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Contadores de histórias

Foi num livro de George Steiner que encontrei a informação. Uma parábola hassídica diz-nos que Deus criou o homem para que contasse histórias. O ‘para que’ indica uma finalidade, melhor, uma causa final. A causa final da nossa existência é a de sermos narradores, contadores de histórias. O antropólogo Lévi-Strauss acrescenta que essa narração é a própria condição do nosso ser. Somos seres eminentemente literários, não porque amemos a literatura, mas porque ela é a nossa maneira de ser no mundo. Existimos narrativamente. Poder-se-ia ser tentado a opor a arte literária a discursos de outra índole, aparentemente, não narrativos. Por exemplo, a ciência ou a filosofia. Duvido que elas não sejam formas de narrativa e não façam parte desse imenso império que é a literatura. Da filosofia, não valerá a pena falar, pois os diálogos platónicos estão aí para o atestar, e como alguém dizia, talvez com exagero, o resto da filosofia não passa de um conjunto de notas de rodapé a esses diálogos. As teorias científicas não deixam de contar histórias e, mais do que isso, empregam grandes esforços para garantir, se não a sua verdade absoluta, a sua máxima verosimilhança. A formalização matemática ou o recurso à experimentação podem parecer colocar essas áreas do discurso fora da narrativa, mas talvez as devamos interpretar como estratégias retóricas visando alcançar o consenso sobre a história que uma teoria científica nos conta acerca do mundo. Se se aceitar o que dizem Steiner e Strauss, então não poderia ser de outra maneira. Tudo em nós é o exercício dessa narratividade que nos constitui e nos institui. Imagino que não deveria escrever sobre estas coisas numa sexta-feira, mas a minha natureza impeliu-me para elas. Note-se, todavia, que se a causa final do homem e a sua própria condição é contar histórias, isso não assegura que cada um seja um bom narrador e conte boas histórias. E isto absolver-me-á.

(In Peregrinatio,  de J.C.M)




Burn JonesVivemos numa sociedade em que não apenas o Estado se exime de qualquer orientação confessional, como parte substancial da população, mesmo a que se diz crente, tem uma relação débil com a religião. Contudo, o Natal não deixa de ser uma festividade a que a grande maioria das pessoas dá significativa atenção. Visto como festa da família, como momento em que pessoas que pouco se vêem durante o ano se encontram, o Natal tem, nos dias de hoje, o seu grande impulso não na religião, mas no comércio. A questão que se coloca é se este espírito de Natal é compatível com o acontecimento que lhe deu origem e motivação.

O cristianismo talvez seja a mais estranha de todas as religiões. É marcada por um exercício de humilhação, como se esta fosse a condição de possibilidade de uma exaltação numa outra vida. Estamos perante uma religião que nasce da ideia de que Deus encarnou, viveu uma vida humilde e morreu na cruz, a mais humilhante das formas de morte daqueles tempos. A questão começa de imediato no nascimento do Messias. Não nasce num palácio, nem nos círculos do poder religioso judaico. Nasce num estábulo, como se quisesse identificar, na Terra, a humildade como a marca daquilo que é divino.

Se há virtude que, nos dias de hoje, tem má fama, essa é a da humildade. Não há quem não queira afirmar-se, mostrar-se como o melhor, o mais forte, o mais sedutor, o mais poderoso. A vida social e a educação dos neonatos convergem para a afirmação da subjectividade, como se cada uma fosse o centro do universo, o ponto em torno do qual tudo deve girar. O Natal simboliza o contrário. O mais poderoso é o mais frágil e humilde. A encarnação da divindade não vem para mostrar um poder, mas para servir até à ignomínia da cruz. A descristianização da sociedade significa que o modelo crístico deixou de ser há muito o ideal regulador do homem. O Natal, para a nossa cultura, é um anacronismo e, ao mesmo tempo, uma provocação.

Essa provocação cresce quando se contrapõe a pobreza do presépio de Belém e o ideal social que nos rege. Ter mais, consumir mais, aceder ao maior número de experiências possíveis. O próprio festejo natalício já não é o da pobreza do Menino Jesus, mas da capacidade que se tem de distribuir presentes, uma afirmação de que não se é pobre. O cristianismo, com o nascimento e morte do Cristo, é um exercício de desapossamento de si e dos bens materiais. Ora, isso é totalmente estranho aos valores pelos quais nos regemos. Nada há de mais incompatível com o actual espírito natalício, como o encaramos, do que a terrível frugalidade do presépio de Belém.

J. C. Maia (crónica publicada no Jornal Torrejano e aqui).




 

A democracia liberal tem vindo a ser submetida a um conjunto de desafios que, não poucas vezes, parecem pôr em causa a sua capacidade de, num futuro próximo, resistir à avalancha de tiranias que existem um pouco por todo o lado. Sempre que há eleições, teme-se que as forças inimigas das liberdades democráticas as ganhem e se dê início a um processo de descaracterização, primeiro, e de destruição, depois, dos regimes democráticos. Dito em linguagem popular, sempre que há eleições os defensores da democracia liberal – tanto na direita como na esquerda – andam com o Credo na boca. Há razões para isso. Vejam-se as derivas iliberais na Índia, na Turquia e, dentro da casa comum da União Europeia, da Polónia e da Hungria. Teme-se que o mesmo possa suceder, na sequência das últimas eleições, em Itália.

Contudo, poderá haver lugar para uma visão menos negra do futuro dos regimes democráticos. No Brasil e nos EUA, as instituições políticas deram provas de suportar bem o teste de stress a que democracia foi submetida. A derrota de Bolsonaro, no Brasil, e o resultado decepcionante dos republicanos pró Trump, nas eleições intermédias nos EUA, mostraram que as instituições democráticas talvez tenham mais vigor do que se pensa. O caso do Brasil é interessante. É uma democracia recente, onde um Presidente assumidamente defensor da ditadura foi eleito, mas que, apesar de tudo, não conseguiu subverter o sistema democrático para se perpetuar no poder. Também o facto de nos EUA não ter havido uma maré trumpiana vitoriosa mostra que a funda tradição democrática americana possui alicerces mais sólidos do que se suspeitava.

Numa entrevista ao Público de domingo passado, Kerry Brown, professor de Estudos Chineses no King’s College, de Londres, e autor de um livro sobre Xi Jinping, o líder chinês, sublinhava que as autoridades chinesas crêem que as potências ocidentais estão em decadência. A crença no declínio do Ocidente e a crença no declínio das democracias liberais, não sendo a mesma coisa, irmanaram-se no decorrer da História dos séculos XX e XXI. Também as potências do eixo, aquando da segunda guerra mundial, com Hitler à cabeça, estavam convencidas da decadência das democracias. É, assim, plausível pensar que a retórica, tanto dos amigos como dos inimigos, acerca da decadência ocidental e das democracias faça parte do metabolismo político e cultural que permite a esse Ocidente e a esses regimes democráticos regenerarem-se, recriando-se e reinventando-se. As democracias, julgo, continuam em acentuado perigo, mas talvez possuam mais poderes para enfrentar as adversidades do que se pensava.

J.C.M., Crónica publicada no Jornal Torrejano . (Sublinhado nosso)




Dobra 10 Intervalo a

 

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D O B R A — 10