Bella Ciao Homenagem à Itália
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O BELLA CIAO,
Ana Isabel Marques
Não me sai da cabeça esta música popular italiana, símbolo da resistência nacional à ocupação nazi durante a segunda guerra mundial. E, assumidamente, comovo-me ao trauteá-la. E não sei como, nem porquê, mas faço desta toada o som com que me identifico neste momento: é preciso coragem, resiliência e resistência.
Porque é que sinto esta comoção? Genuinamente, não sei. Arrisco dizer: porque é uma referência forte de um povo latino, que, por todas as razões (histórico-culturais), nos é próximo em termos de identidade; ou que, por ter estudado com particular pormenor o contexto da segunda guerra mundial, conheço o lastro emotivo da música. Francamente, não sei.
Tenho é as maiores dúvidas de que um ministro das finanças holandês sinta a mesma comoção ao ouvir esta música. E isto leva-me a reflexões que, noutros contextos, fiz já sobre a questão da identidade europeia. Sempre me fez imensa confusão que a União Europeia fosse essencialmente uma união monetária ou fronteiriça para efeitos de agilização da circulação de pessoas e bens. Sempre me quis parecer que esta visão mercantilista da Europa se assemelhava um bocadinho à construção das casinhas dos três porquinhos, contruídas à pressa com o propósito de escapar à ira de um qualquer lobo mau, sem quaisquer preocupações de construção de alicerces ou de verificação de solidez estrutural.
Mais uma vez – e relembro aqui à saciedade as críticas que amiúde ouvi sobre a inutilidade dos estudos das humanidades, da cultura e da literatura –, foram possivelmente a minha assumida ignorância em termos de política e economia e o meu assumido interesse por questões interculturais que sempre me fizerem ver com alguma apreensão a construção de uma União Europeia à margem de uma política concertada, efetiva e continuada da construção de uma identidade cultural europeia. Não ignoro a existência de programas divulgados entre elites académicas ou comunidades escolares, mas sublinho, sim, as lacunas em termos de iniciativas de espectro mais alargado que promovessem o reforço da identidade europeia junto do cidadão comum. Isto porque, de facto, dificilmente nos conseguimos sentir unidos a alguém que mal conhecemos ou que não sabemos quem é. Dificilmente podemos sentir empatia relativamente a um país cuja localização apontamos com dificuldade no mapa, a um povo que desconhecemos, que não sabemos o que fez, ou qual o contributo que deu para este baú imenso de riqueza cultural que é a Europa. E a Europa é isso mesmo: o repositório identitário e cultural de todos os países que a integram. Só conhecendo os povos e as nações é que conseguimos, efetivamente, construir uma identidade europeia. Sim, porque estamos a falar de uma realidade imaterial que se pode (e deve) construir. Dever-se-ia, desde há muito, ter implementado nos curricula uma disciplina sobre o «meu amigo europeu», sobre a história e a cultura dos países europeus. Não quero com isto advogar a inserção de mais uma disciplina, morta e pesada, no dia-a-dia escolar dos alunos, mas sim atividades de participação efetiva no modus vivendi de todos nós, europeus. (Saúdo os programas Erasmus e Komenios, mas não deixo de sublinhar, num outro patamar, o que os velhinhos Jogos sem Fronteiras fizeram pela unidade europeia e pelo conhecimento do meu irmão europeu).
Entretanto, chegou o lobo mau, sob a forma de um vírus covarde, mesquinho e tenebroso. E eis que a solidez da cabana dos 27 porquinhos está, como nunca, a ser posta à prova. E, afinal, parece que há povos que se sentem mais europeus do que outros. Há povos mais próximos do que outros. Há povos que valorizam a união humanitária e outros apenas a questão monetária. Não se norteiam todos pelas mesmas prioridades, nem pelos mesmos valores. Independentemente do respeito pelo princípio (elementar) da solidariedade para com o próximo (que não ouso aqui comentar), verificamos que é muito difícil para alguns países estarem emocionalmente próximos de países que não conhecem e que diabolizaram por via de estereótipos de ignorância.
A velha Europa parece que está literalmente a agonizar, sim! Trata-se de uma morte que não é provocada pelo vírus, mas pela ignorância que mina os laços que deveriam unir todos os europeus.
Arte, público e política, de J.C.M.
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Pedro Cabrita Reis, em artigo de opinião no Público, expõe a sua posição perante a polémica que se gerou com a inauguração da sua obra A Linha do Mar, no concelho de Matosinhos. A polémica oscilou entre a questão política – deverão as entidades públicas, à revelia dos eleitores e contra o sentimento estético destes – encomendar obras de arte para o espaço público – e a questão estética – saber se aquela obra é ou não uma obra de arte.
O que o autor faz é a afirmação plena do artista, numa autonomia radical perante o público, onde se incluem o mercado e outros agentes que volteiam em torno do mundo das artes plásticas. Arte é aquilo que o artista determina enquanto tal. Esta perspectiva é completada pela ideia de que a obra de arte começa no pensamento do artista ou, para citar o insuspeito Leonardo da Vinci quando se referia à pintura, é uma coisa mental. A arte reside na subjectividade do artista e a obra material é apenas a manifestação dessa concepção subjectiva.
Arménio Dias, Escultura de Pedro Cabrita Reis vandalizada, 2019 (aqui)
A autonomização progressiva da arte a que se assistiu a partir do Renascimento desaguou no conflito, que se tornou manifesto no século XX, entre parte significativa da arte contemporânea e o gosto do público, que se sente impotente para se transferir para a mente do artista e compreender as operações mentais que geram obras que ele não compreende e, pior, sente como ofensa ao seu sentimento estético. Enquanto a arte se exibe apenas no ambiente climatizado das galerias privadas, o grande público encolhe os ombros, pois nada daquilo lhe diz respeito.
O problema emerge quando, como no caso de Leça, a obra de arte está no espaço público e foi adquirida com dinheiros públicos. Como muitos argumentaram, a obra foi paga com os impostos daqueles que nunca dariam um cêntimo por uma obra de Cabrita Reis, pois não a compreendem, sentem-se ofendidos no seu sentimento estético e na sua ideia do que deve ser uma obra de arte. Este conflito entre a autonomia do artista e o gosto do público não tem solução. A autonomia do artista e da arte são bens que os artistas preservam como tão importantes quanto a vida e não é crível que uma massiva educação escolar tenha poder de alterar radicalmente o gosto do público.
Curioso em tudo isto é o papel dos agentes políticos dentro desta tensão. A sua decisão de escolherem artistas que o público não gosta tem um resultado paradoxal. Transforma uma diferença de percepção do que é ou deve ser a arte num diferendo em que, como no caso de A Linha do Mar, o antagonismo ultrapassa em muito um mero desacordo. Basta ler muitos dos comentários para perceber o grau de rancor e ressentimento que envolve a apreciação do trabalho do escultor. A presença do político gera uma explosão.
Todavia, esta explosão, gerada pela presença do elemento político, tem uma função iluminadora e isso é o outro lado do paradoxo. O público incapaz de perceber a obra de arte é posto perante o facto desta obra. Ela está ali e está iluminada pela polémica. Vai ser obrigado a olhar para ela e começar a vê-la. Ela saiu do espaço da indiferença sombria para uma clareira de onde o olhar não se pode desviar. Sem dar por isso, o público é invadido pela obra e esta começa a trabalhá-lo, a educar-lhe o olhar através do hábito da presença. A imaginação, de forma secreta, estabelece relações inesperadas, o que era negativo e tenebroso transforma-se lentamente no seu contrário. A coisa conceptual gerada na mente do artista torna-se também numa coisa conceptual na mente do espectador. Sentidos começam a nascer, linhas hermenêuticas abrem uma brecha no sentimento estético e começam a iluminá-lo. E isto será o que se pode esperar de uma obra de arte.
Jorge Carreira Maia, Janeiro de 2020. In http://kyrieeleison-jcm.blogspot.com
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