflexões com um exercício de mea culpa por não conseguir deixar de sentir espanto ante o esmagador impacto das redes sociais. Trata-se da consequência (natural, dirão alguns) da democratização do acesso aos media e da banalização do voyeurismo social. Efetivamente, o vaticínio Warholesco da democratização da fama (os famosos «15 minutos de fama», passe a redundância) impõe-se, meio século mais tarde, em palcos diversos e por períodos de tempo mais alargados. As tardes televisivas em que se convida para subir ao palco o cidadão anónimo ávido de contar ao mundo o rol de desgraças que viveu, as temporadas de «Big Brother» ou de casamentos à primeira vista mais não são do que a venda da ilusão de que qualquer um pode tornar-se conhecido, logo, pode tornar-se uma pessoa importante ou uma figura pública (o que quer que isso signifique).
As redes sociais são outra vertente deste fenómeno de "dessacralização" dos media. São o palco daqueles que, não querendo ser convidados para os programas televisivos, criam os seus próprios canais para chegar ao público e terem visibilidade social. A facilidade com que o cidadão comum tem acesso a ferramentas que lhe permitem tele-difundir a sua pessoa, os seus familiares, o gato, o cão, o prato com comida, o prato sujo (ou qualquer disparate que lhe passe pela cabeça) não deixa de ter laivos de insanidade e gera um tsunami de poluição informativa que tem muitos lados negros.
Dir-me-ão que, à semelhança de toda e qualquer inovação tecnológica, há apenas bons e maus utilizadores e, esse facto, não põe em causa a valia da invenção. É verdade, mas não posso deixar de sublinhar o potencial de perigo que subjaz à realidade das redes sociais. A “palavra” ganhou uma perigosa velocidade de disseminação. As novas formas de comunicar não são rastilhos de pólvora, mas sim radiações atómicas. A informação falsa circula à mesma velocidade e pelas mesmas rotas em que circula a informação verdadeira, sem qualquer triagem e com total impunidade. E isso é uma realidade absolutamente tenebrosa. Quem nos governa conhece esses fenómenos melhor do que ninguém. E se, por cá, onde tudo tem menores proporções ou se desenrola em moldes mais brandos, nos ficamos pela verificação da fiabilidade da informação (com polígrafos SIC), nos Estados Unidos o termo «fake news» tornou-se tão banal quanto o coffee-break.
Descontente com os media que (ainda) tentam averiguar a verdade dos factos, o Líder de uma das nações mais pujantes do mundo vai ao Twitter largar as maiores aleivosias e com a mesma facilidade com que aqui a Dona Miquelina descarrega no Facebook fotos de um prato de camarão. E, assim, Trump move-se como ninguém nestes terrenos de informação pantanosa dos nossos dias. Foi catapultado para a Casa Branca por uma lógica de Reality Show que deixou o mundo boquiaberto. Aplicou a mesma lábia, peito feito e postura de “manager” experiente (aqui chamar-lhe- íamos charlatão) à política nacional e internacional, deixando os analistas políticos incrédulos. Deturpou, ameaçou e mentiu com uma desfaçatez (e falta de educação) que deixou aturdidos os seus pares. E tudo isto para gáudio de uma percentagem (como vimos não negligenciável) dos eleitores americanos que rejubila por ver na Casa Branca alguém desta têmpera e com esta “garra”. Alguém que fala a mesma linguagem, alguém que usa os mesmos megafones (leia-se, redes sociais) para verbalizar as mesmas baboseiras que o John da esquina. «That’s amazing!»
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Receita Simples Para Cozinhar um Líder de Massas
Ana Isabel Marques
É cada vez mais assustadora a desvalorização do estudo das humanidades, e.g. História, Filosofia, Sociologia, em prol da entronização das ciências exatas, sobretudo, porque vivemos tempos particularmente perigosos e porque, infelizmente, não é a engenharia, a medicina ou a astrofísica (por muito que concorram para o nosso bem-estar material) que fornecem as ferramentas para sabermos lidar com fenómenos que estão a minar as sociedades atuais. Digo isto porque vejo os jovens e jovens adultos arredados dos tais estudos das humanidades e acefalamente reféns da estupidificante convicção da inutilidade das Letras. («Letras são Tretas»).
Se não vejamos, a História vai-nos deixando preciosas lições sobre os factores que, invariavelmente, estiveram na base da eclosão dos conflitos armados, das recessões económica ou da ascensão de regimes ditatoriais. A ignorância desses ensinamentos, o desprezo pela revisitação da memória coletiva (um exercício retrospetivo) e a obsessão com os avanços tecnológicos e científicos (exercícios prospetivos) podem-nos sair muito caros a curto e médio prazo. Refiro-me, muito concretamente, à forma como assistimos à ascensão de algumas figuras no panorama político nacional e internacional (figuras estas que não teriam a menor aceitação junto de um eleitorado esclarecido e conhecedor da História). Se atentarmos na forma como essas figuras vão arrebanhando votos e conquistando cada vez mais eleitores, verificamos que usam uma receita extremamente simples que se perde na noite dos tempos. Assim, vou dar-vos conta dos procedimentos e ingredientes para que (de forma fácil e rápida) possamos cozinhar um pequeno (ou mesmo um grande) tiranete.
Em primeiro lugar devemos ter consciência de que os regimes ditatoriais partem de uma noção de menoridade dos eleitores, menoridade esta sustentada por um incentivo à ignorância e um consequente desinvestimento na cultura e educação. O Líder de massas não vê os eleitores como concidadãos, mas sim como uma massa não pensante e ávida de um timoneiro. É usual que nos regimes totalitários o ditador assuma, por isso, alguns tiques de pseudo paternalismo de que resulta, por um lado, uma infantilização perniciosa do eleitorado e, por outro, uma idolatria do líder por parte da população que vê neste uma figura protetora, restauradora da ordem, de princípios e valores.
Dito isto, cabe referir que são os contextos de crise económica, com o consequente aumento das taxas desemprego e custo de vida galopante, que constituem os cenários mais propensos à entrada em cena da figura do líder de massas. E, posto isto, digamos que estão reunidos os ingredientes da marinada.
Vamos agora passar em revista os ingredientes necessários para cozinhar um líder de forma simples e eficaz. Em primeiro lugar, à semelhança de qualquer pater familias, o líder deve ter uma atitude que transmita confiança (independentemente das aleivosias que esteja a proferir), um tom de voz firme (por vezes desafiador) e sempre muito convicto. Isto do tom e da atitude é também depois uma questão de gosto pessoal, de temperamento e de estilo. E o cardápio é variado: pode ir desde a teatralidade de um Hitler, ao estilo mais arruaceiro, capaz de transmitir às massas a ideia de que tem “estofo” para ficar à entrada da gruta para correr à paulada quem se atreva a fazer-lhe frente.
Quanto ao modus operandi, existe igualmente um protocolo bastante rigoroso a observar. O líder deve refutar a ponderação, a análise e o consenso, pois tudo isto é sinónimo de indefinição ideológica, de fraqueza e de conluio – as chamadas «meias-tintas» abominadas pelo povo. O líder deve apostar na frontalidade (podendo, a gosto, adicionar alguma arrogância e mesmo falta de educação). “Coragem” para este líder é não ter medo de promover os conflitos e incitar à violência e “debater” é insultar com o objetivo de amedrontar o interlocutor e deleitar os eleitores ávidos de um bom Circo Romano.
Passemos agora ao conteúdo, à semelhança de um bom pater familias também o líder vai resgatar os pergaminhos dos «egrégios avós» e fazer tudo para restaurar o orgulho do clã (leia-se nação). Para isso, e numa toada perigosamente emocional, venera-se o solo pátrio, a língua materna, os feitos da nação, naquilo que é um entendimento deturpado e pernicioso do passado das nações. Trata-se do uso das mais elementares estratégias de promoção da identidade nacional no pior sentido do termo (recomendo vivamente as reflexões de Daniel-Henri Pageaux), pois, ao invés de incentivar os indivíduos a um melhor conhecimento de si mesmos e da sua cultura, o que passa também pela valorização dos contactos com outros povos e culturas, procura-se acima de tudo incutir a perniciosa noção da supremacia da identidade nacional sobre a das outras nações. Esta atitude, diz-nos a História, está na base do surgimento de políticas hegemónicas, belicistas e da eclosão de conflitos armados.
O ingrediente que se segue, e que é sucedâneo do anterior, é a identificação dos males sociais que urge arrancar pela raiz. Mais uma vez, à semelhança de um bom patriarca, é necessário ver de onde partem as ameaças ao bem-estar da família para promover a sua erradicação. Quando falamos de males, leia-se: fatores de natureza diversa que possam funcionar como «bodes expiatórios» para os problemas contextuais. Esses males podem ir, desde vícios estruturais, da máquina do Estado, (e.g. a corrupção, falhas nos sistemas judiciais ou na política de impostos), à falência da moral e bons costumes de antanhos. Segue-se a seleção dos alvos a abater, ou seja, a identificação das personagens que encarnem todas estas falências. Estes alvos podem ser também de proveniência diversa, desde alvos fáceis já caídos em desgraça (e.g. suspeitos de corrupção) ou grupos que não tenham prestígio social e constituam comunidades minoritárias nas franjas (e.g. ciganos, refugiados, residentes de guetos nas periferias urbanas).
Estão, pois, desenhados os modos e escolhidos os motes da campanha do Líder: “Morte aos refugiados”, “Chega de corrupção”, “Portugal é dos portugueses”, “A justiça é uma vergonha” etc. etc. E isto "chega" para se criar um programa político. Não existe uma visão estratégica para promover o desenvolvimento do país, para solucionar os problemas das populações, nem existe uma preocupação efetiva para alcançar o bem comum. O único objetivo é, regra geral, o saciar de um ego descomunal, de uma ambição pessoal desmedida, a tomada do poder pelo poder e o enriquecimento material do líder (e de meia dúzia de apaniguados).
Concluo com a ideia com que iniciei esta reflexão: dificilmente alguém conhecedor das receitas milenares para o fabrico de tiranetes se deixaria ludibriar, em pleno XXI, por este tipo de figuras da política. Com o maior dos respeitos pela pluralidade democrática, a eleição deste tipo de figuras só se explica pela ingenuidade de muitos eleitores, pouco informados, e (legitimamente) em desnorte. E é indecentemente aproveitando-se das angústias de uma população vulnerável que os tiranetes da política têm a desfaçatez de se arvorarem em salvadores da pátria. Os livros, a educação e a cultura vão-nos ensinando que esse tipo de heróis são personagens de ficção. Daí que os tiranos sejam tão alérgicos aos livros.
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O BELLA CIAO,
Ana Isabel Marques
Não me sai da cabeça esta música popular italiana, símbolo da resistência nacional à ocupação nazi durante a segunda guerra mundial. E, assumidamente, comovo-me ao trauteá-la. E não sei como, nem porquê, mas faço desta toada o som com que me identifico neste momento: é preciso coragem, resiliência e resistência.
Porque é que sinto esta comoção? Genuinamente, não sei. Arrisco dizer: porque é uma referência forte de um povo latino, que, por todas as razões (histórico-culturais), nos é próximo em termos de identidade; ou que, por ter estudado com particular pormenor o contexto da segunda guerra mundial, conheço o lastro emotivo da música. Francamente, não sei.
Tenho é as maiores dúvidas de que um ministro das finanças holandês sinta a mesma comoção ao ouvir esta música. E isto leva-me a reflexões que, noutros contextos, fiz já sobre a questão da identidade europeia. Sempre me fez imensa confusão que a União Europeia fosse essencialmente uma união monetária ou fronteiriça para efeitos de agilização da circulação de pessoas e bens. Sempre me quis parecer que esta visão mercantilista da Europa se assemelhava um bocadinho à construção das casinhas dos três porquinhos, contruídas à pressa com o propósito de escapar à ira de um qualquer lobo mau, sem quaisquer preocupações de construção de alicerces ou de verificação de solidez estrutural.
Mais uma vez – e relembro aqui à saciedade as críticas que amiúde ouvi sobre a inutilidade dos estudos das humanidades, da cultura e da literatura –, foram possivelmente a minha assumida ignorância em termos de política e economia e o meu assumido interesse por questões interculturais que sempre me fizerem ver com alguma apreensão a construção de uma União Europeia à margem de uma política concertada, efetiva e continuada da construção de uma identidade cultural europeia. Não ignoro a existência de programas divulgados entre elites académicas ou comunidades escolares, mas sublinho, sim, as lacunas em termos de iniciativas de espectro mais alargado que promovessem o reforço da identidade europeia junto do cidadão comum. Isto porque, de facto, dificilmente nos conseguimos sentir unidos a alguém que mal conhecemos ou que não sabemos quem é. Dificilmente podemos sentir empatia relativamente a um país cuja localização apontamos com dificuldade no mapa, a um povo que desconhecemos, que não sabemos o que fez, ou qual o contributo que deu para este baú imenso de riqueza cultural que é a Europa. E a Europa é isso mesmo: o repositório identitário e cultural de todos os países que a integram. Só conhecendo os povos e as nações é que conseguimos, efetivamente, construir uma identidade europeia. Sim, porque estamos a falar de uma realidade imaterial que se pode (e deve) construir. Dever-se-ia, desde há muito, ter implementado nos curricula uma disciplina sobre o «meu amigo europeu», sobre a história e a cultura dos países europeus. Não quero com isto advogar a inserção de mais uma disciplina, morta e pesada, no dia-a-dia escolar dos alunos, mas sim atividades de participação efetiva no modus vivendi de todos nós, europeus. (Saúdo os programas Erasmus e Komenios, mas não deixo de sublinhar, num outro patamar, o que os velhinhos Jogos sem Fronteiras fizeram pela unidade europeia e pelo conhecimento do meu irmão europeu).
Entretanto, chegou o lobo mau, sob a forma de um vírus covarde, mesquinho e tenebroso. E eis que a solidez da cabana dos 27 porquinhos está, como nunca, a ser posta à prova. E, afinal, parece que há povos que se sentem mais europeus do que outros. Há povos mais próximos do que outros. Há povos que valorizam a união humanitária e outros apenas a questão monetária. Não se norteiam todos pelas mesmas prioridades, nem pelos mesmos valores. Independentemente do respeito pelo princípio (elementar) da solidariedade para com o próximo (que não ouso aqui comentar), verificamos que é muito difícil para alguns países estarem emocionalmente próximos de países que não conhecem e que diabolizaram por via de estereótipos de ignorância.
A velha Europa parece que está literalmente a agonizar, sim! Trata-se de uma morte que não é provocada pelo vírus, mas pela ignorância que mina os laços que deveriam unir todos os europeus.
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Pedro Cabrita Reis, em artigo de opinião no Público, expõe a sua posição perante a polémica que se gerou com a inauguração da sua obra A Linha do Mar, no concelho de Matosinhos. A polémica oscilou entre a questão política – deverão as entidades públicas, à revelia dos eleitores e contra o sentimento estético destes – encomendar obras de arte para o espaço público – e a questão estética – saber se aquela obra é ou não uma obra de arte.
O que o autor faz é a afirmação plena do artista, numa autonomia radical perante o público, onde se incluem o mercado e outros agentes que volteiam em torno do mundo das artes plásticas. Arte é aquilo que o artista determina enquanto tal. Esta perspectiva é completada pela ideia de que a obra de arte começa no pensamento do artista ou, para citar o insuspeito Leonardo da Vinci quando se referia à pintura, é uma coisa mental. A arte reside na subjectividade do artista e a obra material é apenas a manifestação dessa concepção subjectiva.
Arménio Dias, Escultura de Pedro Cabrita Reis vandalizada, 2019 (aqui)
A autonomização progressiva da arte a que se assistiu a partir do Renascimento desaguou no conflito, que se tornou manifesto no século XX, entre parte significativa da arte contemporânea e o gosto do público, que se sente impotente para se transferir para a mente do artista e compreender as operações mentais que geram obras que ele não compreende e, pior, sente como ofensa ao seu sentimento estético. Enquanto a arte se exibe apenas no ambiente climatizado das galerias privadas, o grande público encolhe os ombros, pois nada daquilo lhe diz respeito.
O problema emerge quando, como no caso de Leça, a obra de arte está no espaço público e foi adquirida com dinheiros públicos. Como muitos argumentaram, a obra foi paga com os impostos daqueles que nunca dariam um cêntimo por uma obra de Cabrita Reis, pois não a compreendem, sentem-se ofendidos no seu sentimento estético e na sua ideia do que deve ser uma obra de arte. Este conflito entre a autonomia do artista e o gosto do público não tem solução. A autonomia do artista e da arte são bens que os artistas preservam como tão importantes quanto a vida e não é crível que uma massiva educação escolar tenha poder de alterar radicalmente o gosto do público.
Curioso em tudo isto é o papel dos agentes políticos dentro desta tensão. A sua decisão de escolherem artistas que o público não gosta tem um resultado paradoxal. Transforma uma diferença de percepção do que é ou deve ser a arte num diferendo em que, como no caso de A Linha do Mar, o antagonismo ultrapassa em muito um mero desacordo. Basta ler muitos dos comentários para perceber o grau de rancor e ressentimento que envolve a apreciação do trabalho do escultor. A presença do político gera uma explosão.
Todavia, esta explosão, gerada pela presença do elemento político, tem uma função iluminadora e isso é o outro lado do paradoxo. O público incapaz de perceber a obra de arte é posto perante o facto desta obra. Ela está ali e está iluminada pela polémica. Vai ser obrigado a olhar para ela e começar a vê-la. Ela saiu do espaço da indiferença sombria para uma clareira de onde o olhar não se pode desviar. Sem dar por isso, o público é invadido pela obra e esta começa a trabalhá-lo, a educar-lhe o olhar através do hábito da presença. A imaginação, de forma secreta, estabelece relações inesperadas, o que era negativo e tenebroso transforma-se lentamente no seu contrário. A coisa conceptual gerada na mente do artista torna-se também numa coisa conceptual na mente do espectador. Sentidos começam a nascer, linhas hermenêuticas abrem uma brecha no sentimento estético e começam a iluminá-lo. E isto será o que se pode esperar de uma obra de arte.
Jorge Carreira Maia, Janeiro de 2020. In http://kyrieeleison-jcm.blogspot.com
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Um ramo não faz uma árvore: a força do espírito de equipa
( Apresentação do livro Era uma vez... e a história continua...)
por Ana Isabel Marques
Não constitui nenhuma novidade o facto de os encarregados de educação terem uma palavra na vida escolar dos filhos (por exemplo, para se inteirarem do rendimento escolar, de questões comportamentais). O que constitui uma novidade e uma das mais-valias da escola Casa da Árvore é o facto de, de forma consistente e estruturante, integrar os pais (e as famílias) na dinâmica de aprendizagens da escola. As famílias são convidadas a partilhar, no espaço escolar, os seus saberes, que podem ir desde os conhecimentos profissionais, numa óptica de articulação com os conteúdos do programa, aos saberes mais informais, mas igualmente valiosos, aquilo que constitui o legado familiar. Essas aprendizagens e essas formas de aprender são preciosas.
Porque as famílias (independentemente da sua estruturação) são as células da nossa sociedade e redutos da nossa identidade (sendo elas que nos transmitem os princípios estruturadores do nosso EU), este momento de partilha dos saberes de cada família só pode constituir um momento de enriquecimento pessoal e social enorme.
Para além disso, são momentos promotores da auto-estima das crianças (que vêem com orgulho os seus familiares a transmitir ensinamentos aos outros meninos) e da sua auto-confiança (pois vêem o espaço da escola tornar-se uma extensão da própria casa). Estes momentos das famílias tutoras são, por isso mesmo, não só momentos de transmissão de saberes, mas também de afectos.
Na sua essência, a transmissão de saberes não tem, nem deve ter, a solenidade de uma cátedra. Uma simples história, uma canção, uma receita culinária, o interesse pelo desporto, pela rádio, uma paixão por jardinagem, por lavores, tudo isso constitui aprendizagens de uma valia inexcedível que devem ser partilhadas, não só por pais e mães tutores, mas por famílias tutoras. Porque é aí que está a riqueza maior da nossa identidade e da nossa sociedade. As actividades das famílias tutoras constituem também um exercício de cidadania.
Enquanto mãe-tutora, decidi partilhar com os meninos da Casa da Árvore […] o enorme gosto que tenho pela nossa língua e pelos livros. Foi por isso que, no dia 23 de abril, Dia Mundial do Livro, desafiámos (tive a conivência incondicional das professoras) a editora Textiverso a mostrar à Casa da Árvore como é que nascem os livros e, numa atitude de uma enorme abertura e de rasgo editorial (porque os grandes gigantes do sector não tem a abnegação económica, nem a sensibilidade educativa para criar espaço a estes projectos), a Textiverso propôs aos alunos serem autores de um livro.
Vou só como mãe tutora dar testemunho daquilo que vi:
- Vi crianças empenhadas no desafio proposto;
Crianças profundamente responsáveis e conscientes do compromisso assumido;
Crianças entusiasmadas com a escrita e com projetos editoriais;
Crianças (autores) que me emocionaram pela autenticidade daquilo que escrevem. Pela pureza da imaginação em estado bruto. E falo de todas e cada uma delas sem excepção.
Vi professoras-tutoras com o mesmo entusiasmo dos seus alunos.
Com uma enorme capacidade de trabalho.
Um espírito de equipa e de cooperação.
Uma abertura ao diálogo e à troca de ideias (rara, mesmo muito rara, nos dias que correm, em que os egoísmos e os egos pessoais matam à partida projetos muito validos)
Vi profissionais cumpridoras de prazos e das metas estabelecidas.
(Por todas estas razões, com a sua forma de actuar, as professoras da Casa da Árvore deram um exemplo fantástico aos nossos filhos.)
- Vi um diretor de uma generosidade enorme, que, sem hesitar, abraçou a ideia e que, de coração aberto, encorajou, incentivou (e não exagero se disser que por vezes se emocionou).
- Vi uma editora que alinhou os carris num tempo recorde permitindo que a viagem chegasse a bom porto. Testemunhei a dedicação, o empenho pessoal e o gosto com que editaram este livro.
- Vi também a bagagem que estas crianças levavam e não posso deixar de mencionar a dinamizadora da biblioteca da Casa da Árvore, que muito contribuiu para desenvolver nelas o gosto pelos livros.
Tudo isto me ensinou ou reforçou uma convicção que há tanto tempo me acompanha: de que, com empenho e entusiasmo, com trabalho e foco, com uma meta comum (sem ânsias de protagonismos), somos capazes de chegar onde nem imaginávamos.
Como mãe, como professora, como cidadã, que pena tenho que este país não esteja cheio de Casas da Árvore. E com percursos escolares mais dilatados (2º e 3º ciclo). Lanço, pois, aqui o repto. Porque também nos compete a nós pais querermos o melhor para os nossos filhos. E porque é minha convicção que esta é a escola do Futuro e que está aqui o Futuro da Escola.
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Outras Flores do Mal
por
Ana Isabel Marques
Não é invulgar, numa ou noutra ocasião mais informal, tecermos considerandos acerca dos povos e das nações. Quantas vezes já não ajuizámos acerca nos nossos procedimentos colectivos, acusando os Portugueses de uma quase atávica propensão para a negligência, para a passividade ou, numa óptica mais positiva, para o improviso ou para a solidariedade. Trata-se, e disso devemos ter uma noção muito vincada, de imagens generalistas e, logo, propensas à distorção. Estas imagens, os chamados estereótipos, quando aplicadas aos comportamentos colectivos constituem uma matéria tremendamente sensível e facilmente inflamável. Recordo que foi precisamente sustentados em impressões generalistas e levianas, que remontam à Alemanha oitocentista e à teoria wundtiana da Psicologia dos Povos, que eclodiram os regimes ditatoriais fascizantes do século XX e as ideologias racistas e expansionistas que estiveram na base dos maiores conflitos mundiais de que há memória.
Como se tivéssemos feito tábua rasa das lições da História, verificamos que ainda hoje os estereótipos estão na base da política exercida ao nível das mais altas instâncias nacionais e internacionais. São os estereótipos que fomentam uma má vontade europeia do Norte, trabalhador e cumpridor, relativamente ao Sul, relapso e despesista. São os estereótipos que se colam aos refugiados como hordas de leprosos, e esconderijo de terroristas, que contaminam e destroem as sociedades que os albergam. São os estereótipos que alimentam os radicalismos ideológicos que vão proliferando pela Europa e que se instalaram em grande parte do continente americano, permitindo eleger a administração Trump e Bolsonaro.
Num plano mais restrito, também são os estereótipos que sustentam a cizânia entre classes profissionais, colocando os Portugueses uns contra os outros. São os estereótipos que alimentam as hostilidades entre trabalhadores do sector público e do sector privado, entre contribuintes reformados e contribuintes no activo.
Termino glosando Mia Couto que sublinha que quanto menos conhecemos mais julgamos, sendo o juízo precipitado quantas vezes uma arma perversa de quem desconhece as razões que assistem a cada realidade. O uso de estereótipos, que é o cimento de toda a demagogia, não é mais do que a verbalização de desconhecimento e de ignorância profunda.
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[Ode an die Freude / Hino à Alegria, Nürnberg, 2014]
Premissas para a construção da identidade europeia
por
Ana Isabel Marques
Os dias que correm, em que somos literalmente esmagados por crises económicas, crises de refugiados, ataques terroristas, que saltam sucessivamente para as páginas dos jornais consoante o surto de que somos acometidos no momento, provam-me à saciedade a importância das questões culturais, porque é minha convicção que por detrás da endémica crise nacional e da já chamada derrocada da Europa está uma profundíssima crise identitária das nações e do continente que poucos souberam atempadamente diagnosticar. É, por isso, que se torna tão difícil (se não mesmo impossível) encontrar a curto prazo uma resposta rápida e eficaz para os problemas que nos assolam actualmente.
É antigo (e legítimo) o sonho europeu. Outros melhor do que eu (e seguramente mais habilitados) conseguirão reconstituir essa história e organizar a sua cronotopia. Trata-se (dirão muitos) de uma manta de retalhos e de um aglomerado de culturas, povos e nações, e, por isso mesmo, de um conceito dotado de uma diversidade que inviabiliza à partida quaisquer projectos unificadores. E curiosamente os tempos parecem dar-lhes razão. Não poderia, no entanto, estar mais convicta de que se trata de um falso pressuposto. Subjaz à realidade europeia uma diversidade cultural tão visível nesse espaço continental quão visíveis são as diversidades culturais dentro de um mesmo território nacional, entre o norte e o sul de qualquer país. O enfoque dos projectos de unificação deverá ser, pois, nas semelhanças e não nas diferenças. E a Europa tem essas semelhanças. Subjaz-lhe um conjunto de valores e princípios que estruturam e moldam os cidadãos europeus. Liberdade, igualdade, fraternidade, solidariedade, amor ao próximo, tolerância e respeito pela pessoa humana são princípios que nos são incutidos desde o berço. Trata-se de valores que integram o património imaterial da cultura ocidental. (Desengane-se quem pensa que são valores cardinais em todos os pontos do globo).
Ana Isabel Marques