Outras Flores do Mal

 

Outras Flores do Mal

por

Ana Isabel Marques

 

Não é invulgar, numa ou noutra ocasião mais informal, tecermos considerandos acerca dos povos e das nações. Quantas vezes já não ajuizámos acerca nos nossos procedimentos colectivos, acusando os Portugueses de uma quase atávica propensão para a negligência, para a passividade ou, numa óptica mais positiva, para o improviso ou para a solidariedade. Trata-se, e disso devemos ter uma noção muito vincada, de imagens generalistas e, logo, propensas à distorção. Estas imagens, os chamados estereótipos, quando aplicadas aos comportamentos colectivos constituem uma matéria tremendamente sensível e facilmente inflamável. Recordo que foi precisamente sustentados em impressões generalistas e levianas, que remontam à Alemanha oitocentista e à teoria wundtiana da Psicologia dos Povos, que eclodiram os regimes ditatoriais fascizantes do século XX e as ideologias racistas e expansionistas que estiveram na base dos maiores conflitos mundiais de que há memória.

Como se tivéssemos feito tábua rasa das lições da História, verificamos que ainda hoje os estereótipos estão na base da política exercida ao nível das mais altas instâncias nacionais e internacionais. São os estereótipos que fomentam uma má vontade europeia do Norte, trabalhador e cumpridor, relativamente ao Sul, relapso e despesista. São os estereótipos que se colam aos refugiados como hordas de leprosos, e esconderijo de terroristas, que contaminam e destroem as sociedades que os albergam. São os estereótipos que alimentam os radicalismos ideológicos que vão proliferando pela Europa e que se instalaram em grande parte do continente americano, permitindo eleger a administração Trump e Bolsonaro.

Num plano mais restrito, também são os estereótipos que sustentam a cizânia entre classes profissionais, colocando os Portugueses uns contra os outros. São os estereótipos que alimentam as hostilidades entre trabalhadores do sector público e do sector privado, entre contribuintes reformados e contribuintes no activo.

Termino glosando Mia Couto que sublinha que quanto menos conhecemos mais julgamos, sendo o juízo precipitado quantas vezes uma arma perversa de quem desconhece as razões que assistem a cada realidade. O uso de estereótipos, que é o cimento de toda a demagogia, não é mais do que a verbalização de desconhecimento e de ignorância profunda.